Estudantes e especialistas explicam o papel da crise sanitária no desempenho acadêmico e saúde mental para aqueles que estão na corrida pela faculdade
São Paulo, 12 de março de 2020. Notícias sobre a disseminação do vírus da covid-19 começam a explodir no Brasil. Um sentimento de mistério paira no ar. No conforto de seu apartamento na Zona Sul, Tiago Aun, 18 anos, um dos vestibulandos de economia daquele ano, manda uma mensagem de WhatsApp para um de seus amigos mais próximos. A mensagem, que hoje ganha tons de ironia, diz: “te garanto que o coronavírus continua fora das minhas 80 maiores preocupações”. Mais de um ano depois, o inimigo invisível segue presente entre nós – e ganha boas posições no ranking das principais angústias de Tiago.
O cursinho e a vida de vestibulando eram apenas parte dos problemas do jovem no começo de 2020 – talvez por isso tenha confidenciado ao amigo que o vírus não invadiria suas preocupações naquele momento. “Eu saí de um ano espetacular, que foi 2019. Gostava demais de ir para a escola e ficar com os meus amigos. E fui para um ano de 2020 em que a maioria dos meus amigos foi para a faculdade, outros foram para outros cursinhos”, conta.
São Paulo, 17 de março de 2020. Brasileiros já passaram pelo primeiro final de semana de controles. As ruas estão desertas. Hora da vida de Tiago ser afetada diretamente pelo vírus pela primeira vez. Na porta do cursinho localizado na movimentada Avenida Paulista – vazia naquele dia -, o jovem dá de cara com a informação de que haviam cancelado as aulas. Fica possesso. Mas algo o acalma: estava de férias. “Eu comecei a ver como uns quinze dias de férias, claro que era ruim porque tinha uma doença por aí, mas pelo menos daria para dar uma relaxada e me concentrar melhor depois. Só que não foi o que aconteceu”, afirma.
As distrações dos vestibulandos no “novo normal”
Tiago nunca mais colocou os pés na escola. Teve de estudar em casa. Em condições confortáveis, claro, realidade que não se aplica a um número considerável de brasileiros. Mas a vida nunca mais foi a mesma. Os amigos, tão importantes para ele, passaram a estar distantes, não pelas vidas terem tomado rumos distintos, mas por uma questão de saúde pública. Tornou-se complicado manter a cabeça sã.
Desabrocharam os vícios e o estudo ficou em segundo plano. “No início da pandemia, eu estava bem entediado. Então, comecei a passar muito tempo com meus amigos no videogame, mas eu extrapolava esse tempo, invadia a madrugada. Olha que rotina maluca: eu jogava videogame até o meio da madrugada e depois ia estudar. Ia dormir lá pela hora que começava minha aula, no começo da manhã. Foi um período muito complicado”, relata o estudante.
A adaptação às aulas também foi bastante complicada. Tudo era novidade para Tiago, habituado a enxergar o professor para além da minitela de dez polegadas e a poder compartilhar piadas engraçadíssimas com os amigos sempre que elas viessem. “No começo, ninguém entendeu o que estava acontecendo. Eu fiquei muito confuso nas aulas e então perdi o foco. Nos primeiros dias, pensei que era mais viável estudar por conta, aí eu via, mesmo com menos qualidade, as aulas gravadas, em um horário totalmente não recomendado para os seres humanos”, lembra.
Saindo da zona de conforto
Valinhos, data qualquer de julho de 2020. Guilherme Salmi, 19 anos, é aluno de Engenharia Mecânica na UNIFEI (Universidade Federal de Itajubá). Até que decide trancar a matrícula após meses de estudos arrastados e se juntar a outros vestibulandos em 2020. Outro que não se adaptou às aulas online, aos professores pegos de surpresa e à falta dos colegas.
Resolve ir atrás do sonho inicial: USP ou UNICAMP; a mesma Engenharia Mecânica. Está determinado a fazer das tripas coração para passar. “Com a pandemia, a gente parou de ter aula presencial e eu desanimei. Tinha professor que dava aula online, ao vivo, mas tinham outros que gravavam a aula pra assistir a hora que você quisesse. Não podia tirar dúvida, interagir com ninguém, nem nada. E tinha professor que era pior ainda: passava a matéria por vídeo no YouTube que não era nem dele”, explica.
Guilherme sabia que assumir o compromisso da aprovação implicava em aceitar que a rotina seria dura: “Eu estudava de manhã no cursinho e à tarde por conta própria. Quando chegava à noite, estava quebrado. Mas como eu estava muito focado, isso não me impedia de, no dia seguinte, voltar a estudar tanto quanto eu tinha estudado no dia anterior. Conseguir focar eu acho que tem mais a ver com querer passar e a determinação para passar”, conclui.
Valinhos, 13 de março de 2021. Dia em que serão divulgados os aprovados na UNICAMP naquele ano. Milhares de jovens vestibulandos estão tensos em suas casas por todo o Brasil. Guilherme é um deles. Alguns cliques depois e a tensão converte-se em euforia quando percebe seu nome entre os selecionados na primeira chamada. Havia passado na universidade dos sonhos. O esforço de meses de cursinho online na pandemia estava recompensado. Guilherme sabia: era merecido.
A diferença de comportamento dos vestibulandos
Tiago e Guilherme são dois jovens de realidades socioeconômicas parecidas e com um sonho em comum: a aprovação em uma universidade conceituada. Ambos estudaram em boas escolas no Ensino Médio e estavam determinados. Por que, então, os dois vestibulandos tiveram reações tão distintas ao isolamento? Por que um demonstrou tantas dificuldades para manter o foco, enquanto o outro parecia sempre encontrar combustível para continuar?
De acordo com a psicóloga Bettina Schaefer, 34 anos, a resposta para essas questões pode ser encontrada a partir de uma análise do perfil desses adolescentes. “O isolamento e a falta de vida social ajudaram alguns a criar um hiperfoco. Mas há quem teve dificuldade, porque viver nessa dinâmica o tempo todo é muito estressante. Nesse caso, eu acho que os adolescentes que conseguiram ter esse hiperfoco são aqueles cuja vida social não tinha tanto significado naquele momento”.
Bettina é psicóloga clínica de diversos adolescentes e já trabalhou com orientação educacional em escolas. Durante o período pandêmico, se deparou com reações antagônicas ao isolamento, que vão desde uma negação do cenário a um comportamento fóbico e excessivamente preocupado. “A gente funciona como um tripé energético: precisamos gastar energia mental, física e emocional. Se você não consegue gastar um dos pés do tripé, vai acabar sobrecarregando o outro. E o que temos visto com a pandemia é, tanto do ponto de vista emocional quanto do físico, uma sobrecarga”, explica a psicóloga.
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Outro ponto em comum nas histórias dos vestibulandos: as distrações. Ao passo que, para Tiago, elas se tornaram nocivas a ponto de o impedirem de estudar, Guilherme acredita que ter momentos de pausa em meio aos estudos foi um dos fatores que determinaram seu sucesso: “Todo dia eu fazia um exercício físico, o que me ajudou bastante, porque eu ficava um bom tempo sem pensar em estudo. Eu gosto muito de correr, então às vezes eu ia correr e esquecer da vida”. A chave está na moderação, como reflete o próprio Tiago: “Depois de mais de um ano de pandemia, o que eu percebi foi que distração de mais faz mal, mas distração de menos faz muito mal também”.
Estudar durante a pandemia não é fácil, principalmente para os vestibulandos. Distrações se enumeram, energias não são redirecionadas e as notícias não animam – muito pelo contrário. Como visto a partir da história de Tiago, o período ainda faz com que vícios e angústias se espalhem como aquarela no papel. Para Bettina Schaefer, “a pandemia é como uma lupa, tudo aquilo que tinha o potencial de não funcionar, não está funcionando. Por exemplo, aquelas pessoas que comem um pouquinho a mais, acabam engordando muito na pandemia. Na minha concepção, é porque esse tripé está desequilibrado, então a pergunta é como fazer para reequilibrar”.
Embora tenha enfrentado momentos de desalento e solidão, nos quais o videogame com os amigos se tornava o único escape possível,Tiago Aun não se arrepende de nada do que viveu: “Sinceramente, eu não mudaria em nada o que fiz. Por mais que possam pensar que fui ‘vagabundo, não estudei, não fiz nada’, nesse período eu sinto que precisava de distração. Se eu tivesse estudado muito, eu estaria bem pior hoje em dia do que estou. Foi um aprendizado muito importante”.
Quando recordar dos momentos de pandemia, Tiago certamente se lembrará dos jogos com os amigos e das madrugadas regadas ao riso, que evaporava tão logo a tevê era desligada. A realidade incomodava e Tiago precisava escapar.