A parrilla Lo de Bebe abriu durante o colapso econômico de 2001, mas tem encontrado maior dificuldade na situação atual
São apenas 11h e a parrilla Lo de Bebe já funciona a todo vapor. Localizada no bairro de Palermo, no centro de Buenos Aires, a churrascaria recebe logo cedo as encomendas de carne e aquece suas grelhas, que ficam acesas até meia-noite. No final do expediente, o estabelecimento também fervilha de clientes saboreando a famosa parrillada portenha.
Na Argentina, foram produzidas mais de três milhões de toneladas de carnes apenas no ano de 2018, segundo dados do Instituto de Promoción de la Carne Vacuna Argentina (IPCVA). O grupo estima ainda que o consumo anual por habitante seja de 56 quilogramas – cerca de 153 gramas por dia para cada pessoa. Muito disso é consumido em parrillas. O foco desses restaurantes argentinos é servir carnes preparadas em grelhas muitos similares às brasileiras.
A Lo de Bebe é pintada com cores vivas e decorada com quadros e enfeites da cultura latino-americana, bandeiras de diversos países presas ao teto e inúmeros desenhos pendurados às paredes. Para seu fundador e gestor Gonzalo Molina Jalabert, conhecido como Bebe, apelido que deu nome ao restaurante, a atmosfera do local é um dos seus diferenciais.
O restaurante foi aberto em 2001, com um terço do tamanho atual. Na época, a Argentina passava por uma grande crise econômica, com 18% de desemprego e mais de 38% de trabalho informal, de acordo com o Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec), o IBGE argentino. À época, o consumo de carne argentino era de 64 quilogramas por habitante, número elevado em comparação aos 21 quilogramas per capita mundial dos dados de 2001 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Bebe enxergou nisso uma oportunidade: estava desempregado e investiu o resto do dinheiro que havia recebido de seu último salário para criar a parrilla.
Dezoito anos depois, a situação econômica do país não mudou muito. Cerca de 10% da população argentina estava desempregada no primeiro trimestre de 2019, segundo o Indec. Apesar do resultado ser menor do que em 2001, o consumo de carne diminuiu 8%, de acordo com o IPCVA, e a inflação subiu drasticamente no país. Entre abril de 2018 e o deste ano, a inflação aumentou 55%, afirma o IBGE argentino. Essa crise atual afetou a Lo de Bebe muito mais do que a anterior. “É impossível não sentir a crise”, comenta o gestor.
Para conseguir se manter, Bebe elevou o preço de seus pratos conforme a inflação. Mas não foi suficiente para acompanhar os gastos com água, luz e gás, que aumentaram na mesma proporção. “Se o restaurante vai mal, nós vamos mal”, afirma o responsável pela parrilla, preocupado com a situação de seus funcionários, também afetados pela economia do país. Os números de vendas do restaurante diminuíram. “Custa muito comer fora”. Antes, clientes assíduos iam ao estabelecimento três vezes por semana. Agora, esses o visitam apenas uma vez e ainda gastam a metade do valor do que consumiam antigamente. “Com a inflação, aqui não é um lugar barato”, afirma Bebe, desanimado.
“A classe média sentiu um impacto econômico muito grande”, comenta Bebe. A parrilla é frequentada por pessoas desse grupo econômico, principalmente. Segundo o governo local, para uma família entrar na categoria de classe média, ela precisa ganhar no mínimo 32.132 pesos por mês, algo próximo a 3.500 reais. Nesse cenário, uma pesquisa realizada pela consultoria Trendsity em 2018 aponta que 95% dos argentinos afirmam precisarem diminuir seus gastos. Más notícias para a Lo de Bebe, já que 75% indicaram que reduziriam o número de saídas e 40% minimizariam as despesas com comida e bebida.
Hora de dar a volta por cima
O fundador da parrilla é exemplo dessa realidade que afeta a Argentina. Ele mesmo conta que encolheu seus gastos. Teatro, cinema e restaurante foram as primeiras alternativas que cortou da “lista de despesas”. Porém, afirma que não pode perder clientes. Por isso, criou um cardápio vegetariano (com opções veganas), mesmo que isso possa parecer contraditório para uma churrascaria.
O dono da Lo de Bebe tem noção de que a forma como seu estabelecimento foi afetado pela crise argentina não chega aos pés dos impactos que ela teve entre a população de baixa renda. Dados oficiais do governo argentino apontam que existem 1.146 pessoas em situação de rua apenas em Buenos Aires. No entanto, a ONG Proyecto 7, que atua com essa população, afirma que esse número ronda seis mil. O dono da parrilla afirma que essas pessoas costumam passar pelo estabelecimento pedindo algum alimento. A partir disso, começou a realizar uma ação social em que dá as comidas já cozidas que sobram ao final do expediente a essas pessoas. Além disso, após o término de uma semana de trabalho, as comidas que ainda estão cruas são preparadas e distribuídas nas noites de segunda-feira em um ponto religioso próximo ao restaurante onde a população em situação de vulnerabilidade se concentra.
“Esse trabalho não deveria existir. Deveria ser trabalho do Estado”, critica Bebe. Ele explica que os policiais ou funcionários públicos não intervêm na distribuição das comidas quentes para os necessitados – como a Lo de Bebe não é uma ONG, a ação seria proibida. “Prefiro correr o risco do que deixar essas pessoas passando fome”. O gestor conta que no início da ação 20 pessoas recebiam os alimentos. Agora, esse número chega à casa dos 200.
Cravada no bairro de Palermo, conhecido em Buenos Aires pelos restaurantes de alta gastronomia, bares de drinques sofisticados e lojas de moda antenadas nas tendências mundiais, a Lo de Bebe enfrenta com coragem os dias de crise econômica argentina. Mesmo com sua criação na pior crise que assolou o país no final da década de 1990 e início dos anos 2000, é a partir de reinvenções como o menu vegetariano e as atividades para evitar o desperdício de comida que o restaurante sobrevive nesse quadro que afeta tantos outros estabelecimentos parecidos.