Fé no feminino - Revista Esquinas

Fé no feminino

Por Camille Carboni e Larissa Bomfim : maio 10, 2018

Mulheres religiosas que se identificam com a agenda do movimento feminista passaram a organizar seus próprios coletivos

Dados do censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) indicam que 86,8% dos brasileiros se declaram cristãos. Ao mesmo tempo, o número de mulheres que se afirmam feministas está em torno de 65% no Brasil, segundo análise da empresa Wakefield Research. O diálogo entre essas duas parcelas da sociedade se dá de forma calorosa e um tanto quanto agressiva, na maioria das vezes. Entretanto, emergem frentes que unem feminismo e religião e questionam essa impossibilidade de um lugar de convergência.

Projeto Redomas

“A gente quer dar voz às mulheres que sofrem violências e com o machismo em espaços de fé cristã” explicou Luciana Petersen, que faz parte do grupo de ação do Projeto Redomas, sobre um dos objetivos da organização, criada em setembro de 2015. O Redomas surgiu quando um grupo de amigas, participantes de uma organização missionária, receberam diversos relatos de assédio vindos de meninos cristãos durante um evento religioso.

Luciana Petersen faz parte do grupo de ação do Projeto Redomas e frequenta a Primeira Igreja Batista em Santa Isabel.
Larissa Bomfim

As mulheres começaram a se organizar, chamaram outras amigas para o projeto, criaram um site e passaram a produzir conteúdos sobre assuntos, que incluem a violência de gênero em espaços de fé e a visibilidade de mulheres bíblicas nas igrejas, por exemplo. Os relatos se transformaram em publicações nas redes sociais e, aos poucos, o movimento passou a ter visibilidade na internet. Hoje em dia, o Redomas conta com um grande público de evangélicas, em especial, de mulheres jovens.

“Elas ficaram muito incomodadas com aquilo, que pessoas cristãs, que pregam o amor e o respeito, ao mesmo tempo também vivem esse desrespeito em relação às suas irmãs” – Luciana Petersen, membra do Projeto Redomas

As participantes do Redomas são protestantes de diferentes denominações dessa vertente cristã, conta Petersen, de 20 anos, sentada nos bancos da Primeira Igreja Batista em Santa Isabel, região metropolitana de São Paulo. Filha do pastor da igreja, a estudante de jornalismo começou a fazer parte do projeto em julho de 2016, e desde então, cuida da parte editorial do movimento.

A jovem faz parte de uma equipe de cinco mulheres que compõem a organização principal do Redomas. Para além do grupo de ação, outras dezenas de fiéis contribuem para a iniciativa, elas são responsáveis pelos textos, podcasts, artes e fotografias do site e já chegaram a ser quase 100 colaboradoras desde que o projeto foi criado.

Levar as discussões para dentro das igrejas, porém, não foi um processo simples. O grupo encontrou muita resistência por parte de pessoas que discordavam da divulgação de casos de assédio e violência. “Muitas pessoas ficaram muito ofendidas e falavam assim ‘agora vocês vão ficar falando assim e as pessoas vão achar que a igreja não é um lugar seguro, que todo pastor é agressor, mas não é isso o que a gente está falando”, relata Petersen.

Ela explica que unir religião e feminismo sempre esbarra em questões como o suposto antagonismo entre os dois grupos, algo defendido tanto por algumas feministas quanto por algumas parcelas religiosas. O diálogo, contudo, seria a melhor saída para explicar como é possível fazer os dois pontos se comunicarem.

A atuação do Redomas começou e até hoje se mantém como um ativismo virtual, e por mais que esta abordagem já atinja muitas mulheres, o objetivo do grupo é ultrapassar as barreiras da internet, já ocorreram, em mais de uma cidade, encontros para debater pessoalmente as questões discutidas na internet, e aumentar a frequência destes eventos é uma das metas do grupo.

Ainda assim, a ação principal se mantém em encorajar cada mulher a falar sobre o assunto dentro de sua própria igreja. “A gente quer dar materiais para que essas cristãs lutem contra o machismo dentro dos espaços de fé e possam levar isso para dentro das igrejas que elas participam”.

Católicas Pelo Direito De Decidir

O Católicas Pelo Direito de Decidir é uma ONG que chegou ao Brasil em 1993 e trabalha junto ao movimento feminista para que mulheres tenham liberdade para decidir sobre seus direitos individuais – relacionados à sexualidade, maternidade ou igualdade de gênero.

Mais do que um coletivo, o Católicas é definido como uma corrente de pensamento que propõe a possibilidade de que as mulheres possam ser feministas e seguirem o catolicismo. “A gente tenta mostrar que é possível combinar a vivência de fé, que é uma experiência pessoal, junto das propostas do feminismo”, explicou Regina Jurkewicz, fundadora e coordenadora do projeto.

Regina Jurkewicz foi uma das responsáveis por expandir o trabalho da ONG Católicas pelo Direito de Decidir pelo Brasil
Larissa Bomfim

Jurkewicz é uma das mulheres que trouxe o movimento para o Brasil, nos anos 90, à convite da teóloga norte-americana Rosemary Ruether, e atualmente trabalha com mais três pessoas coordenando o trabalho da ONG em São Paulo e outros 13 estados. Além do grupo de ação, o projeto conta com a ajuda das Multiplicadoras, mulheres voluntárias que organizam reuniões nas sedes dos estados e participam de atos políticos, como a marcha que acontece no Dia Internacional da Mulher.

O grupo também acompanha projetos de lei sobre direitos femininos em tramitação no Congresso, organiza publicações e participa de encontros com a rede latino-americana de Católicas Pelo Direito de Decidir, presente em 12 países na América do Sul, América Central e Europa.

Na sede do Católicas em São Paulo, Jurkewicz conta que o movimento de mulheres brasileiras ganhou força nos anos 80, entre os períodos da Ditadura Militar e pós-Ditadura. “As mulheres defendiam questões como acesso à creche, saneamento básico e saúde pública e, até esse momento, a Igreja fomentava as questões. Quando as mulheres começaram a lutar por direitos individuais, a coisa se complicou”.

A ONG católica que possui ramificações pela América e Europa defende, entre várias pautas, o direito ao aborto.
Larissa Bomfim

Segundo a coordenadora, a hierarquia da Igreja ainda enfrenta dificuldades em aceitar o feminismo e o motivo disso é a moral condenatória da sexualidade. Em sua visão a Igreja tem uma teologia que vincula sexo com pecado e isso é alocado na vida das mulheres. Por isso, falar em feminismo ainda assusta os membros dessa instituição.

Entretanto, mesmo que o pensamento conservador seja mais disseminado, existem membros que entendem a luta feminina e concordam que há pensamentos convergentes com a religião cristã, já que essa surge propondo a igualdade, o mesmo que o feminismo faz. “É preciso compreender que, dependendo de como a gente concebe o cristianismo, não haverá contradição com o feminismo”, afirma.

“Para nós, ser católica não significa ir à missa, mas sim, beber de uma fonte que te ajuda a viver a religião de uma forma positiva” – Regina Jurkewicz, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir

O Católicas não trabalha apenas ajudando as mulheres dentro dos espaços de fé, mas também se posiciona acerca de temas da religião em si. Nesses casos, o pensamento da ONG não concorda com a lógica religiosa de pecado e condenação, mas prevê uma liberdade de escolha. “A gente acredita que é o aborto, por exemplo, é direito da mulher, para que ela possa decidir e tenha toda a segurança para levar uma gestação adiante”, exemplifica. Ainda mais do que prezar pela liberdade de escolha da maternidade, as mulheres do Católicas defendem o acesso a métodos contraceptivos e a educação sexual.

Dessa forma, o grupo é voz de contraponto em meio a bancadas religiosas na política. “O Estado é laico e é necessário dizer que temas como esse não devem ser debatidos por igrejas”, afirma a coordenadora. “O ideal seria que a religião não opinasse ou não tentasse influenciar no campo dos direitos da mulher”, finaliza  Regina Jurkewicz.