“Não deixo ninguém cortar as pontas das asas secretas das quais eu nasci”, repetiu Auritha durante os quatro anos em que viveu nas ruas
Contar a trajetória da escritora cordelista Auritha Tabajara é contar a história de uma mulher cujo registro se deu sob o nome de Francisca Aurilene. Isso porque o nome indígena escolhido por sua avó nordestina tabajara não pôde ser registrado no cartório em 1979. Mas a negação do próprio nome foi apenas o seu primeiro obstáculo.
Ao longo de sua vida, Auritha foi alvo de preconceitos de toda ordem, dentro e fora da aldeia. Fugiu de um relacionamento abusivo, chegou em São Paulo sem ter para onde ir e ficou longe de suas filhas por anos. Mas a cordelista não se deixou abater. Fez da dor, matéria de verso.
A relação com a escrita
Apesar da história marcada por percalços, Auritha tornou-se a primeira mulher indígena a escrever cordel no Brasil, sendo que uma de suas obras – “Magistério Indígena em versos e poesia (2007)” – se tornou leitura obrigatória nas escolas públicas do estado do Ceará. Essa relação começou já durante a infância na aldeia tabajara.
Auritha foi alfabetizada aos seis anos e escreveu, aos nove, seu primeiro texto “O Grão”, que hoje é um sucesso nas redes sociais. Foi a única da sua família – e da aldeia – a frequentar uma escola não indígena. Sua avó, Yacunã, sempre a apoiou e foi um dos motivos dela ter começado a escrever, sendo descrita pela cordelista como uma contadora de histórias, em especial durante sua infância. “As histórias que ela conta eram algo que eu queria muito registrar para que outras pessoas conhecessem o nosso povo”.

Auritha, sua avó, irmã e sobrinho.
Foto: Acervo Pessoal de Auritha Tabajara
Durante essa fase de estudos, Auritha sofreu com a distância, já que a escola se localizava há doze quilômetros da sua aldeia, além de ter que lidar com preconceitos, sendo a única indígena lá. A cordelista relata com um humor ácido que sofria bullying, mas não compreendia aquilo. “Eu não conhecia esse termo, porque na aldeia, na minha cultura, não escuto essas palavras. Minha avó disse que “bule” é um negócio de colocar café”.
Hoje, Auritha Tabajara é autora de obras como “Toda luta, a história e a tradição de um povo (2010)” e “Coração na aldeia, pés no mundo (2019)”. Sua agenda vive cheia, repleta de viagens e eventos. Ela dá palestras em diversos Sescs e difunde pelo Brasil e até outros países a sua história, as crenças e valores indígenas. A escrita, para ela, é uma ferramenta de memória, visibilidade e afirmação da identidade do seu povo.
“A demônia do Nordeste”: uma lésbica na aldeia
Dentre as muitas identidades que Auritha carrega em sua escrita e sua luta, está o reconhecimento de sua sexualidade. Segundo a cordelista, ela sempre soube que era lésbica. Mesmo consciente sobre sua sexualidade desde a infância, seguiu a tradição da aldeia e se casou aos 19 anos com um homem do povo Calabaça escolhido por seus avós. Mas não fez isso de forma passiva.
Na época, o casamento seguia uma tradição entre os Tabajara: o Ritual do Espelho. Diante de um espelho do seu tamanho, colocado entre ela e o noivo, a noiva deveria declarar, olhando para o próprio reflexo, que estava sendo entregue a um homem. Auritha se recusou. Não repetiu as palavras. Em vez disso, quebrou o espelho. O gesto foi simbólico e marcante. Desde então, o Ritual do Espelho deixou de ser praticado na aldeia.
Ficou casada durante 14 anos. Nunca amou o marido e conta que se apaixonou por uma mulher em meados dos anos 2000, enquanto cursava o Magistério Indígena, no Ceará, o que hoje é equivalente à Pedagogia. Mesmo em matrimônio e com duas filhas, não houve impedimentos para que ela deixasse claro seus interesses.
“Eu fazia questão que todos soubessem que eu estava apaixonada. Eu subia no palco da universidade e declamava poesia para ela. As pessoas falavam: ‘Tu é doida de fazer uma coisa dessa, está colocando as meninas em mal caminho’. E aí eu fiquei famosa por ser a demônia do Nordeste”, conta ela.
Muitos anos depois, na Assembleia, um movimento que reúne grandes lideranças indígenas e várias aldeias, Auritha chegou a levar uma namorada, apresentando-a como parte de sua família. A cordelista afirma que o movimento LGBTQIA+ ainda luta por espaço nas comunidades indígenas, mas hoje já é comum um intercâmbio entre as aldeias para abordar essa pauta. “Quando a gente tá fora de casa, a gente pede para que a sociedade não indígena nos respeite. Aí volto para casa e tenho que pedir para a minha própria família para me respeitar? Só porque o meu corpo pede coisas diferentes do de vocês?”
4º Sou indígena sou guerreira,
Juntando se a resistência,
Sábia e com inteligência,
Que luta por igualdade,
De toda comunidade,
Pra um dia ser inspiração,
Violência eu digo ,não,
Pois é tempo de somar,
E tu pode acreditar,
Eu já nasci sapatão.
5º Que as pessoas sejam livres,
Pratique somente o bem,
Bonito não é quem tem,
Mas quem sabe dar valor,
Seja também o autor,
Da sua reflexão,
Por não atender padrão,
Eu já fui descriminada
Outras vezes rejeitada,
Eu já nasci sapatão.
6º Eu creio que chegue um tempo,
Que não irá precisar,
Da mulher ter que gritar,
Pra se livrar do agressor,
Que a vida seja amor,
Pra cada situação,
Que esse meu coração
Seja pra quem eu quiser,
Inclusive de outra mulher,
Eu já nasci sapatão.
7º Que a tal da homofobia,
Nem possa mais existir,
Que a lei possa garantir,
O todo por igualdade,
Justiça e sociedade,
Saiam da escuridão,
De salto ou de pés no chão
Que eu possa ser feliz,
Aqui ou em outro País,
Eu já nasci sapatão.
Trecho do cordel “Eu já nasci sapatão”, de Auritha Tabajara.
Fuga da aldeia
O período de afirmação da sexualidade de Auritha também foi um tempo de perda e violência. Os 14 anos de casamento foram brutais. Ela relata que sofria agressões constantemente. Ao longo desse tempo, teve quatro filhos, mas perdeu dois. Hoje, suas filhas têm 19 e 22 anos.
Um dos episódios de violência contra ela foi quando estava grávida de sua filha mais nova, Ana. Seu marido quebrou um copo de vidro em sua perna. Quando foi para o hospital, a enfermeira perguntou porque Auritha não denunciava aquela situação. “Se já é difícil para quem não é indígena denunciar, imagina para mim”. Mas ela conta que o cenário mudou. Hoje existem movimentos que empoderam as mulheres indígenas e Auritha foi a precursora de muitos deles, principalmente na esfera LGBTQIA+.
Ainda em 2009, infeliz com os maus tratos e a situação em casa, Auritha decidiu fugir. Ela sabia que não era a melhor opção, mas sofrer com os abusos de um homem que a agrediu tantas vezes, era inviável. Sua ideia era se estabelecer em São Paulo e buscar as filhas depois, para que as três morassem juntas na cidade.
Mas a saída do nordeste não foi fácil. Auritha fugiu durante a noite. Em sua aldeia, existia uma van que levava as pessoas até um hospital em Fortaleza. Naquela noite, como havia lugar disponível no veículo, ela conseguiu viajar até a cidade. Chegando lá, foi atrás de sua tia, para perguntar sobre o pai, que morava em São Paulo.
Ela lhe deu o número dele e, como não tinha celular, Auritha ficou tentando ligar para o pai por um orelhão. Quando ele atendeu, disse que queria ir para São Paulo, para conhecê-lo. No mesmo dia, ele comprou a sua passagem. Ela não sabia muito sobre ele, pois Antônio Conceição havia violentado sua mãe aos 15 anos e fugido.
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Nas ruas de São Paulo e conexão com ancestralidade indígena
Ao chegar em São Paulo, ela se viu perdida. Tantos prédios e um chão de asfalto. Auritha sentiu falta de pisar na grama e no solo com seus pés descalços. Carregava consigo apenas uma maracá (instrumento musical) que sua avó lhe presenteou e folhas de um manuscrito que posteriormente se tornou um de seus livros. Ela virou moradora de rua, na região da Paulista. Ficava próxima ao Itaú Cultural. Mesmo com o pai em São Paulo, Auritha se negou a pedir ajuda ao homem que nunca se fez presente.

Maracá que Yacunã deu para Auritha.
Foto: Acervo Pessoal de Auritha Tabajara
Durante os três anos em que ficou em situação de rua, apesar de não ter quase nada material consigo, Auritha ainda tinha a sua avó. A conexão das duas sempre foi muito forte, e mesmo à distância, ela se sentia próxima, através da sua ancestralidade. Ela ouvia e repetia em sua mente a frase dita pela anciã. “Não esqueço quem eu sou, o significado do meu nome e não deixo ninguém cortar as pontas das asas secretas das quais eu nasci”.
Auritha também conta que passou fome. “Na rua você sente uma fome da alma, que dói, você não sabe quando vai comer. Eu cantava, eu dançava para não sentir a dor da fome. Eu tinha minha maracá nas ruas também, eu saí com ela”. Com a maracá em suas mãos, um símbolo da sua ancestralidade indígena e da conexão com a sua avó, Auritha teve forças para aguentar aquela situação.
Certo dia, a cordelista se deparou com a sua prima em um dos bares da Avenida Paulista. Ela reconheceu Neuda por fotos que tinha visto em redes sociais. A mulher decidiu ajudá-la e levou-a consigo para onde morava, no Jabaquara. Quando a mãe de Neuda viu Auritha, se enfureceu e disse que não aceitaria que ela morasse lá. Na manhã seguinte, a mulher havia sumido e deixou as duas sozinhas.
O apartamento não era mobiliado, mas pelo menos tinha paredes e um teto. Lá, Auritha e Neuda se estabeleceram e correram atrás de suas vidas. Uma das partes mais difíceis da situação era procurar emprego. O psicológico de Auritha estava completamente abalado e ela sentia falta de suas filhas. Mas conta que nunca desanimou. Começou fazendo faxina, depois virou operadora de telemarketing.
Durante esse período ela fez um curso de terapia holística e depois atuou como técnica de enfermagem, para cuidar de idosos. Apesar de estar empregada, o que fazia os olhos de Aurtiha brilhar era a literatura. Ela foi atrás desse sonho antigo e começou a ir até escolas para mostrar o seu trabalho, além de CEUS (Centros Educacionais Unificados), bibliotecas comunitárias e Sescs, onde ela participa de palestras até hoje.
Nesse meio tempo, suas filhas cresceram longe da mãe e influenciadas por um pai que contava mentiras. Ele tirou a guarda das meninas, alegando abandono. Ana, a mais nova, tinha em seu imaginário que Auritha tinha a esquecido.
“Não foi morar na rua que me desestruturou, foi a perda da guarda das minhas filhas. Isso acabou comigo emocionalmente, porque ele ficava falando mal de mim para as meninas e elas foram acreditando. Minhas filhas cresceram revoltadas comigo. Ele me privou de ver elas.”, conta a cordelista.
Quando Auritha fugiu do Ceará, Ana tinha apenas 3 anos e não se lembrava claramente de sua mãe. Com a cabeça moldada apenas pelos relatos do pai, ela decidiu ir atrás de sua mãe em São Paulo e conhecê-la de verdade. Em 2017, com 11 anos, ela foi até o Conselho Tutelar e pediu para morar com Aurtiha. A cordelista foi buscá-la no Ceará e atualmente as duas moram juntas, em Guarulhos. Com a convivência, as duas se reconectaram e Ana comenta que compreende os motivos de sua mãe, a apoia e admira sua força.

Ana e Auritha.
Foto: Acervo Pessoal de Auritha Tabajara
Sua outra filha saiu de casa com um rapaz aos 13 anos. Auritha ficou sem notícias dela por 6 anos. Para tentar encontrar a menina, ela escrevia textos, canções sobre a filha. Foi por conta de um desses cordeis que ela resolveu entrar em contato com a mãe e se reaproximar de Auritha.
O legado de Auritha
Seja obra do acaso ou destino, a primeira palestra de Auritha aconteceu no Itaú Cultural, próximo de onde ela viveu por três anos na rua. Segundo ela, chegar lá para contar sobre a sua história e com a certeza de que sua vida havia definitivamente mudado não foi fácil. Naquele dia, ela relata que chorou no palco, e que fez toda a plateia chorar com as suas vivências. “Eu lembrei que quando eu estava na rua ficava vendo as pessoas passarem com pão de queijo. Eu morria de fome e tinha muita vontade de comer pão de queijo. Mas naquele dia eu entrei como artista e eu pude comer quantos pães de queijo eu quisesse”, conta.
Foi um dia muito simbólico para a sua carreira e para a sua vida. Desde então, por meio de suas palavras, Auritha busca promover a conscientização acerca da importância da preservação do meio ambiente, da cultura e dos valores indígenas. “Como escritora e artista, um dos maiores desafios é tentar plantar nessa grande selva de pedra a minha escrita que talvez seja um reflorestamento de mentes, em um lugar em que não existem mais florestas”, afirma.
Em 2023, durante a Feira Internacional do Livro, em Paraty, Auritha conta que se deparou com uma menina segurando um de seus livros embaixo do braço e a encarando. Depois de um tempo, a garota se aproximou e contou um pouco sobre sua história. A menina cursava faculdade de história e era da comunidade LGBT, mas tinha muitas dificuldades com a família por conta de sua sexualidade. “Ela estava planejando suicídio, uma professora dela deu o meu livro de presente e quando ela o leu, mudou de ideia”.
Por fim, Auritha admite que nunca fez parte de seus planos se tornar uma referência. Ela acredita que simplesmente viveu – e vive – sua vida lutando contra determinadas imposições sociais que ela pensa serem injustas – e essa postura reverberou para as gerações seguintes. Um de seus maiores sonhos, conta, é ressignificar o termo “tabajara”, historicamente associado a algo “falso”. Auritha afirma que vem trabalhando nisso há anos, mas reconhece que ainda há um longo caminho a percorrer.
“Quero que as pessoas entendam que a palavra tabajara é o nome de um povo que sempre existiu e resistiu muito antes de 1500. Quero que saibam que essa palavra significa ‘senhor da aldeia’ e que nós resistimos em três estados: Ceará, Piauí e Paraíba. Eu entendo que esse é um sonho que eu fui realizando aos poucos, mas que não está totalmente concluído. As pessoas ainda não nos respeitam como nós merecemos ser respeitados”, conclui.