O regime após a Independência do Brasil conseguiu cristalizar mitos, heróis e romantismo, deixando de lado uma realidade oligárquica e escravocrata
Era 7 de setembro de 1822 e D. Pedro I anunciava o início do Império com o grito da independência do Brasil, que se imortalizaria 66 anos depois pelos traços do pintor Pedro Américo. Ali surgia também um árduo desafio para a corte portuguesa recém-instalada na colônia: deveriam criar e consolidar um império não apenas no plano físico, mas também no plano simbólico, construído pelo imaginário popular.
Até 1889, quando foi proclamada a República do Brasil e declarado o fim do império, o regime tinha consolidado mitos e fantasias a seu respeito – que, aliás, se fazem presentes até os dias de hoje. O próprio feriado da Independência do Brasil é rodeado por simbologias que exaltam a figura de D. Pedro I e da nação que surgia naquele momento, foi criado pelo próprio monarca e é comemorado anualmente em tradicionais desfiles cívico-militares pelo País.
“Portugal pensava no Brasil como um espaço em que eles poderiam se projetar para o mundo e a presença da corte lusitana fez com que se criasse a ideia de autonomia e de uma nação, um império sólido”, comenta Lúcia Helena Oliveira, historiadora e docente do curso de História na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Desde seu início já existia a preocupação de produzir símbolos alegóricos que transmitissem uma imagem sedutora para os novos súditos. Um bom exemplo é o pano de boca cortinado – espécie de cortina utilizada em teatros instalada ao fundo do palco –, elaborado por Jean-Baptiste Debret, artista francês que chegou ao Brasil em 1816 e que foi responsável por criar boa parte das imagens oficiais do período de D. João VI.
O pano seria disposto no teatro da corte, o São João, no Rio de Janeiro, onde D. Pedro I faria seu discurso de posse. Nele notamos elementos que denotam a ideia de um “império nos trópicos” como as palmeiras verdes ao fundo e, em primeiro plano, uma cornucópia derramando frutas típicas do país. Mais à esquerda, há uma barca amarrada e carregada de sacos de café e maços de cana-de-açúcar, dois produtos que giravam a economia local. O que chama atenção é a forma como o artista retrata os povos indígena e negro na obra: todos unidos, erguendo suas armas e instrumentos agrícolas pelo Império, sem qualquer tipo de conflito político ou civil.
Historiador e vice-líder do grupo de pesquisa Mídia e Estudos do Imaginário vinculado da Universidade Paulista (Unip), Jorge Miklos confirma essa preocupação. “De fato, a construção dos mitos e personagens tratava-se de uma política oficial do governo para que a monarquia projetasse sua credibilidade perante o povo.” O professor ainda destaca que a lembrança religiosa sempre pairava as obras para validar a ideia de que o imperador era um enviado fundamentado por Deus.
Na sucessão de D. Pedro I
Se durante o primeiro império o governo já buscava evidenciar e consagrar sua grandeza através das produções artísticas, no segundo, a partir de 1840, período em que o Brasil é governado por D. Pedro II, esse fato se torna ainda mais evidente. Inclusive, é fomentado pelo imperador, que investe intensamente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 e em funcionamento até hoje. A partir de então, a instituição tinha como objetivo estabelecer com “autenticidade” a cultura e a memória do país, lançando artistas como Pedro Américo, Antônio Carlos Gomes, Victor Meirelles e José de Alencar. O primeiro é responsável pelo quadro Independência ou Morte, de 1888, citado no início desta reportagem. Já o último é autor do romance indianista Iracema, de 1865, que daria cara às expedições coloniais que aconteceram nos séculos anteriores.
Em relação ao quadro de Américo, Lúcia Helena Oliveira relembra a origem da obra. “A própria ideia posterior do quadro da independência do Brasil é, praticamente, uma cópia de 1807, Friedland, do pintor Jean-Louis Ernest Meissonier”, explica a professora. A obra citada por Oliveira é um quadro que retrata a vitória de Napoleão Bonaparte na Batalha de Friedland, pintado um ano antes de Independência ou Morte. Oliveira ainda aponta que a quantidade de pessoas presentes na cena do Vale do Ipiranga, as roupas utilizadas pelo então proclamado imperador e sua pose heroica também não condizem com a realidade.
A professora também reitera a importância que o IHGB exerceu à época. “Foi o grande responsável por estabelecer o conceito das três figuras cruciais na origem da nação: o indígena, o africano e o português”, analisa Oliveira. “Tornou-se fundamental para mostrar que o país estava caminhando ao lado das grandes nações em questões artísticas, culturais e intelectuais.”
Essa memória afetiva e romântica do Império pode ser explicada por uma questão citada tanto por Lúcia Helena Oliveira quanto por Jorge Miklos. Para ambos, o que está por trás é a desilusão com a República que nos foi entregue em 1889. “Ela sempre foi de alguns, sempre foi muito oligárquica. Claro que houve mudanças ao longo dos anos, tivemos a Era Vargas e a República Democrática. Mas o nosso sistema político e partidário ainda carrega muitas semelhanças com o da República Velha”, diz Miklos.