Ouro de Tolo: entrada e saída do garimpo ilegal nas terras indígenas - Revista Esquinas

Ouro de Tolo: entrada e saída do garimpo ilegal nas terras indígenas

Por Ana Beatriz Morrone, Catharina Cavalcante, Estela Braga, Julia Girão, Letícia Iervolino e Melissa Venturini : julho 10, 2023

“O povo Yanomami é um povo tradicional que, de repente, se vê com um monte de invasores, que trazem doenças, cometem estupros e destroem o rio. É muito triste assistir o que está acontecendo com o Brasil”/Foto: Mídia Ninja, Flickr

O crescimento do garimpo ilegal e, com ele, da destruição dos povos originários é prova da tolerância com que a sociedade lida com as violentas “colônias internas” no Brasil

Junho 2023 

O território Yanomami, nos dias 29 e 30 de abril, foi mais uma vez palco de violência armada por parte dos garimpeiros em resistência às forças públicas e ao Estado democrático de direito. O conflito resultou na morte de um indígena pelas mãos dos invasores e de quatro mineradores por agentes da PRF (Polícia Rodoviária Federal) e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Além das vítimas fatais do garimpo, outros dois indígenas foram feridos. 

A tragédia é apenas uma das peças do quebra-cabeça que ilustra a dificuldade de combater o garimpo ilegal, prática que cresceu 54% em 2022 e devastou novos 5.053 hectares da Terra Indígena Yanomami, segundo levantamento da Hutukura Associação Yanomami. O caso chamou atenção da mídia e do governo, porque ocorreu exatamente no final dos primeiros 90 dias do Decreto nº 11.405, de 30 de janeiro de 2023, assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT).

A medida reconhece a “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional”, dando permissão às Forças Armadas e aos Ministros de Estado da Defesa, da Saúde, Desenvolvimento Social e Assistência Social, Família e Combate à Fome e dos Povos Indígenas para remover os garimpeiros das terras indígenas e prestar socorro ao povo Yanomami. Entre os requerimentos, o presidente incluiu o abastecimento de água potável, alimentos e vestuário, além de autorizar órgãos, como a Polícia Federal e o Ibama, a adotar providências. “Interdição de aeronaves e de equipamentos de apoio às atividades ilícitas”, afirma o decreto.

garimpo

Situação lastimável dos povos Yanomami revela a negligência do Estado em combater o garimpo ilegal.
Foto: Reprodução/Agência Brasil

Contexto

Os povos indígenas Yanomami vivem na região da fronteira entre Brasil e Venezuela e são cerca de 28 mil indivíduos, conhecidos mundialmente como defensores da floresta amazônica. Atuando na região desde os anos 1980, o garimpo ilegal é fonte de degradação ambiental, violências múltiplas e doenças.

Nos últimos anos, a situação apresentou um quadro de piora. A negligência do governo de Jair Bolsonaro (2018 – 2022), do Partido Liberal, demonstrou conivência com a exploração exacerbada das terras indígenas por parte do garimpo ilegal. Além disso, por vezes, o ex-presidente não hesitou em defender abertamente a pauta da legalização da mineração nos territórios invadidos. 

De acordo com informações da PF  (Polícia Federal), os obstáculos mais significativos para promoção do combate às atividades invasivas estão relacionados à dificuldade de controlar o tráfego de aviões dos garimpeiros. A PF já vem requisitando ao Ministério da Defesa que a circulação aérea dentro da área Yanomami seja controlada, de forma que apenas autorizados pela Força Aérea possam sobrevoar, uma vez estabelecida uma logística concreta.

Olivio Jekupe escreveu mais de 24 livros sobre a condição do indígena no Brasil.
Foto: Reprodução/Instagram

“Você vê uma população de 20 mil garimpeiros dentro da área indígena, o que é um absurdo, porque destrói toda a comunidade”, afirma o escritor indígena guarani, Olivio Jekupe, morador da aldeia Kakané Porã, em Curitiba, no Paraná. “O povo Yanomami é um povo tradicional que, de repente, se vê com um monte de invasores, que trazem doenças, cometem estupros e destroem o rio. É muito triste assistir o que está acontecendo com o Brasil.”

“Terceira tese: A existência de zonas rurais 

atrasadas, tradicionais e arcaicas é um obstáculo 

para a formação do mercado interno e

 para o desenvolvimento do capitalismo 

nacional e progressista”

 – Stavenhagen, 1965

Para o antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, são sete os principais equívocos conceituais nos quais a ideia de continente latino-americano se baseia. O teórico elabora em seu trabalho as “Sete teses equivocadas sobre América Latina” (1965, 1972). Entre elas, a terceira tese afirma que áreas de terra “sem uso” implicam em um atraso generalizado para a sociedade.

Na prática, a América Latina não faz parte do capitalismo nacional e progressista, pois as condições nacionais e internacionais impossibilitam o desenvolvimento econômico e social da região. Afinal, segundo o autor, se o mercado interno fosse suficiente, a burguesia latina “não procuraria comida fora de casa”. Entre 2018 e 2023, os investimentos brasileiros no exterior apresentaram alta de 292%, conforme apontam os dados da analista de mercados Comdinheiro Nelogica. 

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A entrada dos garimpeiros no território Yanomami é a prova de que a terceira tese na teoria de Stavenhagen é verdadeira: a terra indígena não é vista como uma propriedade ocupada – especialmente durante o governo Bolsonaro. Nesse sentido, os invasores e demais cidadãos brasileiros que concordam com o garimpo defendem a ação como um direito à ocupação e ao uso de um espaço que, historicamente, pertence aos indígenas. 

Ao invés de investir em políticas voltadas à equidade, a burguesia assiste o extermínio contra os povos originários de braços cruzados, e insiste ainda em negar o óbvio: as zonas modernas crescem pela existência das “zonas rurais atrasadas, tradicionais e arcaicas” e pela forma como estas estão estruturadas socioeconomicamente.

“Quinta tese: O desenvolvimento na América Latina 

é criação e obra de uma classe média nacionalista,

progressista, empreendedora e dinâmica, e o objetivo 

da política social e econômica de nossos governos 

deve ser o de estimular a “mobilidade social” e o

desenvolvimento dessa classe”

 – Stavenhagen, 1965

Respaldada na terceira tese, está a quinta: a crença de que o progresso da América Latina é fruto do trabalho de uma classe média patriótica, avançada, empresarial e ativa. O propósito da ação governamental, portanto, deveria visar uma garantia de ascensão social e crescimento para o grupo “salvador da pátria”.

Em primeiro lugar, “classe média” é um termo opaco. Isto porque não se sabe bem ao que se refere; afinal, falamos de uma camada da sociedade ou de um agrupamento estatístico? No caso do segundo, seriam profissionais do setor terciário da economia, pequenos proprietários rurais ou comerciantes urbanos, aqueles que não fazem parte nem dos aristocratas latifundiários e muito menos dos “peões sem terra”. Entretanto, por ser uma denominação ideológica. Normalmente, o significado comum é o primeiro: “classe média” é sinônimo de “classe dominante”, mesmo que as duas definições não se correspondam entre si de forma alguma. O que as une é, na realidade, uma identificação de privilégios e não de capital. 

Por isso, é falsa a ideia de que o progresso desse grupo visa o desenvolvimento socioeconômico de uma nação, quando é realmente apenas de si próprio. O altruísmo é de tolo, pois mascara a intenção de um fortalecimento político que possibilite a equiparação à verdadeira classe dominante – a elite – e o sufocamento de lutas de classes que coloquem em risco a estrutura vigente e a hegemonia social. Tal maquiagem cobre as tensões entre grupos sociopolíticos e as posterga para explodirem em momentos de conflito direto. 

O autor também elabora a tese do que intitula como “colonialismo interno”. Para ele, o movimento que ocorre entre colônias e metrópoles é replicado entre regiões “arcaicas” e “modernas” em um mesmo país, ou seja, os locais em subdesenvolvimento de uma nação funcionam como colônias internas da própria pátria. A nação de “terceiro mundo”, portanto, é fruto de um capitalismo colonialista que sustenta as custas da exploração de seu próprio povo. 

Quando a crise humanitária Yanomami foi denunciada para o Brasil e o Mundo, e a operação de retirada do garimpo ilegal começou, de fato, a ser levada a sério, foram publicadas uma avalanche de notícias escancarando a situação dos indígenas. Nativos estavam sendo aliciados, estuprados e crianças estavam morrendo de doenças, como a malária, que nos grandes centros urbanos estão longe de serem realidade. Ainda em 2023, existe a diferenciação entre as regiões arcaicas e as modernas do país. Entretanto, a corda sempre estoura para o lado mais fraco, e, aqui, são os indígenas que estavam (e estão) sofrendo. 

“Um mito fundador é aquele que não cessa de 

encontrar novos meios para exprimir-se, novas 

linguagens, novos valores e ideias, de tal modo 

que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto 

mais é a repetição de si mesmo.” 

– Chauí, 2000

A filósofa Marilena Chauí, professora da Universidade de São Paulo (USP), é responsável pela elaboração do conceito “mito fundador”. Em sua obra “Mito Fundador e Sociedade Autoritária” (2000), Chauí defende que “(…) nosso mito fundador é elaborado segundo a matriz teológico-política” e seus fundamentos “(…) se combinam e se entrecruzam, determinando não só a imagem que possuímos do país, mas também nossa relação com a história e a política”. É a partir dele que se tem orgulho em ser brasileiro, patriotismo por ter nascido nesta cultura, mas ao mesmo tempo legitimar a violência contra o povo originário em nome do progresso, alegando ignorância e culpando os indígenas pelo atraso nacional. 

Para Olivio Jeku, que possui 24 livros publicados, a destruição é perversa e gananciosa. “Sem piedade, colocam muitas pessoas para trabalhar no garimpo, que são verdadeiros peões, a maioria pobres, para que chefões possam ganhar milhões em cima de uma minoria e da população indígena. Então, quem é o verdadeiro vilão dessa história?”, diz. 

R e·sis·tên·ci·a {sf} 

– Ato ou efeito de resistir;

– Capacidade que o ser humano tem de suportar a fome e a fadiga; 

–  Não aceitação da opressão; 

–  Movimento de luta nacional contra o invasor.” 

Dicionário Michaelis 

Resistência é uma das diversas palavras que definem o dia a dia dos povos originários no Brasil. Devido às constantes ameaças, disparadas desde quando os portugueses invadiram essas terras, a cultura indígena se encontra respirando por aparelhos. Bruce Kuikuro, líder da Aldeia Kaluani Paraíso, que faz parte do território Indígena do Xingu, no Mato Grosso, produz conteúdo em suas redes sociais divulgando o cotidiano de sua comunidade. Seu objetivo é simples: mostrar como a vivência no Xingu resiste ao tempo e sobrevive graças à educação dos indígenas. 

“Antigamente não tinha escola dentro do território”, afirma Bruce. “Meu pai e meus avós falavam que nossos companheiros tinham muita dificuldade, e ainda têm, de falar em português e lutar pela comunidade e pelos seus direitos.” 

Assim como diversos outros jovens indígenas, o líder dos Kaluani precisou se submeter aos deslocamentos entre a comunidade de origem até a universidade localizada nos centros urbanos. Partiu para a cidade com o sonho de melhorar a qualidade vida de sua aldeia: “Eu coloquei na minha cabeça que ia estudar. Fiz o Ensino Médio e depois voltei para a comunidade para ajudar o meu povo e ensinar as crianças”. 

Foi no dia 22 de abril de 1500 que os colonizadores portugueses chegaram ao território brasileiro. Desde então, o Brasil segue cúmplice de um genocídio, tudo em razão da ganância. Fica aí o questionamento: a vida humana realmente tem um valor? Ouro de Tolo. Seja através da educação nos moldes europeus para escapar da aniquilação, seja através da luta armada contra o garimpo ilegal, a resistência dos povos indígenas permanece de pé, tão rígida quanto ao solo que lutam diariamente para reconquistar.

Editado por Mariana Ribeiro

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