Imigrantes em São Paulo: como a maior metrópole do país acolhe estrangeiros? - Revista Esquinas

Imigrantes em São Paulo: como a maior metrópole do país acolhe estrangeiros?

Por Anderson Aparecido, Isabela Moretti, Luiza Navega e Ricardo Thomé : janeiro 24, 2023

Foto: Divulgação / Museu da Imigração

Do processo de imigração, até a adaptação aos costumes e o preconceito vivido, imigrantes de diversos países compartilham suas vivências na capital paulista

De acordo com a Prefeitura de São Paulo, mais de 360 mil imigrantes vivem legalmente na cidade. Em 2021, os bolivianos lideravam essa população, com quase um terço do total, seguidos de chineses, haitianos, peruanos e estadunidenses, respectivamente.

Uma matéria do portal G1 avaliou que o número de imigrantes que chegaram ao CRAI (Centro de Referência e Atendimento a Imigrantes), na Bela Vista, no centro da capital paulista, aumentou em 30% durante a pandemia. Atualmente, esses números são ainda mais expressivos.

A metrópole, considerada o centro financeiro do país, atrai imigrantes desde o início de sua história devido às mais diversas motivações. Desde melhor qualidade de vida a maiores oportunidades de emprego e estudo, a cidade é tida como uma ótima opção de destino para pessoas de diferentes lugares do mundo.

Nesse contexto, a origem e os objetivos dos imigrantes podem variar, mas o que mais impacta, de fato, são as condições nas quais eles chegam e o que fez com que deixassem sua terra natal. Por isso, a reportagem fez questão de conversar com imigrantes em diferentes realidades. Há desde aqueles que vieram para estudar ou conseguir um emprego, até aqueles que tiveram que fugir de seu país devido a conflitos internos e externos, e que viram em São Paulo a possibilidade de uma vida nova, longe de tudo que conheciam.

Marien Ramos, de 18 anos, conta que veio de Cuba para o Brasil por causa do pai, que trabalhava no programa Mais Médicos, do Governo Federal. Ela chegou em 2017 ao país mas morou um tempo no interior da Bahia, e veio efetivamente para São Paulo em 2021 para estudar, segundo ela, por causa das maiores oportunidades que a cidade oferece.

A estudante conta que sua experiência inicial foi difícil, definindo o clima da cidade como “maluco” e o trânsito como “caótico”. Ramos diz que não se sentiu acolhida de início, principalmente por ter chegado durante a pandemia da Covid-19, e que demorou para ter contato com os paulistanos.

“Eu acho que a pandemia contribuiu muito, porque todo mundo estava com medo. Eu também não estava saindo muito, estava usando o tempo para estudar, mas não me senti totalmente acolhida. Por exemplo, eu me senti mais acolhida quando fui morar no interior [da Bahia]. Porque aqui [São Paulo] as pessoas são muito individualistas, parece que você não existe e é só mais uma pessoa em São Paulo”

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Marien mostrando sua tatuagem escrito “imigrante”, com a bandeira de Cuba ao fundo. Foto: Arquivo Pessoal/Marien Ramos

Adriana Maruffo, também de 18 anos, tem uma história semelhante à de Marien. Ela se mudou do México a São Paulo devido ao trabalho do pai, promovido na empresa em que trabalhava, consequentemente sendo transferido para o Brasil.

Quando chegou à cidade, aos 12 anos, não falava português, sendo seu pai o único da família familiarizado com o idioma. Ela relata o período de adaptação como uma fase conturbada, salientando a dificuldade inicial em fazer amigos e o estranhamento com os costumes brasileiros:

“Eu entrei no colégio em fevereiro, no sétimo ano, e a questão social foi bem complicada, porque criança pode ser meio cruel e eu também cheguei em uma época em que o contexto social era meio péssimo. Foi na época que o Donald Trump estava entrando no governo. Então, as pessoas não aceitavam muito eu ser mexicana e também [falavam coisas que eram] não muito certas de falar pra uma pessoa. Tipo, uma vez uma menina perguntou pra mim se eu já tinha pulado um muro, ou algo assim. Então, a questão social demorou bastante, acho que as primeiras amizades de fato eu acabei fazendo no oitavo [ano], então foi um ano inteiro sem amigos. Depois você se adapta e acha seu grupo, mas foi uma questão que demorou bastante e ficou por um bom tempo”.

As dificuldades de adaptação a uma nova realidade não se restringem somente às crianças imigrantes. Mariana (21), irmã de Adriana, estuda Publicidade e Propaganda e compartilha muitas das percepções da irmã na chegada ao Brasil:

“Eu não falava nada de português. Então minha experiência inicial não foi muito boa. Eu fiquei sabendo que ia vir para o Brasil e abandonar minha vida toda quando eu estava fazendo o pré-seletivo para entrar no ensino médio no México, que já é estressante. Aí, seis meses antes, me falaram que a gente ia morar no Brasil”.

Mariana relata que se estabelecer em São Paulo foi tão difícil que ela teve que mudar de escola: “Quando cheguei, eu fiz um mês de aula particular de português para melhorar o básico, e nesse mês eu morei em São Paulo, mas logo me mudei para Cotia”.

Em Cotia, os pais da jovem optaram por colocá-la em uma escola brasileira, o que ela afirma ter sido uma experiência conturbada:

“Eu não entendia nada, não sabia o que estava acontecendo. As pessoas tentavam falar comigo, ninguém falava inglês, eu tentava de todos os jeitos e não dava, aí eu saí”, diz.

Ela conta que se mudou para o Colégio Rio Branco, e que lá sua experiência foi melhorando: “Eu entrei também sem saber muita coisa, mas com tempo fui me adaptando, fiz alguns amigos, mesmo que eu tenha encontrado dificuldade porque não dá pra conversar direito. Mas, com o tempo, foi fluindo, eu fui ouvindo, tendo bastante aula de português de fato, de português de escola mesmo, e consegui me formar”, relembra.

As irmãs compartilham que sua relação com a família foi essencial, e que a dificuldade do período de adaptação as aproximou e as tornou melhores amigas.

“A gente não conhecia ninguém, então por muito tempo eu fiquei conversando só com meus pais e com a minha irmã. A gente até se tornou mais próxima por conta dessa experiência traumatizante”, afirma Mariana.

Em relação ao preconceito, as imigrantes entrevistadas relatam suas experiências com episódios de xenofobia. Marien conta que costumava não perceber por ser criança, porque os ataques eram velados, mas que sentia que os brasileiros não estavam preparados para lidar com alguém que não falasse seu idioma, o que fez com que ela desenvolvesse medo e vergonha de falar português.

“Eu falo muito sobre política, então se eu pontuava algo sobre a política do Brasil, já tive colega que me disse ‘então volta para Cuba, se você está criticando o país’. Não, eu moro aqui e tenho os mesmos direitos de cidadã do que vocês, eu vou me naturalizar daqui a dois anos, então eu posso criticar a política porque também vai me afetar. Sofri muito com isso, não são coisas assim na cara, às vezes é difícil de identificar, os olhares, os comentários, as pressões que colocam em você por não ser daqui.”

Adriana também conta sobre experiências desagradáveis com outras pessoas de seu convívio social. Ela relata que não gostava de seu sotaque, muito por causa de críticas que eram feitas direcionados a ele, e que foi alvo de comentários xenofóbicos também no último ano do Ensino Médio.

Sua irmã, Mariana, critica a falta de paciência de algumas pessoas com ela quando ainda não era familiarizada com o idioma. Ainda hoje, na faculdade, Mariana diz ouvir comentários desagradáveis sobre o fato de ser imigrante mexicana: “Às vezes, eu conheço uma pessoa na escola ou na faculdade e meu único traço de personalidade para essa pessoa é eu ser do México. Eles não querem saber o que eu gosto, o que faço, as coisas mais normais, meu único traço de personalidade é ser mexicana”.

Dentre as centenas de locais de acolhimento para imigrantes, que vêm dos mais diversos lugares e pelas mais diversas razões, destacam-se ONGs como a Cáritas, a Missão Paz, o Adus, o Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade) e a Bibli-ASPA (Biblioteca Centro de Pesquisa América do Sul Países Árabes), local escolhido pelo grupo de reportagem para algumas das entrevistas, e que fica no bairro da Santa Cecília, centro da capital.

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Miltino Joaquim de Souza Neto, o Tino, coordena as atividades do espaço e da Cozinha Solidária da instituição, que prepara e doa mais de 750 marmitas por dia em pontos da região. Foto: Arquivo Pessoal/Ricardo Thomé

Por se tratar de um centro de pesquisa e de acolhimento, ninguém dorme na casa, que antes pertenceu a uma família de cafeicultores e é tombada. Porém, as pessoas são encaminhadas para outros centros maiores na região — como na Rua José Bonifácio, na Sé.

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A casa dispõe de uma biblioteca com livros em diferentes idiomas, os quais podem ser retirados pelos imigrantes e pelas pessoas em situação de rua que lá são acolhidas, bem como por quem quiser, e devolvidos posteriormente. Foto: Arquivo Pessoal/Ricardo Thomé

A Bibli-ASPA vive, basicamente, de parcerias e doações. Tino conta que os itens doados passam por um filtro antes de serem colocados ou à disposição de quem tiver necessidade (cinco itens por dia), ou em um bazar, para comércio e angariamento de fundos para a entidade.

Além disso, Tino diz que aqueles que lá são acolhidos não só podem como devem participar de cursos técnicos oferecidos pelo Sebrae, que visam à capacitação profissional e à inserção no mercado de trabalho. No caso dos imigrantes, há também o curso de português, que ocorre todos os sábados pela manhã e reúne pessoas do mundo todo que estão em busca de aprender o idioma do país.

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Esta é uma das salas em que os professores Adriano Mucuapera (Moçambique) e Nanami Sato desenvolvem as aulas de português, no andar de cima do sobrado em Santa Cecília. Foto: Arquivo Pessoal/Ricardo Thomé

A partir de agora, serão apresentados alguns dos imigrantes que frequentam a Bibli-ASPA.

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Mary, que é da Nigéria, diz que as aulas são importantes porque o português é difícil, mas que ela gosta mesmo é da experiência de se comunicar com seus colegas de trabalho na cozinha (quem trabalha no projeto Escola Cozinha Solidária recebe um auxílio financeiro e tem que fazer os cursos oferecidos). Para ela, a prática do dia a dia é muito importante:

“Português é difícil! Uma palavra pode significar milhares de outras palavras. As aulas são baseadas só em teoria e currículo. Eles [professores] vão te ensinar muita coisa, você ouve, mas eles não vão pedir pra você trazer os pratos, entende? É tudo uma questão de prática!”

Ela conta sobre como a rotina de interagir com os colegas após a aula é benéfica: “Pelo menos a gente se comunica. Tem sempre algo que a gente faz depois da aula que tem que participar. Se eu começasse entrando aqui e depois da aula fosse direto para casa, sem me comunicar com ninguém, fosse dormir, cuidar do meu bebê e pronto… Comunicar-se com os outros faz você aprender mais rápido”, afirma.

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Mary chegou há pouco mais de um ano e diz que os brasileiros fazem-na “sentir-se em casa”. Foto: Arquivo Pessoal/Miltino Joaquim Neto

Casada e com um filho pequeno, Mary relata que veio da Nigéria para o Brasil há um ano e dois meses, devido aos conflitos que vêm se instaurando em seu país natal. Ela pertence à etnia Igbo, que tem muitos cristãos e vive no sudeste do país. Seu grupo étnico sofreu com o genocídio e as perseguições na Guerra Civil Nigeriana ocorrida entre 1967 e 1970, e ainda há resquícios desse acontecimento no país. A moça diz se sentir segura no Brasil, o que na Nigéria não era uma realidade.

“A Nigéria não está bem, é assustador. As rebeliões, a guerra… sabe? Eu saí por segurança. Porque lá, talvez você esteja dormindo, mas você estará dormindo com um olho aberto. Você não pode usar os dois olhos para dormir [imita sons de bomba]. Você pode ter que abrir a porta e sair correndo. Então, aqui pelo menos você tem a mente tranquila.”

A escolha pelo Brasil e por São Paulo não foi muito difícil para Mary, já que seu marido vive aqui há quase oito anos e já conhecia a Bibli-ASPA e seus cursos. “Ele fala português bem e escreve muito bem. Então, quando eu vim, ele me trouxe para cá [Bibli-ASPA]. Ele disse que a escola era boa, que eles ensinam bem”, diz ela.

Mary comenta sua adaptação à alimentação do paulistano. Ao ser indagada sobre o fato de outras nigerianas terem dito, enquanto almoçavam, que não gostavam da comida brasileira, ela explica que é uma questão cultural e de costume: “Sabe, não é que elas não gostam da comida. Se você for para a Nigéria e provar a nossa comida, você não vai gostar. É totalmente diferente da cozinha brasileira! Então, quando comecei a ter aulas aqui, comecei dando uma mordida. No sábado seguinte, vim de novo e tentei comer. Quando você come regularmente, aquilo se torna mais natural para você, não vai ser estranho novamente. Então é isso. Mas é boa. Algumas comidas brasileiras são boas”.

Abordada sobre a questão da cultura alimentar da Nigéria, Mary ressalta que essa é uma das diferenças de seu povo, os Igbo, para a etnia Iorubá:

“Brasil e Nigéria são diferentes. A Nigéria tem diferentes culturas de comida. Nós, Igbos, os Iorubá, os Hausa, os de Calabar [cidade na Nigéria]…diferentes culturas! Então, todo mundo tem suas comidas diferentes. Eu não como comida Iorubá. É horrível para mim. Tem um prato só que não é diferente, que é o arroz. Mas, nós fazemos uma sopa, e a sopa é diferente da sopa que os iorubás fazem. Eu nunca nem provei. Sou Igbo, nós falamos a língua Igbo. Mas nos comunicamos em inglês com os Iorubá, eu mesma não sei como falar Iorubá. As línguas são totalmente diferentes”.

Um fato curioso foi Mary ter elogiado o comportamento dos motoristas paulistanos nas ruas, em comparação ao que ela costumava ver na Nigéria: “Os motoristas são cuidadosos. No meu país você mal consegue andar. Se você está indo caminhar você terá que estar rezando com seus terços. Você estará rezando o tempo todo porque eles vão passar por cima de você. Tem alguns cuidados que você tem que tomar. Aqui é ok”.

Ela ainda diz não perceber o racismo no Brasil, quando comparado a outros países: “Eu diria que os brasileiros são amigáveis, enquanto em outros países, como os Estados Unidos, tem racismo. Eu não percebi isso [racismo em São Paulo], porque quando você percebe o racismo, a sua estrutura corporal vai te dizer isso. Mas aqui, não. Eles são amigáveis, tentam se comunicar com você, ser simpáticos com você. Eles podem fazer você feliz e se sentir em casa no país deles, não como se estivessem te discriminando”.

Também por uma situação complicada em seu local de origem, veio sozinha para o Brasil uma imigrante do Irã, que não quis ter seu nome divulgado devido a questões de segurança. A entrevistada, que chegou há dois meses, é caligrafista e faz alguns trabalhos voluntários para a Bibli-ASPA. Diz ter saído do Irã devido à falta de liberdade enfrentada pelas mulheres:

“Eu saí porque a situação para as mulheres lá é muito ruim, sabe? Tudo para as mulheres é obrigatório, como o uso do hijab. Nós não temos liberdade alguma lá, não podemos cantar, não podemos dançar…”

Sobre sua relação com a religião, ela conta que o problema não é, necessariamente, o Islã, mas a forma como ele se manifesta no seu país. “Nós temos muçulmanos, mas tem muçulmanos em outros lugares e eles são livres, como em Dubai. As mulheres podem escolher não usar o hijab… Mas, no Irã, é tudo obrigatório, você tem que usar o hijab”, afirma a imigrante, que não usa o véu tradicional.

A iraniana diz que sua escolha pelo Brasil não foi por acaso. Ela já havia passado por outros lugares depois de sair do Irã e esteve no Brasil há alguns anos, como turista, e ainda estranha a cultura. “Eu amei aqui porque as pessoas são muito amigáveis.  Sabe, tudo para mim é muito estranho porque a sua cultura é muito diferente da minha. Há dois anos eu vim para cá e vi o Carnaval. É muito estranho para mim, eu só observei! Dois dias só assistindo àquilo e eu não conseguia acreditar. Mas a comida é rica e muito boa”, explica.

Ela diz, ainda, que a facilidade no processo de imigração em relação a outros lugares foi um dos atrativos para sua vinda: “O processo de imigração foi mais fácil, porque nós precisamos de um visto para todos os países. E é muito difícil conseguir visto para outros lugares, para a Europa. Mas aqui é mais fácil”.

Essas e outras tantas histórias chamaram a atenção de um estudante de Geografia de Nantes, oeste da França, que faz mestrado por sua universidade em Paris. Hugo, que já falava português por ter feito um intercâmbio nos Açores, Portugal, chegou a São Paulo sozinho, em fevereiro de 2022, para fazer um trabalho de campo sobre imigração. Ele tinha contatos na Bibli-ASPA e vem fazendo algumas entrevistas para seu projeto.

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Hugo diz ser fã da comida brasileira, da MPB e das músicas pelas ruas de São Paulo Foto: Arquivo Pessoal

Perguntado sobre a experiência de ser um imigrante falando sobre imigração, Hugo diz gostar de interagir com os brasileiros:

“Isso é uma coisa interessante. Eu fiz amizade com um francês aqui, da USP [Universidade de São Paulo], mas não rolou muito bem porque ele está saindo, em maioria, com outros franceses. Aí, bom, se eu estou aqui é para [interagir com a] cultura brasileira, né? Eu não estou aqui pra sair com franceses. Então, chegando aqui, eu quis encontrar brasileiros, fazer amizades com brasileiros, e acabei encontrando outros imigrantes para o meu trabalho”.

Hugo também comenta sobre o acolhimento em uma metrópole como São Paulo. “São Paulo é uma cidade grande. É uma multidão, então pode parecer difícil encontrar pessoas de verdade. Mas acho que, comparando aos europeus, os brasileiros são muito acolhedores, abertos, então não foi tão difícil assim encontrar pessoas, fazer amizades. É muito fácil falar com qualquer pessoa sobre coisas básicas. Pra rolar amizade é outra coisa, né?”, relata.

Ele completa, e fala sobre o quanto o fato de falar o idioma facilitou essa integração. “Talvez seja mais fácil rolar amizade [com imigrantes], já que todo mundo é estrangeiro, ainda mais se eles não falam bem português. Eu consigo fazer amizade com brasileiro porque falo português o suficiente pra isso. Mas, para alguém que não fala bem, às vezes é mais fácil e tranquilizante ter amizade com outro imigrante, pode ajudar também”, diz o francês, que não sabe se vai permanecer aqui após o término dos seis meses de trabalho.

Também na Bibli-ASPA, há um casal de bolivianos com uma história bem peculiar: Ruth e Edmundo vieram passar sua lua-de-mel em Santos, no início de 2020, na época do Carnaval, para conhecerem as praias, já que a Bolívia não tem saída para o mar. Porém, logo após o Carnaval, foi decretada a pandemia de covid-19, as fronteiras foram fechadas e eles não puderam deixar o país.

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“Gostamos do Brasil”. Ruth (à esquerda) e Edmundo (à direita) vieram apenas passar a lua-de-mel no Brasil, mas já estão aqui há mais de dois anos. Foto: Arquivo Pessoal/Ricardo Thomé

Fechados dentro de casa por quase um ano, os dois tentaram aprender português de todas as formas, já que não falavam muito bem. “Estávamos procurando assistir vídeos, filmes em português, para aprender, com músicas…”, relembra Edmundo.

Eles não conseguiam, porém, aprender a língua, de fato. Foi então que um familiar brasileiro os alertou sobre a necessidade de conversar com brasileiros.

“Ele nos falou: ‘Se vocês não saírem de casa, não vão conseguir aprender nada. Vocês têm que sair pra começar a falar com brasileiros’. Porque lá no nosso país [Bolívia], não temos metrô, por exemplo”, conta. “E aí foi quando nós saímos. Colocamos a máscara e saímos”.

No início, a aventura de Ruth e Edmundo se restringia ao entorno da residência em Santo André, onde vivem até hoje, e, depois, foram avançando.

“Primeiro saíamos dez quarteirões e voltávamos. Começamos a ir sempre um pouco mais longe, até chegar na estação Santo André. Daí, conseguimos pegar o trem e o metrô e, como não estávamos trabalhando, colocamos nossa meta em conhecer todas as estações do metrô. E conseguimos! Pensamos: ‘Nós temos que conhecer o trem e o metrô, senão não vamos conseguir ir de um lugar para outro’. Então, pegávamos o trem do início até o final. Íamos, voltávamos, fazíamos transferência…”

Agora, a meta de Ruth e Edmundo, que são contadores, é conseguir a revalidação de seu visto profissional para poder exercer sua profissão no Brasil. Para isso, porém, eles precisam tornar-se fluentes no português e conseguir sua qualificação no país. Porém, o processo é longo e complexo.

“Procuramos ONGs, mais de 300 ONGs. Fomos olhando o histórico de cada uma, se é uma ONG certa. Foi assim que conhecemos a Bibli-ASPA. Foi quando procuramos cursos de português. Primeiro foi online e agora o presencial, explica Edmundo”. Ele diz que havia três objetivos nessa pesquisa: fazer curso de português, fazer outros cursos à parte da área de finanças e procurar trabalho.

“Fomos ao Conselho Regional de Contabilidade e eles nos encaminharam à USP ou a outra faculdade para revalidar”, conta Ruth. “Esse é o objetivo agora, né, o de que possamos exercer a profissão aqui. Por enquanto, estamos trabalhando como auxiliares de contabilidade no Consulado Boliviano. Dos onze contadores, um é de La Paz e nós dois de Tarija. Nós gostamos [do trabalho], ajudamos os compatriotas bolivianos.”

Ela diz ainda que o trabalho no consulado é desgastante, e que, por vezes, o cônsul passava tarefas que os faziam passar a madrugada toda trabalhando. Mas, também afirma que isso sempre fez parte da vida do casal, que se dedicou aos estudos a vida toda para se tornarem contadores.

“Quando falam da Bolívia, muitas empresas pensam que os bolivianos só sabem de costura. E toda a nossa vida nós passamos estudando, na escola”, afirma.

Sobre essa questão do estereótipo atribuído aos bolivianos, Ruth e Edmundo dizem que já sofreram com isso quando procuravam por cursos. “Nós fomos procurar um curso técnico de uma instituição grande daqui do Brasil. E aí eles falaram: ‘O que vocês estão procurando?’. E eu falei: ‘Que curso tem agora pra fazer?’ E eles falaram: ‘Ah, curso de costura não tem aqui por enquanto’. E não havíamos falado nada de costura!”, conta Edmundo, hoje rindo da história.

Ruth completa dizendo que a maior parte dos imigrantes bolivianos que realmente trabalham com tecidos são de La Paz, a capital, o que não é o caso deles. “Pensam que todos são de La Paz. Mas não somos de La Paz, somos de Tarija. É na fronteira com a Argentina. Nós só estudamos, fizemos escola, datilografia, caligrafia, computador, falamos inglês, francês, faculdade…”

Depois de mais de dois anos, os dois já viram muito do Brasil, das coisas boas às coisas ruins, e já melhoraram seu português. O casal afirma, inclusive, já ter ajudado outros imigrantes bolivianos aqui no país. “É um desafio, nem toda pessoa o faz. Nem toda pessoa boliviana se anima a vir aqui. Eles têm medo, pensam que não vão conseguir falar a língua, comunicar-se com vocês ”, relata Ruth.

Mas nem só aos conterrâneos se restringe a ajuda que eles dão quando podem. Ruth conta que eles sempre carregam alimentos nas mochilas, e que, quando veem alguém passando fome, procuram ajudar. “Um dia tínhamos comprado um jantar para nós dois. Era na pandemia, e os meninos estavam na rua, com fome. Demos toda a comida aos meninos. Mas, ficamos felizes. E é gozado, outros brasileiros olhavam para nós porque sabiam que não éramos brasileiros”, reflete.

Ruth e Edmundo só voltaram para a Bolívia uma vez desde que vieram para São Paulo, no Natal do ano passado, e se surpreenderam, pois foram contaminados com o vírus em seu país natal, após passarem ilesos no Brasil. “Aqui no Brasil, que é grande, nunca pegamos covid. No metrô, tossiam na cara, todos apertados, e dizíamos: ‘Bom, se ficarmos doentes, ficamos’. E aí vamos à Bolívia, chegamos, ficamos dezembro, janeiro e fevereiro, e em fevereiro pegamos covid”, lembra Ruth, que crê que o fato de não terem se contaminado no Brasil foi “um milagre”.

Eles fazem questão de valorizar seu país e seu povo. “Tem muitos lugares bons para conhecer. Tem o Salar de Uyuni, que é de onde vem o sal brasileiro. Temos profissionais de todas as áreas, assim como vocês aqui. E falei que nós temos muitos brasileiros em Santa Cruz de la Sierra, que tem uma faculdade muito grande. Pessoas do Brasil procuram estudar lá, até porque é um pouco mais barato. Saem profissionais e voltam”, explicam.

Feliz em aprender mais sobre o Brasil e os brasileiros, sobre São Paulo e os paulistanos, o casal afirma que a experiência de serem imigrantes abriu a mente deles para coisas superficiais anteriormente. “Nós, quando estávamos lá no nosso país, tínhamos amigos da Colômbia e às vezes as pessoas não sabem pelo que estão passando os imigrantes. Fome, [problemas de] saúde, saudades da família… mas quando nós chegamos aqui entendemos o que eles estavam falando. Agora eu percebo isso. Eu, se não conseguisse falar português…”, comenta Edmundo. Ambos se sentem abençoados por estarem conseguindo se estabelecer na cidade.

Além disso, Ruth diz ter um sonho ambicioso com seus cinco irmãos, que são médicos:

“Eles já estão procurando a revalidação no CRM [Conselho Regional de Medicina]. Estão em outros estados do Brasil, mas eu sou caçula, então a ambição de nós bolivianos é abrir um hospital aqui no Brasil, eu ser a administradora e eles todos trabalharem lá, para todos os brasileiros, bolivianos, para todo mundo. Há uma ambição”.

Ela e Edmundo também estão planejando ter um filho aqui no Brasil, e já estão pensando em apresentar a praia a ele desde pequeno. “Ele vai gostar, vai ficar muito bem aqui. Gostamos do Brasil”, concluem.

Editado por Anna Casiraghi

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