Pego um ônibus despretensioso. Sem pressa ou ansiedade de me mover da Avenida Paulista até meu bairro de Higienópolis. Estava para abrir meu livro no ônibus e esquecer a vida que me rodeava. Esquecer das conversas em celulares, das moças que voltavam silenciosas de seus trabalhos e dos senhores impacientes. Enquanto abria o livro, me detenho…
Algo chama minha atenção e meu cérebro é sequestrado brusca e agressivamente por essa faísca de pensamento. Vejo um menino curioso e, questionando o que via, perco-me nessas palavras soltas que você lê. O menino, que na rua andava com as pernas bambas, estava vendado. Olhos cobertos por uma tira escura enquanto parecia tentar insistentemente ler um livro branco em sua mão.
À minha mente perdida tal fato pareceu tão curioso. Esses pequenos relances de pura “inconsciência consciente” são raros em uma capital movimentada e caótica como São Paulo, onde as vidas passam rápido demais para se ver qualquer coisa. Menino anda vendado enquanto tenta ler. O que o mundo queria que eu visse naquilo? Por quê? O que isso representa?
Talvez, a força de uma juventude se obrigando a ler e compreender sem parar de caminhar. Ao mesmo tempo, ignorando o trajeto em si, como se o pequeno livro branco fosse mais importante, ou ao menos mais consolador, do que olhar o mundo à frente. A mesma vontade de esquecer as conversas de celular, as moças silenciosas e os idosos ariscos. Fechar-se frente a um conhecimento que “seria” e fugir do conhecimento que “é”, por conta do caráter saboroso que ele não tem. Fugir de toda a sombra que a sociedade há tempos promete resolver, mas, que atualmente, é tão cotidiana quanto a própria sociedade. Talvez…
Por outro lado, o enigma não poderia estar resolvido pois ainda tínhamos a venda. Venda negra, escura. Por qual razão seria vendada uma criança que com pernas fracas e cansadas anda na rua com simplicidade? O medo do desconhecido, talvez. Uma criatura que vendo poderia cobrar e mudar, ser além do que se espera. Algo que assusta os covardes. Covardes que não se importam se a criança quer olhar a rua por onde anda ou o livro em sua mão, mas que a vendam preventivamente. Ou talvez decisão própria da criança de se deixar vendar e de, consequentemente, não mais ver seu cotidiano mais escuro que a própria venda.
Triste. A criança anda com pernas bambas na rua, vendada, mas olhando fixamente para um pequeno livro branco. Qual o significado disso? Volto-me para o concreto e paro de indagar, olhando novamente para o menino. Minha cabeça tonta havia me enganado. Não havia qualquer criança com venda negra olhando para um livro branco. Havia, sim, uma criança negra olhando para um prato branco vazio, com um futuro que tanto dói olhar.