Cientistas visualizaram luz atrás de buraco negro pela primeira vez. Doutoranda em astrofísica pela USP comenta feito e obstáculos da pesquisa no Brasil
Quando se fala em teoria da relatividade e buracos negros, é comum pensarmos em lousas repletas de equações e no arquétipo do “cientista maluco”. Esse conceito, no entanto, está muito mais próximo do nosso cotidiano do que imaginamos: tudo ao nosso redor é afetado pela ideia proposta por Albert Einstein em 1905. A gravidade, responsável por nos manter presos à Terra, é a manifestação dessa teoria.
Recentemente, a relatividade ganhou maior notoriedade porque cientistas da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, conseguiram visualizar luz atrás de um buraco negro. O feito inédito foi publicado na revista Nature em 28 de julho deste ano. Segundo Roberta Duarte, doutoranda em astrofísica na Universidade de São Paulo (USP), esse evento é mais uma comprovação da teoria da relatividade.
Mas, afinal, o que diz a tese de Einstein? Duarte explica: “A relatividade restrita introduz o tempo como uma nova coordenada, ou seja, o tempo não é mais absoluto, como Newton pensava. Inicialmente, Einstein introduziu um espaço-tempo plano, sem curvatura. Mais tarde, ele pensou na possibilidade desse espaço-tempo se curvar pela massa”. A cientista faz referência à famosa equação E = mc², em que E é a energia, m é a massa e c é uma constante. “A partir disso, apareceram evidências de que o tempo é uma outra dimensão e de que o espaço-tempo é curvo”.
O assunto pode parecer confuso, mas é possível lembrar que a lei da gravidade é a manifestação desse fenômeno: energia e massa estão diretamente relacionadas.
Buracos negros: tem luz no fim do túnel?
Buracos negros, por sua vez, são regiões do espaço-tempo cujo campo gravitacional é tão poderoso que absorve tudo à sua volta, inclusive a luz. Ao redor deles, há um disco de matéria com campos magnéticos próprios, que são capazes de rodar, levando consigo o espaço-tempo em si. Esse fenômeno produz calor e, com isso, a emissão de raios X.
“Quando estudamos buracos negros, tendemos a observar feixes de fótons (partículas elementares que compõem a luz) muito energéticos. São utilizados detectores que procuram fontes emissoras desses comprimentos de onda. Nesse trabalho [de Stanford], estavam usando um observador de raios X e apontando-o para uma fonte. Esperava-se que tivesse um buraco negro ali. É bem comum observar fótons de raios X quando se observa ‘candidatos’ a buracos negros. O que não esperavam era um segundo pico”, diz a especialista.
Dan Wilkins, pesquisador responsável pela descoberta, observou que parte dos mesmos raios X do primeiro pico foi refletida para trás do buraco negro. Como essa região é curva, “os fótons de raios X foram contornados e vieram em direção à Terra”, explica Duarte. Nunca antes tal fenômeno fora observado diretamente. Por conta disso, o feito teve grande repercussão na mídia.
Mas quais são as implicações desse feito? Segundo a pesquisadora, “o principal resultado é que a relatividade geral acertou mais uma vez”. A descoberta mostra que os buracos negros são de fato explicados pela teoria de Einstein e que curvam o espaço-tempo ao ponto extremo de distorcer o curso da luz, que corre em trajetória retilínea por conta de sua velocidade. “É claro que não temos uma aplicação direta e imediata, mas é um começo para compreender essa teoria e quem sabe, no futuro, ter aplicações para ela”, diz.
O cientista maluco
A física, em todos os seus desdobramentos, constitui-se como uma ciência essencialmente experimental. Mesmo na época de Einstein, quando o cientista não podia ver um buraco negro diretamente, seus estudos sempre partiram, além da reflexão, da observação empírica, guiando-se através de uma referência.
“Considerando uma pessoa caindo de um telhado em um determinado intervalo de tempo, dependendo do referencial, pode ser que a pessoa esteja parada e o chão esteja indo ao seu encontro”, diz a pesquisadora. “Einstein também pensou que, nesse caso, o tempo poderia estar congelado para o indivíduo em queda. Com esse pensamento, ele propõe que a velocidade é relativa e o tempo também”.
Atualmente, os estudos ocorrem de maneira diferente daquele período. Duarte explica que, dependendo da fonte candidata a buraco negro em estudo, será necessária a utilização de um telescópio capaz de captar raios gama ou raios X, como foi o caso do estudo da Universidade de Stanford.
“Essa observação demora de algumas horas até dias. A primeira foto de um buraco negro foi produzida em uma observação de três dias sem parar, com o uso de oito telescópios ao redor do nosso planeta. Depende muito da fonte e do clima da Terra também. É necessário que o clima esteja razoável em todos os pontos dos satélites”, conta a cientista.
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No caso dela, o trabalho consiste majoritariamente em realizar simulações, por meio do uso de códigos. “Estudamos densidade, pressão, velocidade e temperatura para cada instante de tempo”, explica.
Essas simulações podem facilmente demorar de dois a três meses para serem concluídas. Isso torna o processo trabalhoso, uma vez que um estudo precisa contar com cerca de pelo menos 12 simulações para ser representativo. “Não têm mais recursos computacionais, nem no Brasil e nem fora dele, precisa sugerir novos métodos. Na minha pesquisa, me baseei em outro trabalho usando deep learning”, afirma, referindo-se ao uso de algoritmos para modelar abstrações de alto nível. Ela acrescenta que a meta, agora, é estudar se a inteligência artificial é capaz de substituir as simulações numéricas.
Divulgação científica e “fuga de cérebros”
Segundo Duarte, a relação entre cientistas e comunicadores ainda é deficiente no Brasil. “Existe um grande problema aqui. Em geral, na ciência, não se enxerga a divulgação científica como algo tão importante. Tem muitos pesquisadores ainda muito fechados para isso, falar sobre o trabalho. Alguns têm realmente o pensamento de que o conhecimento tem que ficar ali, que só quem é da área precisa saber”.
Ainda assim, a cientista reconhece que a pandemia da covid-19 contribuiu para mudar um pouco esse cenário, ao aumentar a divulgação de informações científicas, sobretudo na área da saúde. “Qualquer site tem bastante coisa sobre ciência. Revistas e jornais, divulgadores científicos cresceram muito nas redes sociais”. Ela própria conta que possui um perfil no Twitter voltado para a divulgação científica de uma forma acessível, tanto em relação a seu conteúdo, quanto à linguagem utilizada.
Além dos entraves na comunicação, a pesquisadora menciona a falta de investimentos como um obstáculo: “O investimento na ciência no Brasil é terrível, nem sei se temos uma perspectiva de melhora no futuro. Estamos recebendo cortes e mais cortes”.
Esse é um dos fatores que têm levado à “fuga de cérebros”, isto é, à saída de pesquisadores brasileiros rumo ao exterior, em busca de melhores condições de trabalho. Isso explica, também, o baixo número de pessoas trabalhando com astronomia no País. São poucos os institutos voltados para esse campo. Por outro lado, o Brasil conta com vários institutos de física, que, segundo Duarte, “também podem servir como base para estudar buracos negros”.
Buracos negros: uma viagem no tempo
Há mais de cem anos, Einstein publicava sua teoria sobre a relatividade do espaço-tempo, um conceito que propunha o que ficou conhecido posteriormente como “buraco negro”. No entanto, nem mesmo ele acreditava em sua existência na natureza. Foi apenas na década de 1950 que a concepção passou a ser tratado com seriedade no campo científico e estudado de maneira concreta, recebendo sua nomenclatura apenas em 1968.
Muito tempo depois, em 2019, foi registrada a primeira fotografia de um buraco negro. Finalmente, no ano de 2021, ocorreu a primeira detecção de luz do outro lado. O que esperar daqui a cem anos, então? “Acredito que vamos ter respondido boa parte das perguntas em torno de buracos negros”, responde Roberta Duarte. “Algumas pessoas estão propondo novas teorias, mas ainda é algo bem nebuloso. Provavelmente vão surgir mais perguntas até lá”, conclui.