Como o projeto A Vida Vale Mais muda o cotidiano de antigos moradores de rua por meio da educação
Luana Silva não sabe responder quando chegou em São Paulo, muito menos quanto tempo permaneceu nas ruas. Mas lembra do momento em que deixou sua casa, onde vivia com os pais, que acobertavam as agressões que partiam da irmã. Nas ruas, virou usuária de crack, cocaína, lança-perfume. Chegou a desenvolver uma dependência física e emocional a uma cadeira de rodas. Usava fraldas. Envolveu-se em brigas que resultaram em uma facada e queimaduras pelo corpo. Quanto mais meses se passavam, mais improvável era sua reinserção social. O tempo de rua faz um morador nessas condições se afastar do convívio, como se ele perdesse o sentido de viver em sociedade.
A instituição A Vida Vale Mais, criada pela assistente social Mila Sumadossi há oito anos, combate esse problema: integra e acolhe os que chegam até o projeto. A iniciativa foi tomada quando, em 2010, foi instalado um centro de acolhida perto da região em que Sumadossi morava. Num começo muito tímido, os moradores da Barra Funda iniciaram um espaço de leitura onde ofereciam livros e revistas para os moradores do Centro. Por problemas com o local em que o projeto estava instalado e com a falta de visibilidade, foi necessário se retirar do espaço, conta a fundadora.
Mas a turma já estava consolidada. Sumadossi foi em busca de um lugar em que pudesse continuar com a ação e encontrou, em uma sala de reunião de uma Unidade Básica de Saúde, a oportunidade de seguir adiante. Por ser um ambiente público, logo o projeto se tornou conhecido e precisava ser ampliado. Foi quando um amigo ofereceu ajuda financeira para que a iniciativa pudesse ter continuidade em um imóvel alugado. Nesse momento, já estava claro que a inclusão por meio da educação era a essência do projeto.
Alcoolismo, perda de emprego, conflitos familiares. São algumas das razões que levam alguém a viver à margem da sociedade, segundo dados da Prefeitura de São Paulo divulgados em 2015. Reinserir essas pessoas torna-se gradativamente mais difícil à medida que esse tempo aumenta, como sintetiza Tatiana Guimarães, psicóloga voluntária da ONG.
De segunda a sexta-feira, são dadas aulas de português, matemática e artes por uma equipe formada por pedagogos, médicos, professores de educação inclusiva e psicólogos. Todos voluntários. Para participar do projeto, os ex-moradores de rua devem ter o perfil de acordo com os pré-requisitos da ONG: não estar envolvido com drogas ou álcool, não apresentar traços psiquiátricos e estar morando em abrigos ou albergues. Mila Sumadossi conta que foi necessário realizar essa pré-avaliação porque o progresso visado pelo projeto só aconteceria na vida dessas pessoas se elas dispusessem do mínimo de estrutura.
Novos ensinamentos
No começo, a turma formada tinha dez alunos. Hoje, são 40. As aulas ocorrem no período da manhã com pessoas que apresentam deficiência amena e, no período da tarde, participam aqueles que necessitam de maior atenção. Dentre os estudantes, 80% têm algum nível de deficiência intelectual, afirmou a idealizadora da ONG. Do ponto de vista dos voluntários, o ideal de reinserção é que os ex-moradores de rua consigam ser independentes, e não obrigatoriamente voltem à convivência familiar que deixaram para trás.
Um dos acolhidos é o alagoano José Petrucio, de 60 anos. Apesar de não revelar os motivos, ele fugiu da casa da avó aos 8 anos. Detestava o lugar onde morava. Entrou em um ônibus da rodoviária da cidade e se escondeu no banheiro até chegar na Bahia. Após ouvir relatos sobre São Paulo e as condições de vida, mudou-se para a cidade paulistana onde viveu por 40 anos na rua. “Eu não dou sorte”, lamenta.
O único laço familiar no qual se aprofunda mais é com a mãe, que deve ter 75 anos pelas suas estimativas. Mas ele não sabe se ela ainda está viva. “Há mais de um ano não ligo para lá, porque não tinha telefone e não quero saber”, explica. “Não tenho do que reclamar. Gosto de tudo aqui e ganhei oportunidades”. Petrucio gosta de fazer cálculos matemáticos e mexer com os números, não gostou da oficina de preparar sushi – “achei amargo demais”, diz – e repete várias vezes que faltou uma única aula para trabalhar como servente carregando entulho. Tem orgulho de estar aprendendo a mexer no computador. “Meu sonho é ser rico, ter uma fazenda para trabalhar e fazer uma horta”, fala, algo que não tinha chances ou estrutura de fazer antes do projeto.
Fora das salas de aula, também é realizado um acompanhamento psicológico semanal por parte de Tatiana Guimarães. Psicóloga voluntária do A Vida Vale Mais, ela conheceu a ONG pelo Facebook e se interessou pelas demandas do projeto. As sessões são feitas de duas formas: individualmente, em que Guimarães se aprofunda nos traumas recorrentes na história de vida dos acolhidos, e em grupo, que tem pretende integrá-los, já que chegam com um sentimento individualista. Ela diz que eles pedem que a sociedade os respeitem e deixem de olhá-los com pena, mas não têm a percepção de que também devem se ajudar e respeitar uns aos outros no dia a dia.
Sem fins lucrativos e exercendo o papel que deveria ser função do poder público, as ONGs são um segmento que tem ganhado cada vez mais representatividade. Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) mostrou que o Brasil possuía 820 mil projetos existentes em 2017.
Com a ajuda terapêutica oferecida pelo A Vida Vale Mais, Luana Silva – citada no início desta reportagem – voltou a andar e foi apresentada aos absorventes íntimos. As atitudes violentas ficaram para trás, parou de arremessar cadeiras no meio das aulas do abrigo, por exemplo. “Foi um trabalho difícil, mas com bom resultado”, afirma Guimarães. Para a fundadora do projeto, esse é um trabalho que visa integrar, acolher e reinserir os que chegam até eles, dar uma nova oportunidade de vida.