Relações e afetos no ensino: como a pandemia mudou a vida escolar - Revista Esquinas

Relações e afetos no ensino: como a pandemia mudou a vida escolar

Por Fernanda Pradella Travaglini, aluna do Redação Aberta #3 : junho 10, 2022

Foto: StockSnap por Pixabay

Modalidade remota de ensino afetou toda uma geração de alunos e docentes; veja como a pandemia transformou a vida escolar

A vida escolar é marcada não apenas pela memorização de conteúdos, atividades e avaliações. É mais profunda quanto às sensações e sentimentos vivenciados, além de ser permeada a todo momento pelas relações estabelecidas entre pessoas de carne e osso.  ensino

Lev Vygotsky (1896 – 1934), psicólogo e pesquisador, aponta que é nas sensações que o estudante constrói, com a aprendizagem que desenvolve, o interesse por ela. Tal como na canção, laços compõem as experiências de ensino do estudante.  Um dos incontáveis impactos deixados pela pandemia da covid-19 é a modificação dos afetos escolares.  

O ano de 2020 foi aquele em que o caderno se tornou digital, o abraço foi substituído por mensagens em chat simultâneo e professores trocaram o giz por powerpoints. Apesar dos desafios que a educação enfrentou, talvez o maior deles ainda seja invisível – as relações entre alunos, professores e com o conhecimento. A experiência de aprender se transformou, como as relações que fazem parte da vida escolar. 

“Era uma quarta-feira em março de 2020 quando a UNICAMP anunciou a suspensão das aulas por 15 dias”, conta Marusha Marcello, coordenadora pedagógica da escola de idiomas CNA-Valinhos, professora de inglês e advogada. “Foi a primeira notícia que recebi sobre instituições de ensino encerrando atividades presenciais. O cenário se agravou e o que achamos que seriam apenas 2 semanas, tornaram-se 2 anos”, completa.  

Realidades distintas

O cenário relatado por Marusha foi uma das muitas realidades do Brasil ao longo de 2020 e 2021. As discrepâncias entre os ensinos público e privado ficaram ainda maiores. A rede pública, a depender do nível de ensino, não contou nem com aulas remotas, apenas atividades pedagógicas por vias assíncronas. É o que conta uma aluna da rede pública de ensino de Vinhedo-SP, que preferiu não se identificar. Sua mãe relata que a escola mobilizou esforços mas, devido à ausência de recursos públicos para custear aparelhos com acesso à internet, o Colégio Municipal de Ensino Fundamental, Anos Iniciais, não pôde manter as aulas. 

Outro cenário foi o caso do Centro de Mídias do Estado de São Paulo, voltado para a divulgação de aulas gravadas a alunos da rede pública no Ensino Fundamental – Anos Finais e Ensino Médio. Livia Ornella, estudante da licenciatura em Letras na PUC-Campinas, relata que os estágios obrigatórios da graduação foram realizados via aulas do Centro de Mídias. O maior prejuízo foi a ausência das interações sociais. “Eu sempre pensava na situação desses alunos – em casa, isolados dos amigos, dos professores. A escola é muito mais do que conteúdo – é relação, vínculo, afeto. Senti falta de observar como esses vínculos se formam em sala de aula”.  

A geração docente ensino

Os impactos da pandemia afetaram também na formação da nova geração de professores que realizaram seus estágios de maneira remota. Em 2021, o cenário de retomada presencial permitiu os vínculos face-a-face nas redes pública e privada, mesmo que com revezamento de alunos e muita instabilidade. Em 2022, a retomada com capacidade total se tornou possível. Apesar do cenário de alívio, marcas do período de isolamento são perceptíveis tanto no âmbito pedagógico, na aquisição de conhecimento, quanto no psicológico, gerando dificuldades de relacionamento, insegurança e inquietação.  

A psicóloga clínica Angela Roccon diz que é possível observar uma fragmentação das relações em 2022. Complementa sobre as diferenças entre o convívio humano em ambientes on e offline:  

“A criança precisa de espaços que ofereçam liberdade de movimentos, segurança, construção de sua autonomia e socialização com o mundo que o rodeia. A criança que vive em um ambiente construído por ela e para ela, terá facilidade de expressar sua forma de pensar, desenvolverá a linguagem como um todo de forma significativa e prazerosa e ampliará sua relação com o outro e com o mundo.”

Em contrapartida, aponta para o surgimento de um novo espaço de relações – o ciberespaço: eletrônico, imaterial, no qual também se formam relações que carecem de aproximação e fortalecimento de vínculos.  

“Toda aula é um conjunto de relacionamentos. Durante o ensino remoto, professores da rede pública relatam uma dificuldade nae troca de opiniões e ideias com os alunos. No ensino superior, notei o mesmo com os meus. No caso da pós-graduação, entretanto, uma vez que os alunos abriam a câmera, a relação foi mantida”, relata Eliane Fernandes Azzari, professora pesquisadora da graduação em Letras e do programa de pós-graduação em Linguagem, Mídia e Arte da PUC-Campinas (LIMIAR). “Constato que o olho no olho é fundamental”, complementa. 

Para a professora de língua portuguesa Ana Paula Perri, atuante nas redes pública e particular, o contraste entre a rede pública e privada é latente. “Na escola estadual, as atividades foram enviadas em documentos com orientações ou formulários online. Fez com que a relação entre professor e aluno deixasse de existir”, afirma. Ela analisa, ainda, que os alunos e professores retornaram para as salas de aula com abalos psicológicos muito fortes causados pelo isolamento. “Na escola pública, o comportamento dos alunos sempre foi um problema, mas agora, gerenciar isso é bastante difícil. Eles ficaram sem o convívio social por muito tempo”, finaliza. 

Ana Paula ainda relata ter observado um aumento de alunos com apatia, casos de depressão e outros problemas emocionais. Na escola pública, conta que o nível de motivação dos estudantes caiu: “não vêem sentido em estar lá”. A professora aponta que para o estabelecimento dos vínculos, opta por atendimentos individualizados.  

“Nas aulas gravadas, o vínculo com o professor dependia da minha força de vontade para assistir, e do carisma dele para dar aula para uma câmera. É como assistir um vídeo no Youtube, por obrigação e sem muito interesse”, relata Mariana Melo de Jesus, aluna do terceiro ano do ensino médio na rede particular. A aluna conta que a estratégia adotada pela sua escola foi uma alternância entre aulas assíncronas e conferências pelo aplicativo Zoom. 

O cenário relatado pelas entrevistadas também foi indicado no levantamento feito pelo Instituto DataSenado em dezembro de 2021, em que foram ouvidos pais de alunos em idade escolar, sem apontar rede pública ou privada. Dentre os relatos, há a percepção de baixa aprendizagem entre 2020 e 2021 e prejuízos para a sociabilidade – o que, de acordo com os pais, afetou o aprendizado de seus filhos. Reflexo, também, de uma escola que deixou de existir no plano material – e relações que se fragilizam diante da ausência de contato humano.  

Neste sentido, a UNESCO, através de observatórios globais, disponibiliza mapas interativos que relatam o fechamento e reabertura das escolas. Em matéria no site da instituição, indica os principais desafios globais e como superá-los. Dentre os quais, o restabelecimento dos vínculos é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo e de sua aprendizagem, assim como a valorização dos professores. 

*Redação Aberta é um projeto destinado a apresentar o jornalismo na prática a estudantes do ensino médio e vestibulandos. A iniciativa inclui duas semanas de oficinas teóricas e práticas sobre a profissão. A terceira edição ocorreu entre 30 de maio e 10 de junho. O texto que você acabou de ler foi escrito por um dos participantes, sob a supervisão dos monitores do núcleo editorial e de professores de jornalismo da Cásper Líbero.

Editado por Gabriel Serpa

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