Precariedade para os funcionários de aplicativo é a regra entre as plataformas
Nos últimos meses, a gravação da ex-jogadora de vôlei Sandra de Sá agredindo dois motoristas de aplicativo na zona-sul do Rio de Janeiro ganhou repercussão na mídia.
No vídeo da ocorrência, é possível ver Sandra de Sá usando uma coleira de cachorro como um chicote, e dando chutes para atingir o entregador Max Ângelo Alves dos Santos. Além disso, é possível observar Sandra mordendo a perna da entregadora Viviane Souza, que estava com Max no momento da ocorrência.
Em depoimento à polícia, Max conta que dias antes, Sandra o acusou de ter “passado perto demais” dela com a bicicleta e o xingou de “marginal”, “preto” e “favelado”, ameaçando exigir a demissão dele na loja em que trabalhava. Em ambas ocorrências, o entregador a denunciou para a polícia, da primeira vez por injúria e da segunda vez, por lesão corporal e agressão.
Em entrevista ao G1 depois da ocorrência, Max comentou que “parecia que ela estava chicoteando um escravo que não fez o serviço direito” e que “o tempo da escravidão já acabou”.
Enfrentar esse tipo de violência e agressividade não é uma luta apenas de Max e Viviane, recorrentemente, casos como esse também ganham repercussão. Segundo o portal Brasil de Fato, Adelline Costa Toledo, entregadora do IFood de 34 anos, foi agredida por um professor após ela não entregar ao cliente um refrigerante Coca-Cola, que não foi enviado junto com a comida pelo restaurante. Outro entregador do IFood, Yuri Moraes de Araújo, de 21 anos, foi agredido com um tapa na cabeça por um policial após o entregador se recusar a subir no apartamento do cliente para fazer a entrega – o que não é obrigatório segundo a política de entrega do IFood.
Esses casos de conflitos, violências e precarização não são exclusivos para o grupo de entregadores, também atingem motoristas de aplicativo. Juntos, ambos grupos já somam cerca de 1,6 milhões de trabalhadores por aplicativo no Brasil, segundo uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec). Mas afinal, quem são essas pessoas?
Os entregadores de aplicativo são em sua maioria homens (97%), pretos ou pardos (68%) com ensino médio completo (59%) e têm uma idade média de 33 anos – segundo a pesquisa. No geral, esses trabalhadores fazem uma jornada de 13 a 17 horas semanais e têm uma renda mensal de R$1.980 a R$3.039. Para completar a renda, quase metade deles (48%) tem outros trabalhos além da entrega.
Os motoristas de aplicativo também são em sua maioria homens (95%), pretos ou pardos (62%) e com ensino médio completo (60%), com uma idade média um pouco mais alta, de 39 anos. Em geral, esses trabalhadores fazem uma jornada de 22 a 31 horas semanais e têm uma renda mensal de R$2.925 a R$4.756. A maioria deles (63%) trabalham somente com a plataforma.
A reprodução da violência contra essas pessoas não é aleatória, e sim sistemática. Como teoriza a escritora e filósofa brasileira Marilena Chauí, há vários componentes nesses casos que o constituem como característicos de uma sociedade autoritária. Uma evidência desse tipo de sociedade é a como essas formas de violência são naturalizadas e toleradas, recorrentes. Esse fenômeno pode ser abordado pela divisão brutal entre o trabalho manual e intelectual, muito presente em sociedades caracterizadas por Chauí como autoritárias. Nos casos de violência contra entregadores, o agressor se sente superior àquele que está trabalhando, e no direito de agredi-lo em caso de insatisfação.
Esse comportamento pode ser reforçado pelo constante confronto entre a classe média e as classes periféricas no Brasil. “Hoje temos cada vez mais uma classe média com pouco poder aquisitivo e ao mesmo tempo, condições precárias para a classe trabalhadora, que acabam sendo obrigados a trabalhar para esse tipo de empresa”, explica Marco Gonsales, doutor em Sociologia do Trabalho pela Unicamp e estudioso dos movimentos de resistência de trabalhadores de aplicativo..
Muitas vezes, esse confronto é agravado pela impunidade das classes dominantes, já que, em muitas ocorrências, o agressor sai praticamente impune ou apenas banido da plataforma de delivery.
Gonsales comenta que conflitos como os vividos por Yuri e Adelline, nos quais o entregador é cobrado pela qualidade do produto fornecido pelo restaurante, são comuns: “É nesse contexto, de trabalhadores que vêm da periferia para trabalhar para uma classe média que está descontente com sua situação socioeconômica e está inserida em uma sociedade racista e com muito discurso de ódio, que se tem cada vez mais conflitos”.
A falta de proteção e a injustiça para esses trabalhadores é comum entre as plataformas, segundo o relatório “Fairwork Brasil 2021: Por Trabalho Decente Na Economia De Plataformas”. Muitos dos trabalhadores ouvidos pelo estudo relataram também problemas de saúde e se queixaram de acidentes de trabalho, baixa remuneração e bloqueios injustos. Além disso, afirmaram não conseguir falar com representantes humanos das empresas.
O relatório também buscou ranquear as principais plataformas que atuam no Brasil (IFood, 99, Uber, GetNinjas, Rappi e UberEats) a partir de cinco princípios: “remuneração justa, condições justas, contratos justos, gestão justa e representação justa”. No ranking, cada plataforma poderia receber uma pontuação de 0 a 10. Como resultado, o iFood e a 99 pontuaram mais alto, atingindo a marca de dois pontos. Já a Uber, recebeu apenas um ponto. As demais não pontuaram.
No geral, o relatório mostra que as plataformas carecem de: proteger seus funcionários de riscos; fornecer o salário mínimo ou estabelecer um piso salarial; fornecer um contrato claro, compreensível e acessível aos trabalhadores, além de providenciar canais de comunicação eficazes e claros entre funcionários e empresa.
Dados como esses mostram que as agressões físicas e verbais formam apenas a ponta do iceberg dos problemas enfrentados pelos trabalhadores de aplicativo. O abuso começa nas diversas irregularidades que precarizam ainda mais essa forma de trabalho, remetendo a dinâmicas de intensa exploração.
De acordo com o antropológo e sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, essa dinâmica pode ser considerada uma espécie de “colonialismo interno”. Ele explica que a América Latina vive uma relação entre o “arcaico” e o “moderno”, contradição advinda da tecnologia, capaz de reforçar estruturas arcaicas de exploração que remetem ao passado e não à ideia de progresso que muitas vezes é atrelada erroneamente a essas mesmas tecnologias.
Assim, as plataformas digitais de entrega revelam-se exemplos fidedignos dessa contradição. Aplicativos como o iFood e o UberEats surgiram a partir da demanda crescente por maneiras simplificadas de fazer pedidos e agendar entregas. Por outro lado, essas plataformas, ao criar promessas de horários flexíveis e renda compatível às horas trabalhadas, permitiram o retorno de dinâmicas não reguladas de trabalho que haviam sido extintas pela CLT.
Mas essas mecânicas de exploração não apenas remontam a relações arcaicas entre patrão e empregados, com jornadas de trabalho extensas, baixíssima remuneração e falta de seguro-desemprego, como também acabam legitimando diferentes camadas de violências através da subjugação desses indivíduos.
Casos de violência e ataques racistas contra entregadores de aplicativo se colocam como grandes exemplos de uma lógica colonial e escravocrata, nos moldes permitidos pela tecnologia e sociedade atual e validados por uma suposta superioridade dos clientes sobre os entregadores.
Há, ainda, outra forma de exploração na qual os trabalhadores se tornam dependentes das plataformas. “No capitalismo que vivemos hoje, os trabalhadores são livres, mas são tão livres a ponto de não terem meios de conseguir uma mínima condição de subsistência. Então, o que resta é vender a força de trabalho”, explica Gonsales. É justamente nessa condição, em que o trabalhador precisa vender sua força de trabalho para sobreviver, que se forma uma sociedade com altos níveis de desemprego, trabalhos precarizados e informalidade altíssima.
“Essas empresas exploram os trabalhadores através do trabalho, mas também criam um arcabouço onde eles se tornam dependentes delas através da espoliação”, completa Gonsales. Essa outra forma de exploração muitas vezes acontece por meio da contração de dívidas por parte dos trabalhadores, que se vêem obrigados a pagar por chips de internet ou cartões “oferecidos” pela empresa.
Para tentar reverter esse cenário, trabalhadores por aplicativo buscam meios de conseguir apoio do governo ou das plataformas, com alguns grupos assumindo como bandeira a defesa da CLT e de seu legado.
Motoristas de aplicativo, por exemplo, são considerados autônomos, por isso não possuem vínculo empregatício com empresas como Uber e 99. Desde 2019, os motoristas podem adquirir o título de contribuinte individual ou de microempreendedor individual (MEI), o que permite que eles contribuam com o INSS e tenham acesso a benefícios como auxílio-doença, auxílio-maternidade (para mulheres) e aposentadoria por idade.
Em uma tentativa de regulamentar esse serviço, a Lei Federal n° 13.640/2018 estabelece que cada município é responsável por fiscalizar o trabalho dos motoristas de aplicativo em sua jurisdição. Outra iniciativa a ser destacada é a instituída em maio deste ano pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) visando criar um grupo de trabalho para discutir a Política de Valorização do Salário Mínimo (PVSM) e tratar de outras agendas trabalhistas, como o desenvolvimento de projetos de lei voltados à regulamentação do trabalho via aplicativos.
Além disso, hoje existem projetos de lei como o PL 3748/2020, da deputada federal Tábata Amaral, que buscam contemplar os demais direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como o salário fixo, as férias remuneradas, o acesso ao FGTS e ao seguro-desemprego, entre outros.
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Apesar das iniciativas, segundo a pesquisa “Futuro do trabalho por aplicativo”, do DataFolha, a maioria dos trabalhadores por aplicativo – cerca de 75% – prefere a autonomia à vínculos empregatícios mediados pela CLT. Essa preferência está ligada ao zeitgeist neoliberal que preza pela liberdade acima da segurança: liberdade para decidir o horário de trabalho, para recusar viagens ou entregas e para trabalhar em mais de um aplicativo ou lugar.
Tal postura é representativa da maneira com que se alterou, nas últimas décadas, a visão dos trabalhadores sobre os direitos conquistados pela CLT. Durante muitas décadas, o vínculo empregatício mediado pela CLT foi um dos itens mais desejados pela classe trabalhadora, uma vez que unificava e protegia diretos criando uma relação mais balanceada entre patrão e empregado. Contudo, com formatos híbridos, mais flexíveis e no caso dos trabalhadores de aplicativo uma relação menos humanizada entre plataforma e motoristas, esse papel tem se alterado e refletido em novas interações de trabalho e portanto menos contempladas pela atual CLT.
Há outras alternativas de respostas aos conflitos e situações precárias de trabalho, como explica Gonsales: “Os conflitos com os consumidores são um dos principais estopins que possibilitam a articulação coletiva desses trabalhadores, que vão protestar em massa nesses endereços, contra consumidores que destratam esses trabalhadores”. É comum também, que esses protestos sejam um ponto de partida para criação de associações de trabalhadores, como Sindicatos.