"Eles ensinam a gente a amar o próximo": por dentro dos abrigos que acolhem moradores da Cracolândia - Revista Esquinas

“Eles ensinam a gente a amar o próximo”: por dentro dos abrigos que acolhem moradores da Cracolândia

Por Amanda Fuzita, Isabel Mello e Milena Miranda : janeiro 19, 2023

Usuários de drogas são deslocados da praça Júlio Prestes para a praça em frente à estação Julio Prestes, conhecida como praça do Cachimbo, na região da Cracolândia (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Na zona central da capital paulista, abrigos oferecem aos usuários de crack uma chance de recomeçar

596. Esse é o número de pessoas que frequentam o fluxo da Cracolândia, de acordo com o último levantamento feito pela Prefeitura de São Paulo em 2021. Em maio deste ano, os usuários encontraram um novo local para se abrigarem: a Praça Princesa Isabel. Hoje, o fluxo se concentra pelos bairros da Santa Ifigênia, Santa Cecília e República, todos no centro da capital paulista.

O início de tudo, entretanto, se deu nos anos 1990. O crack tomou conta do que antes era o Terminal Rodoviário da Luz e deu origem ao nome de um dos pontos mais precários da capital paulista.

Entre as cinco drogas mais viciantes do mundo, o crack seduz e oferece momentos de prazer para os dependentes. Os efeitos duram de cinco a dez minutos e causam uma sensação de bem-estar acompanhada de euforia e aceleração dos batimentos cardíacos.

Em cinco anos de consumo, um em cada três usuários morre, segundo estudo da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

No caminho contrário do crack, na rua Porto Seguro, números 235 e 281, o Abrigo Siat (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica): Casa Porto Seguro e o Siat 2 Armênia abraçam moradores de rua e dependentes da região.

A Associação Evangélica Beneficente (AEB), em parceria com a Secretaria de Assistência Social de São Paulo, mantém os dois locais em funcionamento. A criação dos abrigos se deu a partir da percepção da necessidade de acolhimento e reintegração dos moradores de rua que não eram atendidos.

José Elder Peres Reis, responsável pela Casa Porto Seguro, explica que o serviço oferecido pelo local abre os olhos dos usuários para novas possibilidades e desperta a esperança de que é possível recomeçar. “O abrigo oferece alfabetização, atividades com horta, oficinas de música, artes plásticas e participação nas regras da Casa”, conta.

Além disso, ele colabora para uma diminuição do número de pessoas em situação de rua, uma vez que promove acesso a espaços para guarda de pertences, higiene pessoal, alimentação e regularização de documentos.

As atividades são escolhidas criteriosamente com o intuito de não somente afastar o indivíduo do vício, mas apresentá-lo a uma vida com propósito. “Cada uma das atividades da Casa visa recuperar a dignidade dos beneficiários por meio de aprendizagens de comportamentos e ressignificação de hábitos e valores”, explica José.

No Siat 2 Armênia são prestados serviços como café da manhã, banho, lavagem de roupas, atividades socioeducativas, atividades esportivas, almoço, jantar, orientação para trabalho, atendimento em serviço social e atendimento em psicologia social. Além disso, o espaço tem capacidade para atender cem pessoas durante o dia e duzentas para pernoite.

Se os abrigos pudessem falar eles provavelmente diriam para cada morador de rua e usuário que atravessa as suas portas: “Não quero saber de onde é, o que você fez, o que você usou ou deixou de usar e, muito menos, com quem você se deita. Vejo em você a oportunidade de uma nova história. E você, acredita em mim como eu acredito em você?”.

Lá, não existe distinção. Os funcionários do Siat 1 realizam a abordagem na região da cracolândia, e o abrigo acolhe homens, mulheres, transexuais e pessoas com deficiência.

Apesar da droga não ter um rosto, de acordo com pesquisa realizada pela Unifesp o índice de vício de crack é maior entre as mulheres. Eva foi uma das que viveram nas ruas de São Paulo e foi usuária de drogas por muitos anos, até ser abrigada pelo Siat Armênia.

“Eu perdi meus filhos pra mão do juiz porque eu caí nas drogas”, conta em um vídeo da AEB. “Quando cheguei aqui [no abrigo], vi que é um lugar simples, que é para todos.”

Já Cíntia foi por vinte anos paciente do Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e hoje recebe os serviços da Casa Porto Seguro. Ela conta, em vídeo publicado pela AEB, que os funcionários da Casa oferecem, além dos aprendizados de sala de aula e outros conhecimentos, carinho e afeto. “Aqui na Casa, eles ensinam a gente a amar o próximo e ensinam a gente a dar valor para os materiais que na rua não têm valor”, comenta.

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Além das consequências vividas pelo próprio dependente, o vício em crack transforma a vida dos que convivem — ou um dia conviveram — com o usuário. As famílias sofrem com a incapacidade de ajudar. Algumas pessoas, inclusive, desenvolvem a codependência, na qual o parente ou familiar tem um laço afetivo tão intenso com o usuário que se torna dependente da pessoa que tenta ajudar.

Um estudo da Unifesp divulgado em 2013 descobriu que 58% das famílias com algum usuário de drogas têm afetada a habilidade de trabalhar ou estudar. Além disso, 29% das pessoas se mostraram pessimistas em relação ao futuro imediato e 33% revelaram ter medo de que o parente se drogue até morrer ou alegaram ter sofrido ameaças do dependente.

No Siat, a restauração de uma relação saudável com a família faz parte do processo de recuperação dos moradores de rua e usuários. “É realizado um trabalho cuidadoso de reintegração dos frequentadores às suas famílias e à comunidade visando o resgate pleno da cidadania”, afirma José Elder.

“Sonho com uma sociedade onde trabalhos como esses serão feitos pelo governo, e que as pessoas tenham direito à dignidade e respeito”, diz José.

Enquanto esse caminho ainda se constrói, os abrigos precisam de pessoas dispostas a arregaçar as mangas e contribuir para o funcionamento desses serviços.

Os locais se mantêm por meio de doações em dinheiro ou de roupas e outros itens de higiene e necessidades básicas. Além disso, é possível se candidatar para ser voluntário e atuar na linha de frente no acolhimento dos moradores de rua e dependentes químicos.

Rapper Mensageiro foi um dos voluntários que disponibilizaram o seu tempo durante muitos anos para ajudar os abrigos a acolher os moradores da Cracolândia. Ele explica como funciona o processo de atendimento dos dependentes químicos, desde o momento em que eles são abordados e direcionados a um dos abrigos do Siat.

Em maio de 2022, ações policiais gerenciadas pela Prefeitura de São Paulo dispersaram as pessoas que estavam vivendo na Praça Princesa Isabel, novo ponto da Cracolândia. A abordagem fez com que os usuários se espalhassem pelas ruas do centro da capital paulista.

A polícia se mostrou otimista com as intervenções, mas os resultados causam controvérsias. No início de junho, gravações feitas por moradores do Centro de São Paulo exibiram dependentes químicos atirando pedras e objetos contra carros que passavam na Avenida São João. Além disso, estabelecimentos foram danificados.

Ainda no mês de maio, Raimundo Fonseca Junior, dependente químico de 32 anos, morreu baleado durante uma ação policial na região da Cracolândia. Manifestantes foram às ruas para homenageá-lo, e o Ministério Público abriu um inquérito para investigar o caso.

Diversos políticos, como o ex-governador do Estado João Dória e o ex-prefeito da capital Fernando Haddad, tentaram realizar ações para, de uma vez por todas, colocar um fim na Cracolândia. \

Entretanto, a maior parte das intervenções realizadas pelo Estado foi de ordem militar e não obteve êxito. Existem algumas estratégias como desestabilizar o tráfico de drogas, descriminalizar o crack ou investir em medidas que ofereçam tratamento, acolhimento e ressocialização dos dependentes químicos.

Enquanto não há uma resposta — e nem um plano de ação efetivo — frente ao problema da Cracolândia, os abrigos seguem sendo a melhor saída para os usuários.

Rapper Mensageiro explica que, infelizmente, nem todos buscam ajuda e, segundo a sua experiência na linha de frente com esses moradores, alguns não estão interessados em mudar de vida. “Alguns se aproveitam da bondade das pessoas e já se conformaram com a vida que têm”, diz.

No entanto, ele reforça que as portas estão abertas para quem deseja se afastar do vício e busca construir uma nova história dali em diante. Afinal, enquanto houver pessoas precisando de ajuda e outras querendo ajudar, há esperança de uma vida digna e com propósito.

Editado por Anna Casiraghi

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