Cortiços: as mais antigas moradias populares do Brasil resistem no bairro paulistano da Bela Vista para contar histórias
Sendo a cidade com os melhores índices socioeconômicos do País, São Paulo é a representação da dicotomia nos indicadores que caracterizam a sociedade. A disparidade assombrosa entre os 96 distritos paulistanos é ilustrada pelo Mapa da Desigualdade, realizado anualmente desde 2012 pela Rede Nossa São Paulo. Neste ano, foram analisadas dez diferentes áreas com 53 indicadores. Segundo o estudo, a Bela Vista é um dos 11 distritos que não contemplam favelas em sua área. É necessário contrapor esse dado, já que ele maquia a questão das moradias irregulares do bairro. A realidade é sempre multifacetada, o que impede a condensação dela em uma única representação. Dessa forma, apesar de não terem sido citados, os cortiços existem nessa região e perduram na história.
A história dos cortiços
A origem desse tipo de moradia na cidade de São Paulo remonta ao fim do século 19, por volta de 1870, período do início da industrialização e urbanização da capital paulistana. A conjuntura era a chegada da ferrovia e dos imigrantes inicialmente italianos, que trabalhavam em postos fabris durante longas horas e tinham baixas remunerações. A abolição da escravatura, em 1888, também resultou numa nova ordem sócio-política. Trabalhadores e ex-escravos – a população mais carente economicamente –, impossibilitados de arcar com a compra de um imóvel ou aluguel, acabaram tendo que recorrer a uma forma mais barata de se morar. Os cortiços surgiram para suprir um déficit crônico de moradia que apareceu nesse cenário. A partir disso, esse modelo habitacional se expandiu e se tornou a grande opção popular.
Na obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, o personagem de João Romão possibilita a difusão dessa estrutura visando o enriquecimento: “(…) Indo em hasta pública algumas braças de terra situadas no fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela. (…) Ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos de sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores. ” (p. 07-08)
Acontece que o aumento da quantidade desses imóveis, nesse caso, não foi atrelado à sua qualidade nem no cortiço do livro de Azevedo nem na cidade de São Paulo. A homogeneidade, no que diz respeito à infraestrutura, não foi possibilitada a todos. E, assim, a maioria de seus habitantes não teve acesso a saneamento básico, ventilação, iluminação e privacidade. Os serviços básicos eram privilégios para poucos. Foi criada uma diferenciação devido a um projeto de poder higienista que permitiu a desigualdade e exclusão dos mais carentes dos estratos sociais.
Várias foram as tentativas de erradicar os cortiços ao longo dos anos, mas eles ainda subsistem. Estão presentes em vários pontos centrais da cidade, sobretudo pelo fato de possibilitarem o fácil acesso ao trabalho, a creches, escolas, comércios e postos de saúde. Identificá-los ao primeiro olhar não é tarefa simples para os mais dispersos, pois diferentemente das favelas ou loteamentos ilegais, os cortiços se misturam na naturalidade do cotidiano. Sua presença é velada e passa despercebida em meio aos bairros tradicionais e de alta renda.
No entanto, basta uma espiada mais meticulosa para enxergar esses organismos habitacionais vivos e cheios de histórias por detrás de pequenas portas de edificações de épocas passadas. O bairro da Bela Vista é apenas um dos que os contemplam, e lá fomos conferir a história de seus moradores.
Cortiço da Maria Alexandre Lima, a Dona Maria
É na Rua Almirante Marques de Leão, número 227, que Maria Alexandre Lima, ou Dona Maria, 62 anos, reside. Natural da Paraíba, veio para São Paulo quando tinha 20 anos e mora na pensão, como ela mesmo denomina, há 19 com sua filha e seu filho Rafael, 19 anos. Ele tem dislexia, um distúrbio neural que dificulta seu aprendizado. Por isso, toma remédios controlados desde os sete anos de idade e faz tratamento no Centro de Atenção Psicossocial e na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais e, hoje, trabalha no McDonald’s.
Dona Maria atualmente recebe o benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e atua em uma casa de família há 10 anos. Profissionalmente, já exerceu outras atividades: trabalhou em supermercado e em restaurante, como copeira. Quando questionada sobre o porquê de morar ali, respondeu: “Para mim é uma opção muito boa, maravilhosa. Não tem bagunça, não tem briga, não vem polícia, não tem gente errada. Aqui só mora família, criança. As pessoas que vivem aqui moram há muitos anos”. Diz, também, que esse foi o melhor lugar que encontrou já que “de noite você pode dormir até com a porta aberta porque não entra ninguém.”
No mesmo terreno em que vive, há outras cinco casas que pagam água e luz individualmente, mas antes tudo era compartilhado. Ela relata nunca ter pago aluguel devido à morte do dono do local, que ocorreu antes de sua mudança.
Cortiço da Dona Maria Ferreira da Silva
Maria Ferreira da Silva veio do Ceará e foi morar na Vila União, em São Miguel. Seu marido, José Bonifácio da Silva, é salgadeiro, mas está desempregado e, por esse motivo, faz bicos. Segundo ela, havia alguns problemas em São Miguel: “Era muito ruim, entrava lama e água em casa”. Por isso, acabou mudando para a Rua Jandaia, número 18, onde vive há 21 anos. Ela é dona de casa e nutre grande satisfação pela sua residência, pois há médicos, escolas, mercados e feiras nas proximidades. “Todos aqui são família, todos são conhecidos. Não tem bagunça, não tem briga. Cada dia que passa vai melhorando. Aqui, graças a Deus, ninguém é de mal com ninguém. Tudo é família”, afirma.
A dona de casa pontua que “o desempregado longe do centro passa mais dificuldades”. E, onde mora, “as coisas são mais fáceis”. Sobre sua privacidade, é categórica quando fala a respeito de vizinhos que querem passar dos limites: “Vamos zelar pelo lugar que a gente mora.”
O cortiço foi abandonado por seus antigos donos em 1998 com muitas dívidas. Um oficial de justiça disse que se o imóvel não tivesse algum responsável, seria leiloado. Foi quando José Bonifácio da Silva, que também é zelador, tomou a responsabilidade, indo até a prefeitura para negociar as contas pendentes. Por essas e outras, seu filho, Antônio Bonifácio da Silva, diz que a morada já foi ruim, mas que tudo ficou organizado. “Era bagunçado, não tinha prazer de morar.”, afirma. Sua mãe expõe satisfeita: “Eu amo o meu lugar, eu ‘tô’ no céu”.
Cortiço Rua Treze de Maio, 135
Sobre uma pequena porta, quase sempre entreaberta, encontra-se um cortiço de quatro andares. Ao adentrá-lo, de imediato, é perceptível sua extensão pela grande quantidade de cômodos dispostos um ao lado do outro.
É ali que André Luís Rodrigues de Souza, 19 anos, reside há dois meses com dois amigos. “O lugar é barato, bom e o convívio com as outras famílias é tranquilo”, segundo ele, que trabalha em uma esfiharia e já chegou a morar em outra pensão nos arredores.
Tal como Souza, Jeane Oliveira, que veio do Ceará há seis anos, também é positiva ao discorrer sobre o local onde mora há um ano com seu marido e seu filho. Ela trabalha fazendo geladinhos para o tio de seu marido vender. Também nordestina, Kellyane, 29 anos, é do Piauí e está em São Paulo há 15 anos. Durante esse tempo, já chegou a trabalhar como atendente, mas, no momento, está desempregada. Vive no local há oito anos, com suas duas filhas. “Quando eu vim para cá já era assim, organizado, de boa e o valor, quando comparado a outros lugares, é bom”, diz.
Regulamentação e leis em torno dos cortiços
No lançamento do Mapa da Desigualdade de 2019, em entrevista à ESQUINAS, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU), Luciana Royer, explicou a relação da arquitetura com políticas públicas que devem ser feitas para os moradores dos cortiços. “Políticas públicas para cortiços são diferentes de políticas públicas para a população idosa ou de um programa especificamente para famílias na área rural. Pensando em uma política nacional, você tem que ter, de fato, políticas para cada um dos estratos populacionais”, afirma.
Sua fala também remete a melhorias das condições urbanas dos cortiços existentes. Ela citou a Lei Moura (Lei 10.928/91), que define o que é um cortiço e estabelece padrões e parâmetros mínimos de habitabilidade a serem cumpridos pelos seus donos. “A aplicação da Lei Moura seria uma política de redução de danos de habitação. Entender o fenômeno de cada uma das precariedades habitacionais ajuda a pensar em que tipos de políticas nós temos que ter para elas”, segundo Royer.
A professora enxerga que “ofertas de unidades menores que tenham serviço de aluguel acessível podem ser uma alternativa muito importante para a saída dos cortiços”. Quando indagada sobre quais são os fatores determinantes para o sucesso das políticas públicas que promovem habitação social de qualidade, responde que “deve haver terra urbanizada disponível. Os cartórios precisam estar juntos, auxiliando os governos estaduais. Tem que ter uma série de ações relativas à democratização e ao acesso à terra. Para ela, o crédito habitacional precisa ser acessível. Na esfera nacional, a melhoria das condições de crédito e subsídio; na esfera estadual, das condições cartorárias de registro de terras e na municipal, infraestrutura urbana para as famílias.
A professora salientou, por fim, que apesar de haver muitas favelas no Brasil, é preciso urbanizar e “não necessariamente construir novas unidades ou remover as pessoas das favelas”. Assim, atrelando a aplicação da lei a uma eficaz administração do poder público, é possível combater as desigualdades sociais que promovem moradias sem condições ideais de habitação.