Léguas ultramarinas: conheça a jornada dos três pesquisadores brasileiros na Antártica em busca da cura para a leucemia infantil - Revista Esquinas

Léguas ultramarinas: conheça a jornada dos três pesquisadores brasileiros na Antártica em busca da cura para a leucemia infantil

Por Maria Clara Matos, Maria Fernanda Pontirolle e Glícia Ferreira : julho 28, 2022

Da esquerda para a direita: Maria Victória, Guilherme e Sara. Foto: Martha Brandão

Guilherme, Sara e Maria Victória percorreram nove mil quilômetros em busca de fungos e plantas na região mais fria do mundo

Depois de passar um mês confinado em um navio de guerra, Guilherme Afonso Kessler observava a neve pela primeira vez. A alguns metros se encontrava o arquipélago das ilhas Rei George, na região da Antártica, onde o pesquisador de 26 anos passaria os próximos dias coletando amostras de fungos filamentosos para a análise de uma possível cura para a Leucemia Linfoide Aguda (LLA), tipo de câncer que acomete, principalmente, crianças até os cinco anos de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA).

ANTÁRTICA

Guilherme Kessler colhe amostras de fungos filamentosos em arquipélago na Antártica.
Martha Brandão

Mesmo com o corte de 92% das verbas para a pesquisa em ciência e tecnologia em 2021, o Brasil permanece um dos 12 países signatários do Tratado da Antártica, que utiliza a região no extremo sul do planeta como plano de fundo geopolítico para descobertas científicas. O Programa Antártico (Proantar) resiste há mais de quarenta anos com contribuições diversas: o descobrimento, por exemplo, de incêndios polares há mais de sete décadas e o desprendimento de icebergs gigantes por alterações climáticas são destaques do projeto.

A equipe de Guilherme, composta por ele, Sara Bohi e Maria Victória Magalhães, caminha progressivamente em direção a ajudar crianças brasileiras que sofrem da LLA. Os três trilharam a vida acadêmica na Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul, onde integram o Projeto Neva. Segundo Kessler, a oportunidade de ter a verba para a Antártica aprovada foi um tiro no escuro – por anos, o doutorando teve que lidar com a falta de materiais e suporte técnico nos laboratórios para a análise, como a carência dos elementos.

ANTÁRTICA

Da esquerda para a direita: Maria Victória, Guilherme e Sara.
Martha Brandão

A pesquisa dos três converge em um ponto específico: achar e manipular uma enzima dentro do ecossistema antártico que, sobrevivendo ao estresse das condições extremas de temperatura,  possa diminuir os sintomas da degeneração pela leucemia, que incluem cansaço, fraqueza, falta de ar e perda de apetite. Kessler utiliza seus três objetos de estudo principais para alcançar o objetivo: Aspergillus sp., Fusarium sp. e  Nigrospora sp., fungos que seriam produtores originais da enzima, que seriam, por si, o medicamento. Dentro da pesquisa de Sara e Maria, elas desenvolvem a tecnologia para trazer as plantas antárticas ao Brasil e as transformam em “biofábricas”.

Pela sua resistência natural a temperaturas extremas, sua reprodução acaba sendo necessária dentro dos laboratórios. A ideia, segundo Sara, é conseguir achar um modo das próprias espécies de plantas produzirem a enzima por si só. Guilherme também conta que, caso bem sucedida, a produção do remédio poderia ser distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro devido ao baixo custo de produção do plantio, o que representaria um marco histórico para a ciência brasileira na área de saúde e biotecnologia. Hoje, o INCA estima que pouco mais de 10 mil diagnósticos surgem no país a cada ano.

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Os três se instalaram em uma base científica próxima ao continente, em uma construção larga e escura. A região é, em tese,  inabitável – apenas militares têm permissão para viver dentro dos quase 14 milhões de metros quadrados revestidos por uma grossa camada de gelo e silêncio. A moradia temporária se destacava na neve e era comandada pela marinha brasileira, que governava segundo seus preceitos; horários rígidos e rotação nas tarefas domésticas eram situações regulares, às quais Maria Victória teve de se acostumar.

A pesquisadora tem 25 anos, é biotecnologista e atualmente doutoranda em ciências biológicas. Foi à Antártica em 2020 como pesquisadora para sua iniciação científica, para explorar a flora e a fauna limitada do continente. “A biotecnologia é estudar a vida e a partir disso: investigar e desenvolver uma tecnologia que possa favorecer a humanidade”, afirma. Ela conta sobre sua experiência trabalhando na Antártica, com toda a disponibilidade de água congelada, sobrevivendo com comida específica para o clima glacial. “Além de tudo, estávamos lá quando a pandemia começou. Sem internet, sem muito o que fazer. Inclusive, na volta, as fronteiras estavam fechadas por conta da covid-19. Lembro que paramos na Argentina. Chegamos lá por volta das 6h da tarde e lembro da quantidade de navios e turistas perdidos e desesperados.”

ANTÁRTICA

Maria Victória a bordo do Navio Polar Almirante Maximiano, conhecido pela tripulação como “Tio Max”.
Martha Brandão

Para ir pela segunda vez à Antártica, em 2022, Maria Victória passou quase 1 mês com sua equipe em isolamento, para garantir que iriam em segurança e sem coronavírus. “Ficamos parados no porto, todos trancados, de máscara. Foi o método que a marinha encontrou para nos levar em segurança. Eu entendo, mas realmente foi muito difícil”, relembra.

“Paramos no Chile para abastecer com mantimentos e seguimos para a Antártica. Do Chile, são 3 dias de viagem apenas. O difícil mesmo foi quando nos deparamos com ondas gigantes de 8 metros. A sensação é que você está livre no mundo, mas confinada no navio. É estranho. Muito diferente. As regras são muito rígidas. Não há nem possibilidade de se alimentar no horário que quer”. Maria Vitória diz que foi a experiência mais surreal de sua vida.

Quando questionada sobre o frio, a rotina rigorosa e o confinamento de um mês dentro do navio, a pesquisadora reforça ter sido difícil. “Mas eu voltaria, com certeza”, retruca. “Não me imagino fazendo outra coisa”.

Editado por Anna Casiraghi

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