Invasão da Ucrânia inaugura nova ordem mundial? Entenda - Revista Esquinas

Invasão da Ucrânia inaugura nova ordem mundial? Entenda

Por Gabriel Vargas e João Nakamura : março 5, 2022

Imagem da cidade de Kiev, capital da Ucrânia.

Invasão na Ucrânia inaugura um novo tabuleiro internacional; especialistas debatem efeitos a curto e longo prazo do conflito

Ensaios militares nas fronteiras ucranianas vinham se intensificando, segundo reportes oficiais, desde o segundo semestre de 2021. Desde então, as tensões já existentes entre Ucrânia e Rússia se acentuavam cada vez mais. Ainda que consideremos esses antecedentes, o anúncio oficial de Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022 confirmando uma invasão no país vizinho chocou a comunidade internacional e, para efeitos históricos, figurará como um divisor de águas na geopolítica.

O conflito ainda é incipiente e se transforma radicalmente a cada dia. Diante de um cenário tão instável, pouco resta para afirmar em linhas gerais. Do que é possível assegurar, temos que: a Ucrânia está sendo invadida em escala total e com força crescente; a diplomacia e a configuração política global mudam radicalmente a partir daqui. Um conflito dessa magnitude gera incertezas até mesmo entre autoridades no tema e, a fim de sanar as principais dúvidas sobre o futuro do mundo após o início formal do conflito, ESQUINAS apurou e compilou as principais informações sobre a questão ucraniana.

ucrânia

Zona de tensão

Desde o colapso da União Soviética, em 1991, diversos países que pertenciam ao bloco político da URSS ou estados-satélite da “cortina de ferro” se aproximaram dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Marcos desse avanço sob a ex-esfera de influência soviética são, por exemplo, a adesão da Polônia à União Europeia (UE) e a inclusão dos três países bálticos – Letônia, Lituânia e Estônia – à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Ex-república soviética, a Ucrânia é o maior país da Europa Oriental e, por razões históricas e estratégicas, a Rússia sempre considerou a manutenção de sua influência sobre os ucranianos como crucial. Esse cenário se complica a partir do Euromaidan, uma onda de protestos civis ocorridos na Ucrânia entre 2013 e 2014. As manifestações depuseram um governo aliado dos russos e instauraram no país um movimento político de aproximação com o Ocidente.

Volodymyr Zelensky, eleito em 2019 e atual presidente, verbalizou em diversas ocasiões o desejo de aderir a Ucrânia à OTAN e à UE. Ainda que o processo de inclusão nunca tenha sido aberto oficialmente, o Kremlin passou a analisar a inclusão da Ucrânia no bloco militar ocidental como iminente.

A “operação militar especial”, modo como Putin nomeia a invasão ao país vizinho, baseia-se oficialmente em razões controversas. O governo russo afirma que, desde a queda de Viktor Ianukovytch em 2014, facções neonazistas têm se aliado ao exército ucraniano no combate aos rebeldes pró-Rússia e políticos de extrema-direita têm chegado ao poder. A ofensiva, nessa ótica, é apenas uma missão de “desnazificação”. Não faltam declarações contundentes do presidente russo que caminham nessa direção, com destaque para a ocasião em que Putin chamou o governo Zelensky de “gangue de viciados em drogas e neonazistas”.

Curto e longo prazo

Como efeito imediato, a agressão russa desencadeou uma catástrofe humanitária. O número de refugiados cresce vertiginosamente e já está na casa dos milhões. Quem ficou no país sofre com a técnica militar de “terra arrasada”: cercos e interdições viárias visam sufocar o abastecimento das cidades e deixam a população civil sem suprimentos. Os civis do país invasor também sofrem: a Rússia isola-se definitivamente do cenário internacional e, como pária, sofre sanções que destroem a economia doméstica. Para os próximos meses e anos, porém, o que esperar da nova ordem global?

Segundo Giovana Dias Branco,  professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista sobre identidade russa no sistema internacional, o temor em relação a uma Terceira Guerra Mundial é exagerado. “Joe Biden sabe que entrar em um conflito direto com a Rússia é pedir para que ambos lados percam. Os arsenais nucleares de ambas as potências são gigantescos, fazendo com que não seja possível um confronto direto entre elas”, pontua Giovana.

Sob esse viés, o presidente dos Estados Unidos, ao anunciar o pacote de sanções à Rússia, afirmou que os danos serão causados a longo prazo e pediu paciência para aqueles que estavam à espera de uma grande resposta militar.

Nota-se, portanto, uma linha de atuação destoante entre Estados Unidos e Rússia: enquanto Biden descartou o uso do hard power, Putin apelou para o poderio militar. Para especialistas, o movimento é uma tentativa de colocar o país em um patamar de relevância internacional que desaparecera desde a extinção da União Soviética.

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Entre especialistas, todavia, não há consenso sobre a precisão do cálculo do Kremlin em partir para o uso da força militar. Para Guilherme Casarões, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a Rússia contava com mais celeridade no processo de invasão.

“Putin errou brutalmente o cálculo político. Ele tentou criar um fato consumado, buscando uma ação decisiva no país, forçando a submissão total da Ucrânia antes mesmo que o assunto fosse levado ao Conselho de Segurança, o que não aconteceu”, afirmou Casarões em uma coluna digital. Nesse sentido, a morosidade deixa a Rússia mais vulnerável ao sufocamento econômico promovido pela comunidade internacional.

Limites da ofensiva

Por razões históricas que retomam para muito além da União Soviética, a Ucrânia é primordial para os russos. Assegurar a hegemonia regional sob seus ex-domínios políticos, assim, é questão de orgulho e segurança nacional para Moscou. Haveria, nesse sentido, a possibilidade de Putin continuar avançando pelo leste?

“Creio que não. É como se a Ucrânia fosse uma linha vermelha, um limite que a OTAN não poderia violar. Como se estivessem invadindo o quintal russo”, afirma Dias Branco. A professora da FGV relembra, porém, que essa distensão abrupta com o Ocidente, consumada com a invasão na Ucrânia, não era a preferência de Vladimir Putin, que no passado tentou afirmar-se como aliado da Europa.

Uma nova era

A aliança política entre Rússia e China e a fortificação da economia chinesa vêm transformando o cenário geopolítico do século XXI. Ainda que se mantenha como a principal potência econômica e militar do mundo, os Estados Unidos observam a ascensão de novos partícipes no debate internacional e, a partir de agora, terão de se acostumar a uma nova ordem global mais pluralizada e aberta aos interesses do Oriente, como observa Giovana. “É uma guinada a uma era pós-americana”, afirma a professora.

Cada vez menos hegemônica, a autoridade internacional dos Estados Unidos vem acumulando frustrações, tal como as investidas no Iraque e Afeganistão, e sendo cada vez mais questionada. Ainda que militarmente poderosa, a OTAN foi peitada pelos russos e, mesmo diante de uma invasão agressiva e irregular, não respondeu a questão nos mesmos termos. Mesmo com as ameaças de retaliação e grandes mobilizações de apoio à Ucrânia, a Rússia desafiou os limites da aliança militar ocidental e está construindo uma imagem cada vez mais firme.

Como Vladimir Putin vai seguir jogando? A resposta para o futuro da Rússia e do mundo está no passado. Enquanto Putin puder avançar e reafirmar a Rússia como uma potência geopolítica, assim o fará. Da anexação de territórios à deposição forçada de inimigos políticos, os russos parecem dispostos a perpassar convenções internacionais e a própria diplomacia.

Incidir diretamente na OTAN parece a única linha que o Kremlin não está disposto a cruzar.

Editado por Juliano Galisi
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