Médico, arquiteta e educadora negros quebraram barreiras do racismo e ocupam espaços na sociedade - Revista Esquinas

Médico, arquiteta e educadora negros quebraram barreiras do racismo e ocupam espaços na sociedade

Por Isabel Mello : novembro 21, 2020

Reprodução: Instagram - @barbariidade / @drfleuryjohnson / @lua_tolentino

Alvos constantes de racismo, eles não perdem a esperança e encorajam a juventude negra a seguir em frente

“Tem uma frase que foi dita por um aluno meu que pra mim é um mantra. Na hora de registrar como foi uma atividade, ele escreveu: ‘Eu aprendi que a pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar’”. Com os olhos marejados, Luana Tolentino, 36 anos, colunista da Carta Capital, educadora e escritora negra, relembra esse e outros episódios, com a esperança de que dias melhores virão para a população negra.

 

Ver esta publicação no Instagram

 

Uma publicação partilhada por Luana Tolentino (@lua_tolentino)

Nos últimos anos, principalmente pela ampliação de ações afirmativas, os negros vêm ocupando mais espaço nas universidades brasileiras, chegando até a serem maioria entre os matriculados em faculdades públicas, segundo pesquisa do IBGE. Mas esse aumento não se encaixa em cursos de prestígio social. O Top 10 dos melhores cursos de cada carreira, segundo o Ranking Universitário Folha, apontou um acréscimo de 1% na presença de negros entre 2011 e 2016. Isto é, eles eram 26% dos alunos em cursos de ponta, e, cinco anos depois, representavam apenas 27%.

 

Os únicos negros na sala de aula

Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco, a recifense Bárbara Oliveira, 28 anos, explica o que sentia, como mulher negra, dentro do universo acadêmico. “Ao longo dos meses eu fui percebendo que estava sendo oprimida e convidada a me retirar daquele espaço. Eu tinha que me adequar, performar, mudar tudo. Tinha que me embranquecer para permanecer ali”.

A profissão escolhida por Bárbara é uma das que ainda retrata um grande déficit em relação à presença de pessoas negras. Sendo a única preta numa turma de 50 alunos, a arquiteta diz ter sofrido duas vezes: por ser mulher e negra. “A figura da mulher negra é hiperssexualizada, então um professor não titubeou e me escolheu como alvo para assédio sexual”, lembra.

 

Ver esta publicação no Instagram

 

Uma publicação partilhada por Bárbara (@barbariidade)

Nascida de pai e mãe negros, Bárbara conta que “aos trancos e barrancos” eles fizeram de tudo para que ela e o irmão pudessem ter um ensino de qualidade. Esse mesmo apoio da família foi recebido pela belo-horizontina Luana Tolentino: “Apesar de viver muitos momentos de precariedade, na minha casa sempre teve livros. Eu e meus irmãos nunca deixamos de ter material escolar, mesmo nos momentos mais difíceis.”

Com a oportunidade de estudar e o suporte da família, Luana entrou numa faculdade particular de Belo Horinzonte, onde se formou em História. Para chegar ali, teve de se esforçar e trabalhar para pagar as contas. “Entre os 13 e os 18 anos, eu trabalhei como doméstica, babá e faxineira. Quando eu fiz 18 e passei no vestibular da UniBH, ainda fiz faxina durante o primeiro semestre”.

Já dentro da academia, Luana relata que sentia uma desconfiança no olhar das pessoas. “Eu tinha boas notas e aí diziam ‘Ah, é só porque os professores gostam de você’ ou ‘Não tem como você ter feito essa prova sem colar’. O tempo todo uma desconfiança da minha capacidade e do meu potencial”, lembra.

A discriminação vivida por ela também atingiu Fleury Johnson, 28 anos, médico graduado pela UFRJ, onde era o único negro na sala de aula. “Na primeira prova que a gente fez na faculdade, eu tirei sete e pouco e as pessoas foram olhar a minha nota e falaram ‘Até o Fleury tirou uma nota maior que a nossa’”.

Veja mais em ESQUINAS

“Sofri racismo da polícia”, denuncia fotógrafo que cobriu ato antifascista

Racismo e preconceito: cantoras falam de suas experiências no mercado musical

“A cada negro que morre, um tanto de nós morre também”, diz ativista sobre casos recentes de João Pedro e George Floyd 

 

O perigo de uma história única

No mercado de trabalho, Luana sentiu na pele, diversas vezes, o racismo estrutural. Ela conta que, já há algum tempo trabalhando na recepção de um curso de informática, seus colegas relataram um comentário de sua chefe. “Depois de me entrevistar, ela foi até eles e falou ‘Olha, eu entrevistei uma garota, ela é muito bacana, muito inteligente, mas será que os clientes vão gostar de ver uma pessoa como ela na recepção?’”.

Um outro episódio ocorreu quando ela foi estrear como professora numa nova escola: “O porteiro perguntou ‘Você está procurando vagas para serviços gerais?’, porque, no entendimento dele, uma mulher como eu só poderia estar naquele espaço para exercer a função de limpeza, ele não conseguia me ver como uma professora, uma educadora.”

Ela ressalta que quando questiona essa situação de ser confundida “não é de jeito nenhum desqualificando quem exerce essa função, até porque eu mesma já exerci um dia. Mas é no sentido dessa expectativa de que, nós, mulheres negras, estejamos somente nesse lugar.”

A arquiteta Bárbara também já passou por situações semelhantes. “Fui confundida com a secretária da obra, quando, na verdade, eu era a estagiária de arquitetura”, diz.

Fleury também diz que, mesmo depois de formado, ainda duvidam de sua capacidade. “Muitas vezes, eu chego, explico tudo para o paciente e ele fala ‘quando é que passa o médico?’ Outras vezes, entram no quarto e acham que eu sou o maqueiro. A pessoa não quer imaginar que eu sou o médico”.

Racismo dentro e fora do Brasil

Fleury Johnson nasceu no Togo, país da África Ocidental, e veio ao Brasil estudar medicina em 2011 através do Programa de Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G). Ele conta que desde os quatro anos tinha o sonho de ser médico, e representatividade nunca lhe faltou: a população de seu país é majoritariamente negra e ele tinha como referência médicos pretos na família.

No entanto, o choque cultural foi grande quando chegou ao Brasil. Além de ter que aprender a falar português, ele foi recebido na universidade com perguntas e comentários considerados bizarros por ele: “Como você veio parar aqui?” “Você está roubando as nossas vagas.” “Tem avião lá no seu país? E celular?”

Bárbara teve a oportunidade de experienciar como é ser uma mulher negra fora do Brasil. Em 2014, ela conseguiu uma vaga para estudar na Itália, através do programa Ciências sem Fronteiras. “Então você vai morar na Europa? Com certeza vai voltar casada”, foi o que ela ouviu de seu chefe à época ao comunicar a mudança. “Aí eu falei: eu não estou indo para voltar casada, eu não preciso”. Para ela, ele a enquadrou “como a mulata exportação, o corpo que vai fisgar um homem branco e, assim, resolver a própria vida, quando, na verdade, eu fui estudar arquitetura, estudar italiano, fui realizar os meus sonhos.”

Na Itália, Bárbara explica que o racismo fica no nível dos olhares, e que conseguiu experimentar uma liberdade que aqui no Brasil ela acredita que jamais vai conseguir. “Quando eu me entendi como mulher negra fora desse território, eu pude perceber como o Brasil é violento. Porque, lá fora, claro, existe racismo, eu experimentei diversas situações racistas, mas o Brasil é muito pior, sem dúvida. Aqui é violento, é perverso, é velado e ao mesmo tempo descarado.”

 

Longe do lugar-comum

Fugindo das estatísticas, os três são exemplos de superação. Luana Tolentino acaba de passar no doutorado em Educação da UFMG e é autora do livro Outra educação é possível. Com um sorriso no rosto, ela declara: “Isso me dá um orgulho muito grande, porque não se espera que uma pessoa como eu seja capaz de escrever e de publicar um livro.”

 

Ver esta publicação no Instagram

 

Uma publicação partilhada por Luana Tolentino (@lua_tolentino)

Bárbara Oliveira atualmente mora em Salvador e é mestranda no programa de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia. ”Desistir já é o projeto do racismo, então a gente tem que frustrar esse projeto, insistindo, buscando forças, apoio e acreditando que a gente pode fazer a diferença”, afirma a arquiteta que, hoje, percebe como seu esforço valeu a pena.

Fleury, que atravessou oceanos para estar no Brasil, expõe seu apoio aos jovens e futuros médicos negros brasileiros: “É o meu dever conseguir inspirar jovens negros a se tornarem médicos. Continuem lutando, saibam que é possível e, nós, que já somos formados, estamos para acolher, abraçar e ajudar, podem contar com a gente!”