Números do Mapa da Desigualdade expõem disparidades nos assassinatos de mulheres entre bairros pobres e nobres da cidade de São Paulo
No Brasil, 13 mulheres morrem todos os dias devido à violência doméstica. Na capital paulista, as vítimas de feminicídio são, principalmente, mulheres pobres. Esse fato foi destaque na divulgação, em novembro de 2019, dos dados do Mapa da Desigualdade desse ano, feito anualmente pela Rede Nossa São Paulo.
O feminicídio é o assassinato de mulheres e meninas por questões de gênero, ou seja, em função do menosprezo e discriminação da condição feminina. De acordo com dados do Ministério Público do Estado de São Paulo, 66% desses crimes são cometidos num contexto doméstico, por maridos e namorados das vítimas. Muitas das mulheres assassinadas por seus companheiros já recebiam ameaças ou eram agredidas constantemente por eles. “Há muitas ocorrências de agressões que começam na violência doméstica e variam para as violências verbal, física, psicológica, enfim, é um ciclo que vai se tornando mais grave até terminar em morte”, explicou Maíra Zapater, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da Fundação Getúlio Vargas São Paulo.
A cultura e a hierarquia de gênero presentes em sociedades patriarcais, além da violência estrutural, são fatores determinantes para a existência desses crimes. As motivações mais comuns dos agressores envolvem sentimento de posse sobre as mulheres, controle sobre o corpo delas, limitação da emancipação (profissional, econômica, social ou intelectual) e desprezo e ódio por sua condição de gênero.
O Mapa da Desigualdade de 2019 mostra que o ano de 2018 foi marcado por 54.386 casos de violência contra a mulher e 97 feminicídios na cidade de São Paulo. O estudo aponta que há discrepâncias no número de assassinatos de mulheres entre os bairros nobres e pobres da capital paulista. O pior registro foi encontrado no distrito da Sé, na região central da cidade, com 8,41 casos de assassinato de mulheres em 2018. Depois, na Barra Funda, na Zona Oeste (com 6,11 casos), distritos da Zona Norte como Vila Guilherme, (com 3,54), Casa Verde (com 2,29), Jaçanã (com 2,05) e Perus (com 1,88) e Vila Formosa, na Zona Leste da cidade (1,75 casos).
Poucos bairros privilegiados registraram casos de assassinato de mulheres, como Perdizes (0,28), Morumbi (0,62) e Itaim Bibi (1,33). Em algumas regiões nobres, inclusive, o levantamento identificou a inexistência de ocorrências desse crime, como em Alto de Pinheiros (Zona Oeste), Bela Vista (Centro) e Moema (Zona Sul). Além dessas regiões, bairros de classe média como Vila Sônia (Zona Sul), Tucuruvi (Zona Norte), Vila Leopoldina (Zona Oeste) e Belém (Zona Leste) também demonstraram esse dado. Os menores índices são referentes a distritos como Tremembé (0,15 casos) e Pirituba (0,38), na Zona Norte, Ipiranga (0,29) e Grajaú (0,34), na Zona Sul e Tatuapé (0,34), na Zona Leste.
Os dados do Mapa da Desigualdade de 2019 expõem um cenário no qual mulheres residentes em bairros pobres são as maiores vítimas de feminicídio, em comparação com as moradoras das regiões mais privilegiadas. Segundo uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre 60 e 70% dos casos envolvem mulheres jovens, pobres e pertencentes a minorias étnicas. Portanto, essa violência atinge predominantemente mulheres mais vulneráveis. “As mulheres com mais recursos financeiros dispõem de meios de se defender e fugir do agressor. As mulheres carentes, em alguns locais da cidade, não têm conhecimento de seus direitos, não sabem como funcionam as redes de proteção à vítima de violência doméstica”, aponta Luiza Eluf, advogada criminal e ex-procuradora de Justiça de São Paulo.
Maíra Zapater afirma que diversos levantamentos apresentam as mulheres de baixa renda como as principais vítimas do feminicídio, mas é preciso ressaltar que a maioria delas tem menos resistência para denunciar seus parceiros por agressão do que as mulheres em melhores condições financeiras. Essa diferença, para ela, é uma questão não apenas socioeconômica, mas cultural. “Existem deficiências no funcionamento de políticas públicas de proteção e assistência nas zonas mais carentes. Nesse caso, as moradoras só podem recorrer às delegacias”, explica a pesquisadora. “Por outro lado, um número significativo de mulheres de alta renda vem de famílias nas quais há estigmas e vergonhas de dizer que sofrem violência doméstica. Em diversos casos, em vez de buscar ajuda policial, elas recorrem a um psicólogo, a alguém da família ou a um advogado para se separar do parceiro”, diz Zapater.
Ela aponta, ainda, que muitas vezes mulheres pobres pedem ajuda nas delegacias apenas para intimidar o agressor e não para pôr um fim na violência. “Em muitas situações elas não querem terminar a relação, querem que o marido leve um susto. Que não seja processado, mas ameaçado de prisão. Qualquer solução que mantenha a relação, mas sem continuar sofrendo agressões”.
Muitos episódios de violência doméstica são encobertos pelas próprias mulheres e a subnotificação atrapalha o mapeamento desses crimes. Elas deixam de denunciar por medo e, especialmente, pela descrença na efetividade da ação policial, um fator que, segundo Luiza Eluf, prejudica a luta contra a violência de gênero. “Está ocorrendo um lamentável sucateamento da Polícia Civil, um problema muito grave que aumenta as dificuldades das próprias autoridades em combater a violência doméstica, principalmente entre mulheres pobres”, afirma a advogada.
A desigualdade social nas cidades brasileiras também reflete um abismo entre brancos e negros, não apenas em direitos e oportunidades, mas também em mortalidade. Dados do Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que nos últimos dez anos a taxa de homicídio de mulheres não negras -englobando brancas, amarelas e indígenas- diminuiu 8% e, no mesmo período, a taxa de homicídio de negras -pretas e pardas- aumentou 15%.
Essa assimetria, segundo Zapater, não envolve somente o feminicídio, mas também problemas nas políticas públicas de combate à violência, desigualdade social e ao racismo. “As políticas públicas de segurança chegam menos aos bairros pobres, que são, atualmente, habitados majoritariamente por mulheres negras. É uma questão de racismo estrutural que anda de mãos dadas com a vulnerabilidade de gênero”, pontua a pesquisadora.