'Você não é o culpado': há mentira na individualização da crise ambiental? - Revista Esquinas

‘Você não é o culpado’: há mentira na individualização da crise ambiental?

Por Ana Luiza Messenberg, Letícia Riby, Maria Laura Mazo e Victória Gorski. : outubro 30, 2024

100 empresas foram responsáveis por 71% das emissões globais de gases de efeito estufa desde 1988. Foto: Reprodução/Pexels

Embora as ações individuais sejam importantes, a dimensão da crise ambiental exige transformações que ultrapassam o consumo consciente

Reduzir o tempo de banho, separar o lixo e consumir produtos sustentáveis, são práticas consideradas imprescindíveis no atual cenário. As grandes corporações, no entanto, frequentemente passam despercebidas no debate — mesmo possuindo um impacto significativamente maior sobre a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente.

Rafael Onori, coordenador da área de mobilização de comunidades do Greenpeace Brasil, reforça a importância das ações individuais, mas destaca o quanto essa visão pode ser distorcida.

As grandes corporações, os governos e as empresas têm um grande papel e poder na tomada de decisão para mudar a nossa relação com o meio ambiente.” 

Ele também enfatiza que o Greenpeace investe em ações que fazem com que as pessoas se envolvam com o tema. A responsabilização dos indivíduos sobre a crise climática, têm levado a população a acreditar que pequenas ações são a chave para a salvação do planeta. Elas são geralmente promovidas por campanhas de marketing e discursos governamentais que distorcem essa responsabilidade. 

A verdade, porém, é que por trás desse discurso, esconde-se uma estratégia de desvio de responsabilidade: o impacto ambiental das ações de cada um é mínimo, quando comparado com a causa e feito das grandes corporações e governos. 

Nova onda do ESG  ambiental

Criado com a primeira publicação do Pacto Global — iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) que incentiva empresas a adotarem princípios universais em suas práticas de negócios — em 2004, o termo ESG refere-se a “environmental, social and governance”, em inglês. Trata-se da adoção de um conjunto de práticas empresariais social e ambientalmente conscientes, além de exigir maior transparência com o seu público.

Apoiada nos três principais pilares citados, a política de ESG exige das empresas o compromisso com a redução da pegada de carbono e uso consciente dos recursos naturais, além de discutir a importância de questões como direitos trabalhistas, inclusão e diversidade. A implementação de práticas éticas, combate à corrupção e a divulgação de relatórios periódicos de sustentabilidade, auditorias externas e o compromisso das empresas com metas mensuráveis de impacto ambiental e social também são pontos essenciais.  

Completando duas décadas em 2024, a política ganhou força nos últimos anos frente ao avanço da crise climática, criando uma maiorpressão social” em cima de grandes empresas ao exigir que adotem práticas sustentáveis de produção e consumo. Além de enfrentar a expectativa crescente dos consumidores, as organizações também precisam equilibrar essa transformação com desafios como custos iniciais, adequação de processos produtivos e resistência de alguns setores 

É claro que isso trouxe pontos positivos ao pensarmos em nos aproximar da utopia de um mundo ambientalmente consciente e com desmatamento zero, mas a realidade não é bem assim. A nova onda sustentável abriu portas para o oportunismo de algumas marcas que, ao apoiarem-se em campanhas de marketing com discursos supostamente ambientalistas, maquiam suas informações para manter uma imagem consciente enquanto não adotam essas ações por trás das cortinas.

Essa prática, que leva o nome de Greenwashing, desvia a responsabilidade dessas grandes corporações frente aos problemas ambientais, fomentando o falso discurso de que o problema está nas ações cotidianas do restante da população 

Consciência x Políticas  ambiental 

Nos últimos anos, a narrativa de que a responsabilidade ambiental recai sobre o indivíduo tem sido utilizada de forma massificada, especialmente nas campanhas de marketing de grandes empresas, enfatizando a ideia de que ações como reciclar, evitar plásticos e descartáveis ou reduzir o consumo de energia são suficientes para combater a crise climática.

Mas, na maioria das vezes, essa discussão desvia a atenção do público para as práticas corporativas que têm um impacto muito mais nocivo no meio ambiente. De acordo com o relatório do Carbon Disclosure Project (CDP), somente 100 empresas foram responsáveis por 71% das emissões globais de gases de efeito estufa desde 1988. 

Essa escolha de pauta não é inocente. Muitos meios de comunicação dependem financeiramente de anunciantesem sua maioria, de grandes empresas que se beneficiam do discurso de responsabilidade individual. A indústria de combustíveis fósseis, por exemplo, anos promove campanhas de consumo consciente, como a neutralização de carbono por meio do plantio de árvores, ao mesmo tempo que continua a expandir operações poluentesMuitos enxergam essa narrativa, da culpa recair sobre os indivíduos, como uma distorção dos verdadeiros responsáveis pela crise.

Outros, como Rafaela Lolo, jovem de 23 anos e participante da causa animal, defendem que  atitudes individuais, quando adotadas por muitas pessoas, podem ter um impacto significativo na preservação do meio ambiente e na redução das mudanças climáticas.

Acredito que os principais culpados sejamos nós, seres humanos, devido à nossa produção e consumo excessivos, além do desmatamento e da poluição que causamos“, comenta a ativista pela causa animal.

Rafaela é vegetariana 7 anos e decidiu parar de consumir carne por compaixão aos animais, o que a fez adotar outras práticas conscientes como a reciclagem e a economia de água e energia em casa. É fato que reduzir um banho de 15 minutos para apenas 5 pode economizar até 90 litros de água, mas, embora seja um gesto positivo, ele é ínfimo diante dos impactos gerados por práticas industriais insustentáveis.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a produção de um único quilo de carne bovina consome cerca de 15 mil litros de água. Esse número revela uma disparidade gritante entre as ações individuais e os danos provocados por setores produtivos que operam em escala massiva. 

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A moda, por exemplo, começou a utilizar campanhas que trazem o ar de sustentabilidade ao consumidor. Isso começou, principalmente no mundo pós-pandemia, mas ao mesmo tempo, fogem da verdadeira essência da causa. Essas empresas geralmente utilizam a pauta como uma forma de atrair mais clientes e vender mais, fazendo-os a acreditar que tem o poder de mudança e estão ajudando o meio ambiente, quando na verdade, não estão. 

Vale ressaltar que essa indústria é uma das que mais contribui para poluição e degradação mundial: de acordo com um levantamento publicado pela Global Fashion Agenda, mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartados em anos anteriores. 

Muitas delas [empresas], utilizam ações de marketing para tentar fazer com que as pessoas tomem ações individuais e desfoque um pouco da responsabilidade deles. Vou dar um exemplo: é muito importante a gente ter uma boa gestão hídrica em casa, tomar banho curto e desligar o chuveiro para se ensaboar, mas não é isso que é o que mais drena a nossa água, o nosso grande recurso. Grandes empresas e indústrias, como a têxtil, por exemplo, usam litros de água para fazer uma peça de uma calça jeans, explica o coordenador de comunidades do Greenpeace Brasil

Ele também ressalta as consequências das ações individuais e a real contribuição de órgãos maiores para a crise ambiental.

Um estudo publicado pela Nature aponta que, enquanto as emissões globais de CO₂ crescem de forma abundante, o foco na mudança de pequenas ações individuais criam em pessoas ‘reais’ uma falsa sensação de controle. Em 2019, 36,8 bilhões de toneladas de dióxido de carbono foram emitidas mundialmente, um aumento de 62% desde 1990, reforçando que a grande problemática vem da maneira como a economia global é estruturada. A campanha da Coca-Cola, “Beyond the Bottle”, incentiva o uso de garrafas reutilizáveis, ao mesmo tempo que a empresa continua sendo uma das maiores produtoras de plástico do mundo.

“A gente tem que focar muito mais nessas ações corporativas do que exclusivamente trazer para o indivíduo o poder de mudar, alterar ou culpabilizá-los das questões climáticas e ambientais que a gente enfrenta atualmente”, defende o coordenador.

Qual o real impacto?ambientais 

 Os efeitos das mudanças climáticas afetam tanto indivíduos quanto empresas, mas de formas muito diferentes. Para o cidadão comum, as consequências são diretas: enchentes, secas prolongadas, aumento no custo dos alimentos e perda de qualidade de vida.

Em 2024, enchentes em áreas urbanas brasileiras deixaram um rastro de destruição, com mortes, perda de moradias e interrupções nos serviços essenciais — afetando, sobretudo, as populações mais vulneráveis. Por outro lado, corporações raramente sentem os impactos da mesma maneira. Em muitos casos, grandes empresas conseguem repassar custos ambientais para consumidores e comunidades. Além disso, muitas delas seguem operando com incentivos fiscais e apoio governamental, mesmo em meio à crise climática.

A mineradora Vale, por exemplo, ilustra bem os pesos e medidas. Apesar de promover programas de sustentabilidade e responsabilidade social, a empresa esteve no centro de desastres ambientais de grande magnitude. Os rompimentos das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) devastaram comunidades, poluíram rios e ecossistemas, e liberaram 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos. Mesmo após os impactos causados, a empresa segue em funcionamento como a 3° maior companhia do Brasil.

Enquanto a população é incentivada a tomar pequenas atitudes sob o discurso de “salvar o planeta“, grandes corporações seguem operando com práticas prejudiciais, desvirtuando o real foco do problema e permitindo que práticas devastadoras sigam acontecendo. 

Editado por Bruna Blanco

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