Dependendo do bairro, a ausência de cobertura vegetal pode aumentar a média da temperatura em até 4°C, prejudicando a saúde dos moradores
Segundo dados de julho deste ano disponibilizados pela prefeitura, a vegetação presente na cidade de São Paulo tem uma cobertura desigual através dos bairros, com regiões nobres contendo até cinco vezes mais árvores do que locais da periferia. Esse fenômeno é resultado da expansão não planejada da cidade e pode provocar diversas consequências para a saúde dos moradores, conforme especialistas consultados pela reportagem.
No bairro do Sapopemba, zona leste de São Paulo, a cobertura vegetal per capita, ou seja, a área vegetal em metros quadrados por habitante do bairro, é de aproximadamente 5m². Para comparação, seria equivalente a um banheiro doméstico pequeno. A estatística se torna mais chocante porque o Sapopemba representa o 4° bairro mais populoso da cidade, com cerca de 267 mil habitantes, de acordo com o Censo 2022.
Uma iniciativa por mais árvores na cidade
Essa baixa densidade de árvores não é uma característica isolada do Sapopemba. Outros bairros da zona leste de São Paulo, como a Penha, sofrem do mesmo problema. Foi por isso que Hélio da Silva tomou uma iniciativa e deixou a carreira de empresário para reverter esse cenário. Desde 2003, o morador da região já plantou mais de 41 mil mudas de árvores, que deram origem ao Parque Linear Tiquatira.
“Eu comecei sozinho. Todo mundo me desestimulou, falaram que era loucura, que eu ia ter problema com o Poder Público e com os comerciantes da região”, lembra o plantador de árvores. Mas, apesar das críticas e dos obstáculos, Hélio foi capaz de transformar um local abandonado em cerca de 320 mil metros quadrados de área verde. O intuito do plantio é resgatar a Mata Atlântica, bioma nativo do estado de São Paulo. “O homem não enxerga as árvores, ele se desconecta a custo do chamado progresso, mas que progresso é esse que destrói?”, ele questiona.
Segundo ele, que hoje tem 72 anos, existe uma necessidade de “plantar a espécie certa, no lugar certo.” Isso porque, das árvores e áreas de bosque que existem na cidade, muitas não são da espécie vegetal mais apropriada para aquele ecossistema, o que acarreta em raízes grandes demais que estouram as calçadas e galhos que se enrolam na fiação.
Assim, Hélio ressalta que houve muito estudo em todo o processo de reflorestamento da área que viria a se tornar o Parque Tiquatira. Hoje, ele relata felicidade ao perceber benefícios para a comunidade que vive no entorno. Um local antes considerado perigoso é agora um ponto de lazer, onde famílias se reúnem e praticam atividade física. Ele afirma, contudo, que o principal ganho está na melhora da sensação térmica. “Houve uma regulação da temperatura. O que era uma ilha de calor se tornou um ‘ar condicionado natural’ da região.”
Isso porque as árvores desempenham um importante papel na regulação das temperaturas e na melhora da qualidade do ar. Esse processo se dá por três fatores: sombreamento, absorção de calor e evapotranspiração, que é um processo de liberação de vapor d’água pelas folhas. Em tempos de mudanças climáticas, com irregularidades nas chuvas e ondas de calor extremo, as árvores se tornam ainda mais essenciais. Por isso, Hélio destaca: “só temos plano A, só temos esse planeta aqui.”
A “ilha de calor” representa um aumento das temperaturas de áreas urbanas em níveis acima das registradas em regiões rurais. Acontece por conta da alta retenção de calor por materiais de construção civil, como asfalto e concreto. De acordo com um levantamento feito em 2024 pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo, esse fenômeno pode levar a uma média de variação de 4°C em diferentes bairros da cidade. O estudo, que analisou medições de 30 estações meteorológicas através de 10 anos, constatou que bairros como Mooca, Vila Prudente, Penha e Sé apresentaram maiores medições de temperatura e menores índices de umidade, em vista da baixa densidade arbórea.
Quando questionada sobre mapeamento oficial das variações de temperatura para a criação de políticas públicas, a Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, afirmou que não detém no momento. Em depoimento, representantes afirmaram que “está sendo desenvolvido um grupo de trabalho junto da Secretaria de Saúde para monitoramento das temperaturas, uma iniciativa ainda embrionária”, com prazo estimado para o ano de 2026.
Ainda de acordo com dados disponibilizados pela Secretaria, a área verde em São Paulo cresceu de 48% para 54% do território municipal, entre 2020 e 2023. Apesar disso, é importante ressaltar que essa denominação não corresponde somente às árvores, incluindo grama e vegetações pouco densas. Esse conceito difere de massa arbórea, que é equivalente a um agrupamento de pelo menos quinze árvores, com uma cobertura mínima de copa contínua de 500m², segundo os parâmetros da prefeitura. Ou seja, a área verde não tem a mesma capacidade de absorção de calor que a massa arbórea.
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Por que há uma distribuição de árvores desigual pela cidade?
De acordo com Fernando Souza, sócio-fundador da Urbit, plataforma de dados geoespaciais voltada para o mercado imobiliário e políticas públicas, São Paulo tem uma massa arbórea significativa. “São Paulo tem em torno de 35% de massa arbórea. Ou seja, quase um terço do território é coberto pela copa das árvores. A questão principal é a distribuição disso no território. Quando você vai para a Zona Leste e grande do miolo da Zona Norte, principalmente, o indicador é péssimo, horroroso. Já na Zona Oeste, Alto de Pinheiros, Jardins e Butantã, que foram bairros planejados com o conceito de cidade verde, tem um ótimo indicador.”
O selo de Cidade Verde do Mundo, criado pela ONU para designar espaços urbanos resilientes, que englobam pilares da sustentabilidade, conta com 13 cidades paulistas das 34 reconhecidas pela instituição, por todo o Brasil. O estado de São Paulo lidera, se destacando internacionalmente por sua área verde. Entretanto, a distribuição destas áreas não é homogênea, causando disparidades . “É muito boa [a arborização em SP], lógico, no extremo sul, uma região ainda rural, como Marsilac. Só que São Paulo tem uma extensão muito grande”. São os bairros mais urbanizados, e não planejados, que apresentam os piores indicadores, como os na região central da cidade.
Subprefeitura da Sé: um retrato da desigualdade
Em bairros dentro da Subprefeitura da Sé, há uma diferença notória. Higienópolis, por exemplo, possui uma boa arborização. Fernando coloca que esse bairro foi criado por uma elite de São Paulo, há mais de 80 anos atrás. “Ele foi planejado e destinado para um público de alta renda desde então. E assim permaneceu”. Já na área central, a situação não é a mesma: Sé e República estão entre os cinco bairros com menos árvores, e são administrados pela mesma subprefeitura dos bairros mais arborizados da cidade, segundo dados da Urbit. “Quando você passa a analisar como isso se distribui territorialmente, você vê muita desigualdade. E essa desigualdade tem uma correlação muito forte com a renda”, diz Souza.
O sócio da plataforma ainda pontua que o que agrava essa desigualdade, além da questão da renda, é o planejamento da cidade. Bairros que concentram uma população com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) foram planejados com um conceito, formando boas urbanizações. Já os bairros com uma renda inferior tendem a ter uma urbanização pior, porque não foram fruto do mesmo processo de planejamento.
De acordo com o pesquisador, São Paulo foi crescendo a partir de loteamentos. Antigamente, a cidade era um conjunto de chácaras e fazendas, com algumas propriedades com loteamentos melhores, planejados. Outras, não. Além disso, existe uma questão cultural muito forte na cidade de São Paulo: o espaço para carros . “Se você for plantar árvores num bairro que não foi planejado, vai plantar onde? Plantando na calçada, você vai tirar o espaço do pedestre. E hoje ele mal tem. Ou alargar a calçada, para não roubar o lugar do pedestre, e acabar roubando o lugar do carro. Isso é uma briga.”, conclui Fernando.
Quais os impactos para a saúde?
Natália Aquino, moradora da República, relata que sua saúde foi comprometida tanto por conta da baixa taxa de árvores do bairro quanto pelo grande fluxo de veículos que transitam pela região. “Nesses anos que estou morando aqui, faço alguns tratamentos para melhorar um pouco a condição da rinite, mas é algo que que se percebe que é agravado por conta da região e dessa ausência de purificação do ar. Eu acredito que as árvores e uma arborização maior contribuiria para mitigar [os impactos]”, afirma a moradora.
A entrevistada, natural de Uberlândia, Minas Gerais, diz que já é perceptível como a qualidade do ar é pior na capital paulista. Essa incidência da poluição ultrapassa até mesmo as barreiras físicas de sua casa: “Dá para se perceber quando eu passo, por exemplo, um pano nos móveis. Ou quando eu varro o chão e sempre vem acompanhado de uma poeirinha preta, que é a fuligem. Quando você passa um pano úmido, ele vem um pouco preto. É estranho, porque a gente não vê acontecendo agora, mesmo a gente olhando”, compartilha Natália.
Além dos impactos visíveis na saúde, a poluição também agrava outras partes da vida de Aquino: “É uma área com um trânsito muito intenso e uma poluição sonora também. Eu acredito que com essa quantidade de veículos, a poluição da região também é agravada porque acaba que se emite, né? É uma coisa que não cessa mesmo à noite ou de madrugada”, afirma a moradora.
Este cenário piora com a baixa umidade do ar. No dia 11 de setembro deste ano, o mirante de Santana registrou 11%, considerada “situação de emergência”. De acordo com a pneumologista e diretora clínica do Hospital São Paulo Jaquelina Ota Arakaki, o ideal para o corpo humano seria entre 40 e 60%, e números abaixo de 30 já representam um alerta. A situação é mais alarmante para os grupos mais vulneráveis, como crianças, idosos e portadores de doenças crônicas, ressalta.
Esse ar mais ressecado aumenta o risco de infecções ou inflamações respiratórias, afirma Arakaki. “Nós temos, na nossa via respiratória, um muco que a protege, então, ao inalar vírus, bactérias ou mesmo poluentes, eles reduzem a chance de invasão da nossa mucosa. Então, o ressecamento da mucosa [em razão da baixa umidade] prejudica a nossa defesa”, explica.
Além da secura, a falta de áreas verdes gera um ar mais poluído, já que as árvores têm a capacidade de filtrar o CO2 e outros gases poluentes. Arakaki explica que essa pior qualidade do ar é prejudicial não só para a saúde respiratória, piorando a função pulmonar mas também para a cardiovascular, representando um risco especialmente para portadores de doenças crônicas.
A médica ressalta a importância de não realizar atividades físicas durante os horários de pico no trânsito, quando a poluição é mais intensa, e evitar o uso de ar-condicionado, que resseca ainda mais o ar. Além disso, medidas simples, como manter uma boa hidratação e cumprir o calendário de vacinas podem ser fundamentais para minimizar os prejuízos, conclui.
Editado por Enzo Cipriano
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