Marco temporal mostra como a ideia de modernidade segue justificando a exploração de grupos minorizados, como é o caso dos povos indígenas, e do planeta
Entendendo a questão indígena no Brasil
A demarcação de terras indígenas é um direito constitucional: garante a autodeterminação e autonomia dos povos originários, bem como sua participação ativa na gestão e preservação de partes do território brasileiro. Em 1988, a Constituição Federal adotou a Teoria do Indigenato, desenvolvida pelo jurista e advogado João Mendes Junior, reconhecendo o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas.
A Terra Indígena (TI), de acordo com o artigo 231 da Constituição, seria aquela habitada com caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas essenciais à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos seus ocupantes e determinantes à sua reprodução física e cultural, respeitando seus usos, costumes e tradições. O capítulo VIII do documento, intitulado “Dos Índios”, coloca as TIs como territórios demarcados e protegidos para a posse permanente e o usufruto exclusivo dos povos indígenas.
Reconhecidas como patrimônio da União, essas terras são destinadas à preservação da cultura, tradições, recursos naturais e formas de organização social dos povos originários, assegurando a reprodução física e cultural dessas comunidades. De acordo com dados de 2021, atualmente a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem registradas 761 terras indígenas, o que corresponde a cerca de 13,75% do território brasileiro e, apesar de se espalharem por todos os biomas do país, possuem presença principal na chamada Amazônia Legal. No mais, são 478 as reivindicações de povos indígenas em análise pela Fundação.
Desde 1973, antes mesmo da Constituição, a demarcação é responsabilidade da Funai, envolvendo um processo complexo que vai desde a identificação, declaração dos limites e demarcação física até a homologação e registro oficial. Após a redemocratização, a questão das demarcações de terras indígenas começou a ganhar maior destaque nas políticas de bem-estar social dos governos. O mandato de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, foi o que registrou maior número de homologações, 145, e, após o seu fim, marcou uma progressiva queda nos avanços dessa questão.
Os primeiros anos do primeiro governo Lula mantiveram, de certa forma, o movimento pelas demarcações, mas foi seguido por uma queda considerável durante o segundo mandato e maior ainda durante o governo Dilma. Foi em 2016, no entanto, com o golpe e a chegada de Michel Temer ao poder, que o movimento de sucateamento dos direitos indígenas começou a fazer parte cada vez mais explícita dos projetos de governo. Desde a ditadura, os mandatos de Temer (2016 a 2018) e de Bolsonaro (2018 a 2022) foram os primeiros a não demarcarem nenhuma terra indígena.
A partir desse momento, os registros de violência contra povos indígenas e conflitos de terra envolvendo povos originários e agentes do garimpo ou do desmatamento ilegais aumentaram exponencialmente. Entre 2019 e 2022, foram 42 assassinatos de indígenas registrados, um aumento de 200% em relação aos quatro anos anteriores. De acordo com o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil 2020”, do Cimi, em dois anos de governo Bolsonaro, a invasão às terras indígenas teve alta de 137%.
Apesar do Brasil ter votado a favor da democracia e de um país mais humano nas eleições de 2022, os reflexos desse movimento anti-indígena e de uma mentalidade que busca sempre o “progresso” às custas do bem-estar social e do meio ambiente ainda estão presentes na construção do país e suas esferas administrativas.
O marco temporal
Esse cenário de retrocesso se expressa perfeitamente na discussão a respeito do marco temporal, tese que afirma que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras se estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Considerada inconstitucional por juristas, organizações indígenas e ambientalistas, que a enxergam como um retrocesso no direito dos povos indígenas, a tese foi recuperada recentemente, mas surgiu no âmbito judiciário em 2009.
Durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi utilizado o parâmetro de posse da terra pelos indígenas em outubro de 1988 como argumento favorável à demarcação, além de estabelecer 19 condicionantes ao processo. Desde então, a tese do marco temporal tem sido utilizada como justificativa para a anulação de processos de demarcação, aumento de conflitos em territórios indígenas e insegurança jurídica. Em julho de 2017, durante o governo Temer, um parecer foi publicado no Diário Oficial da União obrigando a Administração Pública Federal a aplicar as 19 salvaguardas utilizadas pelo STF no caso Raposa Serra do Sol, institucionalizando o marco temporal.
Agora, o PL 2903/23, antigo PL 490/07, tramita no Congresso Nacional para transformar em lei a limitação da demarcação de terras e a fragilização dos direitos indígenas no país. Sendo aprovada pela Câmara dos Deputados no final de maio, a questão agora espera os trâmites legais e, enquanto isso, tem gerado enorme mobilização por parte de grupos indígenas, líderes ambientais e outros setores da população. Em paralelo, o STF discute a tese em relação a uma ação envolvendo uma terra indígena de Santa Catarina, cuja decisão terá repercussão em todos os processos desse tipo no futuro.
De acordo com Dominique Tilkin Gallois, antropóloga belga com foco nos estudos etnográficos ameríndios e professora do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo, caso seja aprovado, o marco temporal vai contribuir não apenas com o apagamento, como também o genocídio dos povos indígenas, que têm um modo de vida intimamente dependente da integridade dos seus territórios. Ela destaca que a situação é ainda mais grave quando se trata dos grupos que ainda vivem em isolamento ou que tiveram contato recente e que ainda não têm suas terras demarcadas e dificilmente possuem registros de ocupação em 1988.
A quem interessa a aprovação da lei?
Se aprovado, o marco temporal pode representar a perda de 63% das terras demarcadas ou em processo de demarcação no país. De acordo com o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil do CIMI de 2021, são 1.393 terras indígenas em risco por conta do marco temporal. Essa perda tem defensores claros: a bancada ruralista e outros grupos relacionados ao agronegócio e à mineração são os que mais incentivam a aprovação do PL.
As terras indígenas são espaços essenciais para a conservação da biodiversidade brasileira e, em um momento crítico na luta contra as mudanças climáticas, representam uma questão importante no conflito entre a preservação e o suposto progresso. A demarcação significa a proteção contra invasores ilegais, garimpeiros e madeireiros. De acordo com dados do MapBiomas Coleção 7 da base de dados de terras indígenas da Funai, 29% do território ao redor das Terras Indígenas está desmatado, enquanto, dentro delas, há apenas 2% de desmatamento.
A questão da luta pela terra não é recente no Brasil. Em 1850, com a Lei de Terras, a ocupação da zona rural se tornou ilegal, impedindo que ex-escravizados e imigrantes europeus pudessem ter suas próprias terras, mesmo que pequenas, transformando-se necessariamente em mão de obra barata e abundante para os latifundiários, que puderam concentrar em suas mãos a maior parte do território do país.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 0,7% das propriedades do Brasil possuem área superior a 2.000 hectares ou 20km², mas elas ocupam, juntas, 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam sequer a 25 hectares, ocupando apenas 5% do território rural em conjunto.
Em um contexto de expansão da fronteira agrícola e de aumento na exploração ilegal de minérios, a imposição de maiores dificuldades para a demarcação das terras indígenas – 98% das quais estão na Amazônia Legal, de acordo com o IBGE -, ao colocar em risco toda uma cultura em nome de supostos avanços econômicos e grupos que priorizam a exploração desenfreada em meio a uma catástrofe climática, faz que a noção de colonialismo interno se mostre gritante.
Colonialismo Interno e desigualdade social
O conceito de Colonialismo Interno se refere à continuidade histórica de processos e relações coloniais dentro de países em desenvolvimento que foram colônias europeias. No seu texto “Sete teses equivocadas sobre América Latina”, o sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen exemplifica essa noção ao descrever o dualismo criado em países latino-americanos que opõe uma sociedade moderna a uma sociedade tradicional.
De acordo com essa ideia, a lógica colonial – atrasada, estagnada, pessoal e familiar – deve sempre ser superada pela lógica moderna – industrial, futurista, urbana e progressista. Enquanto se colocam como opostas na teoria, a prática dessas duas esferas, de acordo com o sociólogo, é derivada de um único processo histórico e, mais do que isso, confere uma relação de dependência e coexistência.
O moderno se alimenta do atraso. Quando pensamos no Brasil, a lógica do colonialismo se faz presente dentro do próprio país quando, para que regiões específicas como os polos urbanos do sudeste prosperem, é preciso que outras regiões – os chamados bolsões de pobreza – sejam exploradas e sigam atrasadas. Essa é a manifestação do colonialismo interno.
De acordo com o setor conservador brasileiro, as populações indígenas nada mais são do que símbolos do atraso, obstáculos para o alcance da prometida modernidade, do progresso, do crescimento e do lucro. Mas essa modernidade não chega para todos. O “avanço” que se instala às custas do bem-estar social, de populações marginalizadas, do meio ambiente e de culturas ancestrais não é progresso, é repetição de uma lógica antiga e ultrapassada. Como afirma a professora Dominique Tilkin Gallois, “o que importa é que o uso dos recursos naturais por uma geração não pode comprometer o acesso das gerações seguintes a esses recursos indispensáveis para a qualidade de vida”.
“Qual “progresso” obtiveram os garimpeiros ilegais que invadiram a terra yanomami: a maior parte dos garimpeiros vive em condições miseráveis, ao passo que pouquíssimos donos de maquinários obtiveram lucros. Qual ‘progresso’ municípios amazonicos obtiveram da venda ilegal de madeira? Nenhuma melhora nas condições de vida foi comprovada nessas áreas onde a busca imediatista de lucro para poucos deixou apenas terra arrasada.”
A professora e antropóloga Dominique Tilkin Gallois questiona a noção de progresso que justifica a aprovação do marco temporal.
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A luta dos povos indígenas continua
Desde a aprovação do marco temporal na Câmara, manifestações populares e mobilizações de grupos indígenas têm tomado conta do país. Na primeira semana de junho, um acampamento reunindo representantes de povos originários de vários estados foi organizado perto da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Além do movimento na capital do país, que uniu milhares de indígenas, atos também foram organizados para bloquear rodovias em pelo menos dez estados, incluindo Minas Gerais, Tocantins, Acre, Bahia, São Paulo e Paraná.
No domingo, dia 18/06, centenas de pessoas se reuniram na Avenida Paulista, em São Paulo, em protesto organizado por instituições ambientais contra o marco temporal. Durante o evento, foi chamada atenção para as mortes do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira na Amazônia em 2022, além de terem sido exigidas soluções urgentes para a crise climática por meio de cartazes.
Para Dominique Gallois, caso o marco temporal seja aprovado, deve ocorrer uma imensa repercussão nacional e internacional, com efeitos importantes. Segundo ela, “os povos indígenas se preparam para seguir mobilizados, e precisarão de um investimento grande por parte de apoiadores.”