Os caminhos para a resistência negra pelos bairros de São Paulo - Revista Esquinas

Os caminhos para a resistência negra pelos bairros de São Paulo

Por Camilly Vieira : junho 5, 2025

Da esquerda para a direita: Gabriel Santana, Vinicius Martins, Wellinton Souza e Kamila do Rocio - Foto: Camilly Vieira

Roda de conversa reúne vozes de resistência para uma discussão sobre as raízes, memórias e ancestralidade do povo negro na construção dos bairros da cidade de São Paulo

Um debate sobre o resgate da negritude em diferentes regiões de São Paulo reuniu participantes em uma roda de conversa marcada pelo compartilhamento de histórias e reflexões sobre o reconhecimento e patrimônio cultural dos povos negros na construção de diversos bairros da capital paulista.

A programação contou com a presença de quatro convidados eminentes, sendo eles, Kamila do Rocio, Wellinton Souza, Gabriel Santana e Vinicius Martins.

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Da esquerda para a direita: Gabriel Santana, Vinicius Martins, Wellinton Souza e Kamila do Rocio – Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

Desenhando cidades, resgatando memórias

Kamila do Rocio é arquiteta urbanista graduada pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), que apresentou como tese de TCC um projeto de reformulação e resgate da ancestralidade negra no bairro da Liberdade, conhecido predominantemente pela presença da cultura oriental. Sua tese foi nominada como: “Lugar de Memória: Um Itinerário para Reviver a História Negra do bairro da Liberdade” e foi expandida por Kamila conforme seu projeto foi sendo desenvolvido, tomando proporções maiores.

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Com o microfone, Kamila Rocio – Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

Kamila relatou pontos cruciais e experiências vividas por ela dentro da universidade. Além de ter optado por um curso elitista por natureza, cursou arquitetura e urbanismo em uma cidade maioritariamente composta por descendentes europeus. Diante da minoritária quantidade de alunos negros na instituição, como reiterado por ela, Rocio encontrou apoio no coletivo negro de sua universidade.

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Kamila Rocio e a apresentação visual de sua tese. Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

Durante a palestra, Rocio exibiu seu projeto de urbanização voltada as raízes negras dentro do bairro que hoje é estritamente considerado oriental. Apontou as personalidades que fizeram parte da construção daquele ambiente e como não há dados sobre o devido reconhecimento, tanto para os ex-escravos responsáveis pela tradição negra em muitas partes da cidade, como também edifícios que permanecem ali, porém de maneira camuflada em meio a quantidade de feiras orientais. Kamila afirma que o que almeja não é a substituição de uma cultura pela outra. Mas desenvolve, a partir de seus projetos, maneiras para que ambas as histórias tenham voz na história de construção e empenho cultural do bairro.

Suas ruas, que hoje são cenários voltados ao turismo e aos amantes da cultura japonesa, chinesa ou coreana, já foram ambientes de tortura aos negros e escravidão, sendo o nome “liberdade” justificado pelo enforcamento de “Chaguinhas”, um militar negro que após liderar uma revolta em Santos, foi condenado a pena de morte, em 20 de setembro de 1821. No dia do seu enforcamento, o povo gritou por liberdade.

Quem conta a história, é quem viveu

Wellinton Souza é idealizador do coletivo e do documentário “Negros do Bixiga”, e atuante no movimento negro desde jovem, integra o Conselho do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, sendo responsável pelo resgate da história negra de um dos bairros mais tradicionais de São Paulo, conhecido majoritariamente pela influência de imigrantes italianos. O Bixiga é, de fato, um bairro de imigrantes. Composto por massa e tambor. Entre samba no pé e sotaque italiano.

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Wellinton Souza, idealizador do coletivo e do documentário “Negros do Bixiga” – Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

O papel de Wellinton e de seu coletivo tem sido resgatar, através de entrevistas em formato documental, a história do bairro através das perspectivas da população negra que fizeram e continuam fazendo parte do desenvolvimento da região, pois em sua concepção, a história precisa ser contada por quem a viveu. Diante disso, a entrevista feita com um vendedor de pipocas da entrada do Teatro Sérgio Cardoso, um dos mais prestigiados da cidade, foi destacada algumas vezes por Souza durante a roda de conversa.

Além da história do vendedor ter marcado o coletivo e o próprio Wellinton, o pipoqueiro relatou que jamais havia entrado em um teatro, mesmo tendo trabalhado na frente de um dos maiores da capital paulista por décadas. Souza reitera o fato de que milhões de jovens negros, até os dias de hoje, ainda não se sentem pertencentes de ambientes culturais como o Sérgio Cardoso e por isso, não é difícil encontrar jovens na faixa dos seus vinte, trinta anos, que nunca tenham pisado em um teatro ou salas de cinema específicas.

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Wellinton com o microfone. Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

Wellinton, com toda a sua experiência, conhecimento e sensibilidade ao falar sobre o tema, através de seus posicionamentos abriu espaços para questionamentos que reverberaram para os demais convidados e até mesmo para o público que os acompanhavam. Como por exemplo, o fato de um bairro como a Bela Vista ou Morumbi não serem considerado periféricos, mas o Bixiga e o Paraisópolis serem considerados. O Bixiga pertence a Bela Vista e Paraisópolis pertence ao Morumbi. Ou seja, através de analogias, desmistificou narrativas que as divisões não são geográficas, mas são sociais e políticas, pois o que define a periferia não é o CEP, mas quem por ela é ocupada.

Além disso, foi responsável pela última indagação da palestra, questionando-os sobre quando haviam passado a se reconhecer como pessoas negras dentro da sociedade. Neste ponto, Souza afirmou, “Pode ser que você leve anos para se reconhecer como um corpo negro. Conheço pessoas que se entenderam negras após os 30” – e assim, através deste questionamento, encerrou o bate-papo.

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O samba direto da fonte

Gabriel Santana é jornalista formado pela Unesp de Bauru, apaixonado por narrativas que envolvam a realidade e os interesses populares. Através de seu trabalho busca colocar emoção em acontecimentos que passam desapercebidos pelo cotidiano. Santana é repórter e trabalha no veículo independente Alma Preta, do também convidado e co-fundador Vinicius Martins. É movido por curiosidade e enxerga no seu trabalho a possibilidade de entender um pouco sobre todas as coisas, inclusive, sobre a própria história.

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Gabriel Santana sendo entrevistado – Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

“Sou um negro de pele clara”, afirma Santana. No bate-papo manifesta as dificuldades que teve para se entender como uma pessoa parda, além de visualizar a sua infância como uma criança criada por pessoas negras e rodeado por tal cultura, especialmente por costumes e crenças religiosas de matriz africana.

Dentro de suas vivências, alimentou o amor pelo samba – o qual leva consigo até hoje ao ter a oportunidade de cobrir grandes eventos da música. Carrega no coração a emoção de ter entrevistado o grupo “Fundo de Quintal”, que cresceu ouvindo pelos cômodos de casa. Através de seus relatos e experiências, fala com muito carinho sobre os lugares e objetivos que teve a oportunidade de alcançar.

Um jornalismo com identidade

Vinicius Martins é jornalista de formação pela Unesp e co-fundador da Alma Preta Jornalismo, que atua diretamente com pautas interligadas aos direitos humanos, política, esporte, cultura e questões étnico-raciais. Já trabalhou para veículos como Folha de São Paulo e para o Instituto Vladimir Herzog.

O portal de notícias Alma Preta teve origem ainda na universidade. Vinícius, juntamente com mais três amigos criaram um portal para tratar sobre a cultura negra, representatividade e uma cobertura mais potente sobre casos de racismo no Brasil. Passaram a evidenciar acontecimentos positivos nas periferias, a diversidade cultural afrodescendente e assim, transformaram um simples blog universitário em uma fonte alternativa e provocativa na qual as pessoas podem e devem beber.

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Vinicius com o microfone – Foto: Camilly Vieira
Foto: Camilly Vieira

Martins trouxe falas de extrema relevância para a história negra no Brasil e como a mídia tradicional continua abordando e lidando com a cobertura dos casos de racismo que são pertinentes por todo o Brasil e no mundo. Além disso, abordou a cultura nordestina, o reconhecimento negro, inteligência artificial e o papel das redes socias para o movimento.

A palestra, realizada pelo coletivo AfriCásper – coletivo negro da Faculdade Cásper Líbero – foi repleta de ensinamentos, não somente à comunidade negra, mas também àqueles que buscam maiores compreensões sobre a história e a melhor maneira de democratizar a informação a partir de dados factuais e contexto histórico, evitando, assim, a reprodução de narrativas excludentes e seletivas.

O contexto histórico não é simples de ser repassado. É um processo educativo e cultural que está sendo e continuarão a serem realizados por pessoas como estas que estiveram presentes neste bate-papo, iluminando alunos e educadores a terem maiores desenvolvimentos de consciência sobre a história do povo negro na cidade e no país em que vivemos.

Editado por Giovanna Moretti

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