Segundo dados, população trans no Brasil é de 3 milhões, sendo apenas 120 mil com carteira assinada; maioria ainda recorre à prostituição
O Brasil conta com mais de 7,4 milhões de pessoas desempregadas, de acordo com a última pesquisa divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em julho deste ano. No contexto da população trans, o tema se torna ainda mais significante. Segundo dados Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil, apenas 4% das pessoas trans possuem um emprego formal. É o resultado das dificuldades enfrentadas por mulheres trans e travestis na busca por uma colocação digna no mercado de trabalho, que perpassam pela falta de apoio familiar, preconceitos estruturais e construção de estereótipos de gênero.
Os desafios surgem tanto antes da entrada no mercado, quanto dentro do ambiente de trabalho. Com o objetivo de centralizar as demandas dessa população, a ativista pelos direitos humanos e cidadania, Samy Fortes, uma mulher transexual e travesti de origem negra e indígena, idealizou, há seis anos, o CAIS Jundiaí, Centro de Apoio e Inclusão Social para travestis, transexuais e pessoas em vulnerabilidade social.
Fortes, que também é presidenta do CAIS, comenta que para inserir a população trans e travesti nas empresas é necessário capacitar e qualificar os corpos trans. Estes que, na maioria das vezes, não possuem estudo, currículo e roupas apropriadas para o ambiente de trabalho. Ela conta casos em que ouviu “eu não tenho nem currículo, até hoje só fui prostituta” e “eu não sei nem o que falar, porque não tive estudo”.
A ativista reforça que todas essas dificuldades trazem uma eterna sensação de perigo e que esses projetos de capacitação e inclusão devem ser fomentados. Ela diz que a visão conservadora de parte da população sobre sua comunidade existe desde sempre, mas por meio de sua resistência deseja mudar essa situação. “’Eles’ combinaram de nos matar, mas nós decidimos não morrer”, afirma.
O Mapeamento Pessoas Trans de São Paulo, feito em julho de 2021 pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), mostra que pouco mais da metade dos entrevistados (51%) completaram o Ensino Médio, e apenas 12% chegaram ao Ensino Superior. A falta de qualificação técnica tem um grande peso no acesso à maioria dos empregos formais. Com o objetivo da inserção desses corpos na educação e a partir das demandas surgidas voltadas à escola, foi criado em janeiro de 2024 o Educa Trans, um cursinho popular exclusivo para pessoas trans e travestis com o apoio da deputada federal Erika Hilton (Psol).
“Muitas delas são de fora do Estado de São Paulo e chegam aqui procurando oportunidade. No entanto, o mercado que realmente absorve essas pessoas é a prostituição”, relata Maurício Bacal, psicólogo do Centro de Cidadania LGBTI.
A maioria das que conseguem seguir outra carreira realiza trabalhos relacionados aos serviços de estética, beleza ou atividades físicas, profissões que não requerem uma escolaridade superior. “Uma mulher [trans] até os 35 anos é prostituta. Aquele homem, pai de família, a procura querendo satisfazer suas fantasias e fetiches sexuais, e após a realização, ele diz que não vai pagar o serviço. Quando ela rebate, ele a mata”, afirma Fortes sobre a vulnerabilidade das mulheres trans que recorrem a prostituição como forma de sustento.
No mundo da prostituição
Maria (pseudônimo), frequentadora do Centro de Cidadania, saiu de casa aos 14 anos. Oriunda da Bahia, seus pais não a aceitavam. Sozinha e sem entender muito bem as mudanças pelas quais passara, resolveu se mudar para São Paulo. “Eu estava fazendo ensino médio sabendo que eles não iam me aceitar, tive que fazer alguma coisa. Não podia viver na casa dos meus pais sendo quem eu não era. Me olhava no espelho e não conseguia me enxergar.”
Ao chegar na capital, se deparou com o mundo da prostituição. “Lá você sabe o que é droga. O que é não ter ninguém. Lá você sabe o que é fazer sexo todos os dias para pagar um aluguel sendo explorada. Eu tinha que pagar 500, 600 reais por semana. E se você não fizer o dinheiro, falam que vão cortar seu cabelo, te matar e contar para seus pais que você faz programa”, relata a jovem de apenas 21 anos.
A prostituição ainda é o principal campo de trabalho para mulheres trans e travestis. A visão discriminatória faz com que as oportunidades de trabalho para pessoas transgênero e travestis sejam ainda menores. O Mapeamento do Cedec feito em 2021 identificou que 46% de travestis e 34% de mulheres trans se declararam profissionais do sexo, acompanhantes ou garotas de programa. Comparados aos números de homens trans (0%) e pessoas não binárias (3%), esses dados reforçam um certo estereótipo.
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“O apoio da família não existe, acaba que as meninas recorrem à prostituição”, comenta Rafaella Villella, cantora e referência na comunidade LGBTQIA+. Antes de sua transição, Villella dava aulas de inglês, mas foi demitida durante o processo. Por conta da falta de amparo familiar, sua alternativa foi começar a se prostituir.
“Eu fazia prostituição no site, atendia em casa, então tinha uma certa segurança disfarçada, mas tinha mais segurança do que a galera que está na rua”. Na visão da cantora, a transfobia está enraizada na sociedade. “O Brasil sempre fez muita piada com a população trans. Isso não acontece somente aqui, mas fora do país também. Acaba que alimenta e contribui para o preconceito estrutural”, completa.