“Um disparate esportivo”: o futebol feminino no Brasil pelos olhos da imprensa - Revista Esquinas

“Um disparate esportivo”: o futebol feminino no Brasil pelos olhos da imprensa

Por Ana Júlia Resende, Laura Monteiro, Luca Nieri, Matheus Arroyo e Pedro Cemin  : fevereiro 18, 2022

Jornal O Imparcial, edição do dia 15 janeiro de 1941.

Da proibição de Vargas à primeira transmissão em TV aberta, evolução do futebol feminino enfrenta obstáculos institucionais desde o início do século XX

Há 80 anos, o ditador Getúlio Vargas, após sofrer pressão pública, assinou um decreto que impedia a prática do futebol feminino, reforçando a cultura patriarcal arraigada à sociedade brasileira. O líder populista baixou a sentença em 14 de abril de 1941, alegando preocupação com as implicações que a modalidade poderia causar aos corpos femininos, isto é, ter os órgãos reprodutores “danificados” – prejudicando a pretensa função social atribuída ao gênero. 

Encontravam-se sozinhas. A grande mídia fechou os olhos para a realidade injusta que o futebol vivia: ela corroborou com a ideia de que não pertenciam àquele ambiente, o qual era (e ainda é) predominantemente masculino. 

futebol feminino

Jornal O Imparcial, edição do dia 15 janeiro de 1941.
Acervo

Ainda hoje, não estamos imunes a essa herança histórica e sofremos as consequências dessa decisão. Por mais que a visão da imprensa tenha evoluído, a luta por espaço continua em meio a muitos novos obstáculos a serem superados. 

Dos circos aos estádios 

Os primeiros registros que temos da prática do futebol feminino são dos anos 1920. As partidas concentravam-se em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte. Pasmem: os jogos aconteciam em circos.  

Isso significa que os picadeiros circenses foram pioneiros em reconhecer a existência da modalidade, embora ela não fosse tratada com a seriedade merecida, e sim como um show — a ideia de ver uma mulher jogando bola nunca havia nem passado pela cabeça das pessoas. 

“O campeonato acabava sendo uma oferta de sexta-feira, sábado e domingo. As pessoas pagavam mais de um espetáculo para ir ver futebol. Isso acaba com a ideia de que o futebol feminino não vende”, comenta Aira Bonfim, mestra pelo programa de História, Políticas e Bens Culturais da FGV-RJ e pesquisadora do futebol feminino. 

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Anúncio do Circo Irmãos Queirolo. Correio do Paraná, Curitiba, 5 de janeiro de 1934.
Acervo Fundação Biblioteca Nacional do Brasil

Lá pelos anos 1930, a prática da modalidade feminina foi inserida morosamente nos subúrbios do Rio de Janeiro, e Bonfim ressalta a importância da imprensa para a popularização da modalidade. A inclusão do futebol nos meios de comunicação foi fundamental para estabelecer vínculos com o mercado e, assim, proporcionar um aumento no público dos jogos e até possíveis patrocínios. “No início, a imprensa dá a notícia! A ideia vem dela, como algo diferente, uma notícia nova, uma novidade esportiva”. comenta. 

Ao mesmo tempo, porém, em que a imprensa apoiou e viabilizou o projeto, ela também foi uma das primeiras a derrubá-lo. Em 17 de maio de 1940, no recém-inaugurado estádio do Pacaembu, o amistoso entre Flamengo e São Paulo contou com um jogo de abertura disputado por mulheres: Casino do Realengo e S.C. Brasileiro. 

O fator “mulheres dentro de campo” virou polêmica antes mesmo de o confronto acontecer. O cidadão carioca José Fuzeira, sem embasamento sobre o que chamava de “movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças”, escreveu uma carta aos ministérios da Saúde e Educação, dez dias antes da partida, reivindicando a proibição da modalidade às mulheres ao alegar que a prática esportiva afetava “seriamente o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a ‘ser mãe’”.  

fut feminino

Diário da Noite, 07 de maio de 1940.
Acervo

Graças à repercussão da carta, a mídia também não reagiu bem ao jogo do Pacaembu. Iniciou-se uma campanha a favor da proibição, que viria a se concretizar em abril de 1941.  

Se por um lado o futebol masculino se popularizava cada vez mais nos discursos midiáticos, a imprensa apenas reforçava o que a sociedade desejava: boicotar e difamar publicamente mulheres que queriam realizar seus sonhos de serem jogadoras.  

O impedimento só vale para elas 

Os registros do tempo em que a proibição de entrar em campo estava em vigor são escassos. Vargas censurava a imprensa e ela, por sua vez, reforçava a opinião pública de que deveria haver uma condenação do futebol feminino e tinha o foco destinado apenas ao futebol masculino.  

As únicas notícias veiculadas pela mídia com algum tipo de ligação com o futebol feminino tratavam de denúncias aos jogos clandestinos que ocorriam durante aquela época. Vez ou outra eram publicados artigos de opinião que corroboravam com a concepção retrógrada de que o esporte “masculinizava” as mulheres e as impedia de exercer tarefas tradicionalmente “femininas”.  

 “As mulheres nunca deixaram de jogar futebol em nenhum momento, nem antes, nem durante ou depois da proibição.”, afirma Giovana Capucim, doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo.  

fut

O Imparcial, 16 de janeiro de 1941.
Hemeroteca Digital

Algumas questões, porém, ficam no ar: não havia sequer um grupo, por menor que fosse, a fim de abolir a proibição? A carência de documentação impossibilita uma resposta precisa. 

Desenvolvimento e modernidade 

Os anos se passaram e o Brasil entrou no desenvolvimentismo. Durante os anos 1950, principalmente no governo de Juscelino Kubistchek, havia um pensamento de que o país deveria se modernizar e se inserir no capitalismo internacional.  

JK se encontrava disposto a investir em mais categorias esportivas dentro do seu projeto de mudança. O cenário viabilizou uma discussão sobre um possível fim do impedimento que tanto inibia o crescimento da modalidade no país. 

Sem mais nem menos, no dia 31 de março de 1964, tudo mudou. O golpe civil-militar adiou todas as perspectivas de retorno oficial aos gramados que vinham sendo ensaiadas. “No final dos anos 50 e começo dos anos 60, tínhamos discussões de representantes de federações que falavam em acabar com a proibição. A ditadura vem e faz exatamente o inverso”, afirma Capucim. “Houve uma lista que o Conselho Nacional de Desportos (CND) soltou confirmando as modalidades que estavam proibidas para as mulheres. Para mim, não dá para a gente desvincular a ditadura com o aumento dessa repressão sobre o futebol de mulheres”. 

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Até no lixão nasce flor 

Em meio a um período tão frustrante, floresce a figura de Léa Campos, a primeira mulher a se tornar uma juíza de futebol no mundo. A mineira, apaixonada por futebol desde os seis anos de idade, cresceu em um país que não permitia a pessoas de seu sexo jogar futebol. 

Mesmo não almejando uma carreira de jogadora, ela quebrou diversas barreiras para a categoria. Após finalizar seu curso de arbitragem, em 1967, seu diploma foi suspenso por conta do Decreto-Lei. Léa, então, firmou uma batalha interna e se desdobrou para recuperar seu certificado. 

Enquanto juíza, já foi presa por promover partidas femininas, mas nunca pensou em desistir. Seu propósito sempre foi muito maior do que os obstáculos. 

Em razão do contexto repressivo, suas funções extrapolavam a aplicação das regras e disciplina dos jogadores – ela também cuidava das questões policiais. “Nunca deixei nenhuma menina ir presa por minha causa. A polícia vinha, falava para todo mundo correr e eu ficava sozinha. A bola era minha, a ideia era minha.”, conta Campos. 

Curiosamente, a despeito dos registros históricos fichados pela reportagem, Léa afirma que sempre pôde contar com o apoio da mídia. “A imprensa sempre esteve me apoiando com os dez dedos, com as duas mãos. Eu nunca tive nenhum problema com ela”, relata. 

Fim da proibição (com jeitinho brasileiro) 

Um dos grandes objetivos dos militares era mudar a postura do Brasil na conjuntura internacional. Seguindo as tendências de discussão sobre o fim da proibição das mulheres a diversas categorias esportivas, o governo demonstrou mudar de opinião sobre a pauta. 

O interesse era regularizar os esportes internacionalmente praticados por mulheres, não especificamente o futebol — pois assim seria garantida uma maior projeção do país no exterior. Por mais que a lei tenha sido revogada, a FIFA – comandada na ocasião pelo brasileiro João Havelange – não reconhecia o futebol feminino como uma modalidade oficial.  

O cenário era confuso e ambíguo: no papel, não havia mais proibição, mas as partidas continuavam clandestinas. Para variar, nada dos veículos de comunicação noticiarem essa bagunça. Na prática, a proibição só acabaria em 1983. 

Amanhã há de ser outro dia 

Apesar da conquista, o caminho para a inauguração da nova era no futebol feminino não foi nada fácil. Pelo contrário: a luta segue incansavelmente até os dias atuais pelos direitos das atletas da categoria. 

As conquistas são lentas e bastante recentes. A primeira Copa do Mundo feminina foi disputada em 1991, mas somente em 2019 o Mundial foi transmitido na TV aberta 

Esse atraso pode ser compreendido ao considerarmos que a imprensa acompanha a sociedade – e esta, por sua vez, ainda está permeada por preconceitos que impelem o interesse pelo futebol feminino.  

“A imprensa é uma empresa, tem que falar o que a pessoa que vai comprar o jornal e assistir o programa quer”, pontua Giovana Capucim. “Antes não havia transmissões do futebol feminino porque nós, como sociedade, não recebíamos aquilo”. 

Mariana Spinelli, apresentadora dos canais esportivos da Disney, é uma forte apoiadora do futebol feminino. Em doses diárias, ela luta, abraça e tenta, enquanto jornalista esportiva, dar a devida importância à prática. 

Hoje e o futuro 

A visibilidade em relação ao futebol feminino cresceu em níveis exponenciais após 2015. E tal reconhecimento não teria sido possível caso não houvesse a ajuda de pessoas interessadas em acompanhar a modalidade mesmo em tempos em que a grande imprensa não abrangia esse papel.  

Também, a mídia independente foi responsável por alimentar o esporte, divulgando os jogos, competições e resistindo pelo espaço nos veículos tradicionais. 

Laura Monteiro · Mariana Spinelli – Mídia Independente

O blog Ludopédio se consolidou como um exemplo de mídia alternativa responsável por reconhecer e defender a história da modalidade. 

“Você tem todo um contexto tecnológico que ajuda a levar essas informações. Os veículos de mídia hegemônica se ocupam de outras coisas e, portanto, ficou muito para a mídia alternativa ajudar na popularização”, declara Luciane de Castro, pesquisadora e colunista do blog 

Na Champions League feminina de 2021, a ESPN Brasil televisionou os jogos da semifinal e final. Com um fuso pouco oportuno para os brasileiros, os duelos da semifinal aconteceram às 7h30 da manhã pelo horário de Brasília. Superando até mesmo as expectativas mais otimistas, viu-se um recorde de audiência na televisão e uma explosão de menções sobre o jogo nas redes sociais.  

É a história sendo escrita sob nossos olhos. A evolução do futebol feminino é tão perceptível quanto justa. O futebol de mulheres já é respeitado em alguns setores da mídia e da sociedade civil, mas ainda se busca o respeito de todos. Hoje, a imprensa divulga, comenta e transmite. A sociedade assiste, torce e corneta.  

capas

Capas dos principais jornais esportivos da Espanha um dia após o Barcelona ser campeão da Champions League Feminina deste ano.
Acervo

Tudo isso aconteceu porque existiram e existem mulheres que nunca deixaram de abraçar a causa e lutar por aquilo que era, é e sempre foi delas por direito. Ora, se as partidas nos circos eram chamadas de espetáculos… Formiga, Marta e Cristiane são o quê?   

Editado por Juliano Galisi e Anna Casiraghi

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