Os mais prejudicados na preparação para os jogos olímpicos serão os “atletas quase”, diz treinador; entenda o impacto da pandemia no pré-Olimpíada
Pelo fluxo de notícias que chegavam, Arataca já sabia que as olimpíadas estavam fadadas ao adiamento. Sua dúvida é se ainda serão realizadas. “Fazer no final do ano seria desigual, então, a princípio, serão em Julho de 2021, mas só se houver uma vacina até lá”, conta. O atual treinador e ex-coordenador de atletismo no Brasil de 62 anos tem como nome verdadeiro José Haroldo Loureiro Gomes.
Seu atleta Almir Cunha dos Santos Júnior, do atletismo, participaria de competições nos Estados Unidos e na Europa, terminando nos jogos olímpicos de Tóquio. “A primeira coisa que fizemos quando soubemos do adiamento foi um destreinamento de 15 dias. Após isso, dei 28 dias de férias para ele. Quando voltar, fará exames revisionais, incluindo corona. Só depois ele volta a correr e a saltar” diz o técnico que trabalha com o atleta desde 2010.
Essa será a primeira Olimpíada de Almir Júnior, 26, que terá de aguardar um pouco mais para realizar seu sonho. “No momento inicial, foi uma frustração grande. Eu vinha treinando muito e muito bem, mas eu sabia que seria adiada. Não tem clima para isso no momento em que estamos vivendo”, diz o atleta. Natural do Mato Grosso, começou no atletismo aos 16, em Peixoto Azevedo, cidade a 672 quilômetros da capital, Cuiabá, onde costumava ir até a vila olímpica para jogar futebol.
O atletismo apareceu por um caso de necessidade de atletas para fazer testes e participar de competições fora da cidade. “Eu me destaquei no salto em altura e, em 2010, o Arataca me deu a oportunidade de ir para a SOGIPA [Sociedade de Ginástica de Porto Alegre]”, diz Almir, que não disputará em Tóquio a prova do salto em altura, mas, sim, do salto triplo.
Novamente por um acaso, em uma competição em 2016, ele e seu técnico decidiram mudar de prova. “Eu sempre fui saltador em altura, até o final de 2016. Fui fazer um triplo pra somar pontos para a equipe e acabei fazendo um salto legal. Como estava iniciando um novo ciclo olímpico e nós vínhamos há alguns anos sem os resultados esperados, o Arataca sugeriu trocar de prova”, explica. Seis meses depois da troca, veio o índice olímpico de 17,14m.
Em 2018, na Inglaterra, conquistou o vice campeonato mundial indoor na prova, saltando 17,41m. Agora, a meta é uma medalha nas Olimpíadas. O atletismo é o esporte olímpico que mais deu medalhas para o Brasil, 17 no total, seis delas no salto triplo. Contudo, os atletas convivem com o descrédito a quem conquista uma vaga mas não sobe ao pódio.
“O brasileiro tem a cultura do futebol, de que ‘se não ganhar, não conta’, mas nós sabemos que, para as Olimpíadas, é diferente. O quanto é difícil se preparar, dedicar dez anos da sua vida para um momento, um salto, um centímetro. Quem não é atleta, não tem essa noção”, diz Almir, que só conseguiu patrocinadores depois de suas conquistas. “O problema é que aqui é necessário fazer um caminho inverso. Eu precisei ser vice campeão mundial para ter o que eu tenho hoje. Quem está começando precisa de incentivo e não tem”.
Hoje, ele está entre os atletas que recebem a chamada ‘Bolsa Pódio’, que varia entre R$5 e R$15 mil. A bolsa tem como finalidade apoiar atletas com chances de disputar finais e medalhas olímpicas e paraolímpicas. Até março deste ano, o Brasil contava com 171 vagas garantidas nos Jogos de Tóquio. Desses esportistas, 44 são beneficiados pelo Bolsa Atleta e 34 integram, individualmente, a categoria Pódio, a mais alta do programa.
“No Brasil, os atletas de alto rendimento, mesmo, não têm problemas financeiros. Todos têm patrocinadores, bolsa do governo federal e são ligados a um serviço militar”, afirma Arataca. Para o treinador, os mais prejudicados pela pandemia serão os chamados “atletas quase”.
“Aqueles que estavam quase fazendo o índice e só tinham o clube para treinar. Esses, o corona matou. Eles vão ter de operar um milagre para chegar aos Jogos Olímpicos”, afirma. Desde o início da pandemia, os investimentos no esporte têm caído drasticamente ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, das 44 federações esportivas nacionais, 36 solicitaram empréstimos para cumprir suas obrigações e calendários.
No Brasil, a situação é ainda pior. Os esportes aquáticos já perderam os repasses do grupo Globo e dos Correios, que também deixaram de renovar com o handebol, tênis e rugby para o ciclo olímpico atual. Para a reta final desse ciclo, a Caixa Econômica Federal renovou, com redução nos valores, apenas três parcerias. Com o Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB), no valor de R$95 milhões, com as Confederações de Ginástica, R$20 milhões e Atletismo, R$60 milhões.
Todos os contratos vencem no fim deste ano e precisam ser renovados para cobrir a preparação para os Jogos em 2021. “Existe, sem dúvida alguma, uma desaceleração de investimentos. Depois dos Jogos Olímpicos, vai ficar muito pior. Ao natural, já tem um decréscimo: tradicionalmente, as pessoas esquecem os esportes olímpicos depois das Olimpíadas em razão da Copa do Mundo de futebol”, explica Arataca.
Em razão dos efeitos da pandemia, casos como o de Almir, que se tornou atleta longe de casa, serão mais raros. “As condições já mudaram desde a época em que ele veio para cá. Eu já não consigo mais oferecer estudo, casa e comida. Sem isso, não se forma o cidadão” afirma o treinador que, para seu atleta, é um dos principais motivos de estar onde está. “O Arataca é um cara que foi sensacional na minha vida. Eu não consigo expressar tudo que ele já fez por mim”.
José Haroldo acredita nos valores do esporte mesmo com todos os problemas futuros. “O esporte sobreviveu às duas Guerras Mundiais e à pandemia da gripe espanhola. Ele tem valores contidos que fazem com que ele nunca se acabe, é quase como uma igreja. Ele inclui, forma e transforma. Um cara que passa pela escola do esporte é um cara pronto para a vida”.