“O agronegócio segue pautado numa fome de terras que se baseia primordialmente em violência”, pontua sociólogo sobre a questão de terras na Amazônia
Em 2022, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) registrou via satélite que os índices de desmatamento na Amazônia atingiram o quinto recorde anual consecutivo. Além disso, no período entre 2018 e 2022, os índices de violência contra indígenas na Amazônia Legal cresceram em 48% com base no relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Seria ingênuo tratar destes dados como mera coincidência, existem fatores que levaram a escalada dessa situação.
Nesta reportagem, serão explorados dois elementos estruturais para a existência desse cenário no Brasil: o avanço da agropecuária na Amazônia Legal e a imposição da “modernização” para os povos originários. Esses processos violentos de invasão de terras e assimilação cultural são observados desde a formação do país, sendo repetidos de maneira adaptada à modernidade. Em entrevista para nossa equipe, Luiz Felipe de Farias, doutor em Sociologia e especialista na questão do agronegócio no Mato Grosso, analisou a situação da seguinte forma:
“O agronegócio brasileiro segue pautado numa longa cadeia de exploração de terras públicas de sua transformação em propriedade privada. Por um lado é super moderno, produtivo e tecnológico, mas por outro lado, [o agronegócio] segue pautado numa fome de terras que se baseia primordialmente em violência.”
Segundo levantamento do projeto Mapbiomas, 95,7% das derrubadas de floresta são causadas em decorrência do agronegócio. Os principais impeditivos do crescimento desse número são as áreas de preservação ambiental e as aldeias indígenas. No entanto, existe um Projeto de Lei em tramitação visando reduzir essas áreas e, segundo seus defensores, tornar a divisão de terras no Brasil mais proveitosa. O PL 490/07 baseia-se na tese jurídica do marco temporal, que reconhece a demarcação apenas das terras indígenas ocupadas antes da promulgação da Constituição de 1988.
A tese entrou em discussão após o governo de Santa Catarina requerer no Supremo Tribunal Federal (STF) o território da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ dos Xokleng que era disputado por agricultores. O argumento é que a área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada desde 5 de outubro de 1988 e assim esses indígenas já estariam suficientemente integrados ao restante da sociedade. Contudo, os indígenas apontam que a área só estava desocupada porque eles haviam sido expulsos da região.
Eduardo Nunomura, editor da agência Amazônia Real, critica a tese, uma vez que “há muita terra devoluta na Amazônia que poderiam ser ocupadas pelo agro. Contudo, a bancada do agronegócio no Congresso não pensa assim, para eles quanto maior a área para plantio e pastagem de gado, melhor. No entanto, essa visão é míope, predatória”. Nunomura ressalta o valor histórico das TI’s e áreas de preservação na proteção da Amazônia, e que sem elas a biodiversidade estaria ameaçada.
As raízes do problema
Desde a colonização, a lógica de exploração da terra adotada no Brasil se deu a partir da violência. Em todo o território nacional, se desenvolvia um projeto latifundiário, extensivista e monocultor.
Na época, o país era habitado por aproximadamente 5 milhões de indígenas em quatro macrorregiões (litoral, campos do cerrado, Xingu e Várzea do Amazonas). Cientistas afirmam que a característica essencialmente nômade e agrícola desses povos foi um dos fatores que atribuíram à Amazônia sua exuberante biodiversidade. Por outro lado, os ciclos de monocultura adotados no manejo dos latifúndios vão na contramão dessa relação mais orgânica e natural com a terra.
Segundo a Dra. Vandana Shiva, física e ativista ambiental, esse processo de diminuição das biodiversidades através das monoculturas coloniais, gerou o que ela chama de “monoculturas da mente”, em que se cria um “pensamento único” que justifica a própria lógica de acumulação da monocultura e do capitalismo: “Os sistemas modernos de saber provêm de uma cultura ultradominadora e colonizadora e são, eles próprios, colonizadores”.
Essa lógica de dominação da terra e dos grupos nela contidos, levaria, segundo Shiva, a um desenvolvimento desigual da região. A pesquisadora define a impossibilidade de impor a modernização em um local tão profundamente afetado por essas estruturas de exploração da terra. Destaca-se esse fenômeno em processos como os que ocorreram quando analisamos as tentativas de reestruturação agrária no Brasil, como na Ditadura Militar, através da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM).
Segundo Luiz Felipe, existe uma particularidade do processo de formação social do capitalismo brasileiro que por si, pautou a exploração das terras indígenas durante todo o século XX, que é o fato de que sempre existiu um grande volume de terras públicas ainda não convertidas em propriedade privada, “isso significa que, em todo momento que existiu algum impasse econômico no país, todo momento em que se chegou a uma crise de acumulação, uma das respostas tradicionais da burguesia brasileira foi a implementação de regimes autoritários que aceleraram o avanço sobre a fronteira Oeste e Norte e sobre a região amazônica, especialmente”. Hoje, ainda existem no Brasil cerca de 143 milhões de hectares de terras públicas, o equivalente a “três Espanhas”, segundo uma avaliação recente pelo projeto Amazônia 2030. O número era ainda maior no início do século XX.
O sociólogo reitera que nos últimos anos vivemos um ensaio — e uma continuidade — dessa lógica: “Um regime autoritário num contexto de crise da acumulação, que apresenta como uma das respostas o avanço da fronteira agrícola e o avanço da propriedade privada sobre a região amazônica como alavanca de acumulação.”
Amazônia: a conjuntura recente
Devido ao crescimento das invasões, especialmente durante o governo Bolsonaro, a discussão sobre a demarcação ganhou os holofotes. O PL 490/07, endossado pelo retorno econômico da agricultura, estabelece no Art. 4º, parágrafo 4º: “A cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada”. O PL dificulta a demarcação de terras indígenas uma vez que a ocupação dos povos foi majoritariamente documentada após a promulgação da Constituição.
Projetos como esse evidenciam a limitação dos povos originários ao solicitar a comprovação burocrática da propriedade de determinado terreno. Porém, dentro da própria comunidade indígena há divergências quanto à problemática, explica o sociólogo Luiz Felipe: “Dentro do movimento indígena, você também tem heterogeneidade. Em especial ali no Noroeste do Mato Grosso em torno dos Parecis principalmente que fizeram experiências de ‘parcerias’ com produtores de soja.” Visando o lucro, são estabelecidos acordos que beiram a ilegalidade ao afetar zonas de preservação, conclui Farias.
Além do PL do Marco Temporal, outro projeto que interfere na luta dos povos indígenas é a aprovação da MP dos Ministérios. A reforma enfraquece a pasta dos Povos Indígenas (MPI), uma vez que transfere duas de suas atribuições para outros gabinetes: o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Apesar do atual governo adotar uma agenda progressista e ter prometido em campanha medidas para proteção do meio ambiente e demarcação de terras indígenas, a oposição segue acumulando vitórias no Congresso e a boiada segue passando.
Nesse período de tensão, as mobilizações pelas terras continuam não só em Brasília, mas na zona de conflito também. Enquanto alguns povos se alinharam com o bolsonarismo, Luiz Felipe comenta sobre a questão do Mato Grosso que “a experiência dos Xavantes [os ocupantes originais dessas terras] é muito mais de combate do que ‘parceria’ com os laços de cultura em volta”. Contudo, não é um trabalho fácil para os nativos e os apoiadores da causa. Segundo o jornalista Eduardo Nunomura, “em relação à cobertura jornalística e ao trabalho de ativistas, o risco é real e não cessa. Na Amazônia Real, cobrimos sistematicamente as violações contra os direitos humanos. Cada viagem a campo tem de ser acompanhada de um plano de segurança, porque na Amazônia é perigoso ser jornalista, ativista”.
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Há sustentabilidade entre as partes?
Segundo dados do Cimi, nos primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, as invasões a terras indígenas aumentaram em 137%. Apenas no ano de 2020, foram registrados 263 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, um agravamento em relação ao período anterior, quando foram registrados 256 casos.
Em 2023, a situação não apresenta grandes melhorias: um levantamento feito pelo observatório “De Olho nos Ruralistas” descobriu que 1.692 fazendas encontram-se no interior de terras indígenas, sendo 95,5% delas com demarcação ainda pendente. 18,6% desta região, que se estende em 1,18 milhão de hectares, é apropriada pelo agronegócio.
Sobre a possibilidade de sustentabilidade entre as partes, sem demarcação das terras indígenas e de áreas de preservação, o sociólogo Luiz Felipe Farias conclui o seguinte:
“A gente hoje tem claramente um setor hegemônico da soja que tem um discurso predatório e um setor hegemônico do movimento indígena que tem posicionamento combativo, o que significa que, pelo menos no curto prazo, não é muito de se conceber que existam perspectivas de conciliação ou aliança.”