O Grupo de Amigos do Centro de Pesquisa Clínica do HC criou a Corrente Solidária, que apoia meninas trans com doações de alimentos e itens de higiene
No fim de março, a pandemia de covid-19 já havia mudado toda a rotina do Centro de Pesquisa Clínica (CPC) do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Boa parte dos estudos foi paralisada, adotou-se esquema de trabalho em rodízio e home office para o grupo de risco. Em meio às transformações, um pedido de socorro. Amanda, voluntária de uma pesquisa do CPC, mulher trans cujo sobrenome não será revelado para preservar sua identidade, procurou Edimilson Alves Medeiros, membro da Educação Comunitária do Centro. A quarentena havia feito a renda de Amanda minguar. Edimilson se sensibilizou. Assim, surgiu a ideia de criar a Corrente Solidária, ajuda para meninas trans em situação de vulnerabilidade por conta da pandemia do novo coronavírus.
As necessidades das transexuais têm origem no fato de grande parte delas depender da prostituição como meio de sustento. Pelos dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população trans brasileira trabalha como profissional do sexo. Com as medidas de isolamento social e a diminuição de fluxo de pessoas nas ruas, essa atividade se torna impraticável, privando-as de garantir a compra de itens básicos para a sobrevivência.
“Algumas das meninas que trabalham com programa moram na casa da cafetina. Nesse momento, como não estão conseguindo fazer programa, a cafetina não cobra o aluguel. Porém, elas não têm dinheiro para comprar comida, então estão passando necessidade de qualquer forma”, diz Taís Vargas, assessora de comunicação do CPC e supervisora do projeto Corrente Solidária. Tendo isso em mente, a campanha de arrecadação visa recolher fundos para a compra de cestas básicas com alimentos e produtos de higiene pessoal.
Inicialmente, a campanha buscava ajudar as pessoas trans que já estiveram em contato com o Centro. Em seguida, outras instituições causa também se engajaram no projeto, como o Centro de Cidadania LGBT. “A ideia é continuarmos ajudando todo mundo e, aos poucos, incluir também homens trans. Assim, conversaremos caso a caso, para sabermos a quem dar preferência”, afirma Taís.
Na última sexta-feira (17/04), dez cestas básicas foram entregues às organizadoras da festa “Terça Trans” para serem doadas às mulheres ajudadas por esse projeto. A próxima meta é conseguir arrecadar 16 cestas para o Instituto Nice, de Francisco Morato, que trabalha com a reinserção social e a capacitação profissional de mulheres transexuais e travestis e cerca de dez cestas básicas para as mulheres que trabalham perto da Praça da República.
Segundo Taís, o projeto está previsto para durar até o fim do período de isolamento social. Porém, as cestas continuarão a ser entregues até que o fundo se esgote. “Atualmente estamos pensando em manter isso como um projeto voluntário. Mas vai tudo depender do que irá acontecer”, afirma.
A arrecadação foi dividida em duas frentes: uma de recebimento interno e outra de recebimento externo. Na interna, ou seja, dos funcionários do próprio CPC, do Lim 60 — Laboratório de Imunologia Clínica e Alergia — e de alunos da Faculdade de Medicina da USP, podem ser doados produtos de primeira necessidade ou dinheiro. No recebimento externo, as doações são apenas em dinheiro, com depósito bancário feito em uma conta destinada apenas ao projeto. Para ter acesso à conta, o doador deve entrar em contato com um dos três números disponibilizados na página vinculada ao projeto, em que são passadas as informações para o depósito. Além do contato telefônico com os doadores, é pedido um email para inclui-los numa carta de agradecimento, em que constará um relatório dizendo como foram usados os fundos arrecadados e quem foi beneficiado.
Abandono escancarado pelo vírus
Apesar de estarmos vivendo um momento de calamidade pública, em que a necessidade de ajuda para pessoas trans é urgente, suas demandas remetem a um período muito anterior ao início da pandemia, já que essas pessoas são marginalizadas socialmente.
Segundo dados do Índice Estigma da ONU Brasil, 90,3% da população de transexuais e travestis entrevistada já passou por, pelo menos, uma situação de estigma ou discriminação por conta da sua identidade de gênero. Isso acarreta diversos problemas, como o abandono de suas famílias, a evasão escolar e, por conseguinte, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Isso é comprovado por números desse mesmo senso, que mostra que apenas 16,5% dos entrevistados têm grau superior e 12,8% declararam estar empregados.
Fica claro que as demandas de ajuda da população trans foram apenas agravadas e explicitadas pela pandemia. Segundo Edimilson, isso ocorre porque “essa população sempre é excluída e nunca é pensada dentro das políticas de estado, tendo seus direitos constantemente violados”.
“Na pandemia, esses corpos novamente gritam que algo está faltando, que algo não foi feito. A gente tem toda uma política de inserção, de acolhimento, de assistência, mas ainda assim não tivemos uma mudança sociocultural que naturalizou essas pessoas”, completa o organizador da Corrente Solidária.
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