Fake news e preconceitos antigos estimulam violência contra muçulmanos, dalits e indianos de origem chinesa; muitos foram submetidos a maus-tratos e mantidos em quarentena obrigatória pelas autoridades, mesmo sem sintomas de covid-19
Desde o início da pandemia eclodiram no mundo todo atos racistas e xenófobos contra pessoas de ascendência asiática, principalmente chineses. Vizinhos da China, os residentes da Índia nascidos no leste da nação indiana se assemelham fisicamente a asiáticos e relatam hostilidades sofridas nas ruas e em estabelecimentos. Olhares de suspeita, insultos verbais – são chamados de “corona” e “coronavirus” e até casos de espancamento são divulgados em diversos jornais. Além de assédio contra mulheres, ameaças nas redes, entradas proibidas em locais públicos e expulsão de estudantes e trabalhadores de repúblicas e albergues pelos inquilinos. Parece haver uma tentativa deliberada de encontrar um culpado pela pandemia com o objetivo de discriminá-lo.
O extenso país no Sul da Ásia registra mais de 340 mil casos confirmados de covid-19 e quase 10 mil óbitos pela doença. A população convive com o medo e persegue indianos de origem chinesa, muçulmanos e dalits — que compõem a base da pirâmide social do país — acusados de disseminar o vírus na Índia.
Cidadãos de “segunda classe” da Índia
Por se distinguirem dos hindus — mais de 70% da população — habitantes do nordeste indiano têm sua nacionalidade questionada. Em razão da pobreza e do elevado desemprego na região, muitos migram para as principais cidades do país como Nova Deli e Mumbai, mas a discriminação e o racismo dificultam sua inclusão social. Após a chegada do novo coronavírus à Índia, esses atos se tornaram mais frequentes.
“Mesmo após décadas de independência da Índia, nós, nordestinos, nunca fomos bem integrados. Muitos nos sentimos como cidadãos de ‘segunda classe’ em nosso próprio país”, afirma a indiana Ngurang Reena, pesquisadora da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Deli, escritora e ativista de direitos humanos.
Vítima de xenofobia, Ngurang relata algumas de suas experiências: “Durante uma conversa com o motorista do Uber, ele sugeriu que a solução para a atual pandemia seria matar todos os estrangeiros e imigrantes que estão trazendo doenças. Ele disse que ‘nós’ devíamos ser todos baleados ou queimados vivos. Foi assustador. E só enquanto eu falava em hindi [língua oficial da Índia], ele percebia que eu era indiana, e não chinesa. Essa última viagem de Uber pode ter me causado um trauma grave”.
Detalhando outro momento de agressão, a pesquisadora conta que “quando saí para comprar mantimentos, recebi vários xingamentos de um grupo de homens. O propósito deles era me intimidar. Não fiquei surpresa, mas indignada porque não foi a primeira vez que sofri esse tipo de provocação. No período mais crucial da história da humanidade, receio que tenhamos apresentado o pior comportamento, talvez uma demonstração de nossos preconceitos latentes”.
A “infodemia” acarretada pela pandemia
O preconceito contra essa comunidade é reforçado por uma onda de fake news que a associa ao novo coronavírus. O fenômeno da “infodemia”, a quantidade absurda de informações circulantes, muitas delas falsas, é capaz de gerar pânico e ódio. Isso de acordo com um levantamento de S. Harris Ali, professor de sociologia da Universidade de York, no Canadá. Ele explica que a epidemia de desinformação promove formas xenófobas e racistas de vigilantismo digital e usa certos grupos como bode expiatório. Esse problema não apenas provoca desordem social e dúvidas sobre em quais fontes de informação confiar, mas também compromete a resposta das autoridades à pandemia.
As fake news também são usadas como arma contra muçulmanos. Nas mídias sociais, publicações os acusam de espalhar o vírus, acentuando tensões religiosas já inflamadas no país. Ngurang pontua que, além de notícias falsas, hashtags islamofóbicas ganharam força na internet. “As hashtags #CoronaJihad e #Muslimscarryvirus [muçulmanos carregam o vírus] são tendências no Twitter para atacar muçulmanos. Existe uma combinação letal de mentiras e desinformação com essa escalada de violências”.
A mortal intolerância religiosa
Minoria no país, os indianos muçulmanos estão em conflito com os hindus há décadas devido à intolerância ao islamismo e aos movimentos separatistas da Caxemira — território predominantemente muçulmano. No entanto, com a chegada do novo coronavírus, os atritos se agravaram. Em 15 de março foi realizada uma congregação religiosa em Deli, que reuniu adeptos do islamismo de vários estados da Índia e outros que fizeram peregrinação recente no Irã. Semanas após o evento, um grande número de participantes testou positivo para a covid-19. Durante o processo de rastreamento e testagem, as autoridades de saúde indianas vincularam os casos ao encontro e o consideraram um dos focos do novo coronavírus no país.
Aproveitando o acontecimento, integrantes do partido Bharatiya Janata (Partido do Povo Indiano), de tendência fundamentalista hindu, defenderam medidas de repressão contra cidadãos muçulmanos, acusando-os de usar o vírus como ato terrorista.
Para Ngurang, discursos islamofóbicos de políticos estão legitimando crimes de ódio cometidos por civis. “Com as recentes injúrias de políticos indianos, a intolerância religiosa está se tornando natural. Por isso, muitos muçulmanos foram submetidos a maus-tratos e mantidos em quarentena obrigatória pelas autoridades, mesmo sem sintomas de covid-19. As notícias falsas e as mentiras sobre os muçulmanos criaram uma sensação de paranoia.”
Segundo informações da ONG “Human Rights Watch”, no mês de abril foram registrados em grupos de mídias sociais e aplicativos de conversa pedidos de boicote aos comerciantes muçulmanos. No Punjab, estado no norte da Índia, famílias produtoras de alimentos tiveram suas casa depredadas e grandes perdas econômicas devido a notícias falsas que alegavam a contaminação de suas mercadorias.
Outro caso de islamofobia chamou atenção no país. Na cidade de Jamshedpur, no leste, um bebê recém-nascido morreu depois que um hospital se recusou a admitir sua mãe muçulmana. Segundo a imprensa local, a gestante procurou atendimento após sangramentos em casa, mas a ajuda médica foi impedida devido a uma possível disseminação do vírus.
Essenciais, mas miseráveis
Com a crise sanitária, o agravamento de ânimos racistas também trouxe novas privações aos dalits. Eles representam 20% da população indiana e são a casta mais baixa da Índia. Apesar da abolição oficial do sistema de castas em 1950, a hierarquia social de 2 mil anos imposta às pessoas por nascimento ainda existe em muitos aspectos da vida no país. Essa estrutura define a posição que cada hindu ocupa na sociedade, quais trabalhos podem realizar e com quem podem se casar. No caso dos dalits, sua marginalização socioeconômica é condicionada por serem considerados “intocáveis” e “impuros”.
Conforme o Censo de 2011, 82% deles estão abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo com US$ 2 por dia. Muitos são mal remunerados e fazem a limpeza das ruas, aterros e esgotos em rotinas intensas e condições insalubres. Durante a pandemia, seus serviços são apontados como essenciais pelo governo, mas há denúncias de falta de recursos adequados à proteção contra a covid-19. Dalits também dizem que se forem infectadas, não terão acesso à assistência social para escapar da miséria.
Desde o início do confinamento na Índia, em 25 de março, diversas famílias dessa casta são proibidas pela polícia de sair de casa, mesmo para comprar mantimentos ou consultar um médico. Ativistas da Companhia Nacional dos Direitos dos Dalits protestam que esse bloqueio rígido não apenas impede a sobrevivência à pandemia, como também é uma medida higienista que pretende reforçar as desigualdades sociais entre castas, usando a covid-19 e o distanciamento social como justificativas.
“A imposição do bloqueio está prejudicando as comunidades mais vulneráveis como os dalits e migrantes. Se suas necessidades básicas não forem atendidas, sua exposição à doença será maior do que para as outras pessoas que estão de quarentena em casa”, diz a pesquisadora Ngurang.
Nesse cenário de medo e agressividade, ela teme que as perseguições às minorias resultem em feridas profundas na sociedade indiana pós-pandemia: “À medida que o bloqueio for suspenso, haverá um amanhecer de uma nova era sobre nós. As mentiras tomaram as mídias sociais, trazendo desconfianças sobre certas comunidades. Receio que haverá conflitos sem precedentes e nossa sociedade estará mais violenta e fraturada. E os marginalizados serão as maiores vítimas. Eu sinto que o medo chegou para ficar e por muito tempo.”