Entre a ficção e a realidade: Trump e Homelander lado a lado - Revista Esquinas

Entre a ficção e a realidade: Trump e Homelander lado a lado

Por Larissa Liggi, Leticia Carmo, Leticia Fonseca, Luiza Moreira e Mariane Ambrosio : setembro 23, 2025

Apesar de existirem em universos distintos, as atitudes de Trump e Homelander se encontram com frequência. Foto: Divulgação Prime Video e Wikimedia Commons/Shealah Craighead

Paralelos entre Trump e Homelander mostram como retórica e espetáculo legitimam atitudes autoritárias e moldam a percepção do público

Antes mesmo de assumir a Casa Branca pela segunda vez, o atual presidente dos Estados Unidos já prometia ações radicais e nacionalistas, manifestando-se contra a população que não se enquadra no padrão norte-americano, com ênfase nos imigrantes. “Vamos tirá-los das nossas universidades, das nossas cidades e tirá-los do nosso país”, declarou Trump em outubro de 2023, após o início da guerra entre Israel e Hamas. Com a vitória e, finalmente, a posse, Donald Trump mostrou-se fiel aos discursos que fez durante a campanha.

Em paralelo às ações e discursos do presidente dos EUA, Eric Kripke, roteirista famoso por séries com temática sobrenatural, transformou um personagem de quadrinhos em uma caricatura quase exata de Trump. Homelander, ou Capitão Pátria — cujo próprio nome indica patriotismo —, apesar de defender o país, é o oposto do Superman: é considerado psicopata e chegou a ser chamado de “o mais detestável da série” nas redes sociais. Suas coincidências com o atual líder do chamado “Mundo Livre” também chamaram a atenção do público, permanecendo especulações até que Eric se pronunciou sobre o assunto.

Alguns anos antes de Trump reassumir o poder, em 2022, Eric Kripke declarou que um comentário do então presidente — sobre poder matar alguém em plena Quinta Avenida, em Nova Iorque, e ainda assim manter apoio — inspirou cenas da série. Em um episódio, Homelander realmente mata um dos seguidores de sua opositora diante de uma multidão e é aplaudido.

Este é apenas um dos vários paralelos entre os dois. Confrontar quem se opõe às suas ideias é uma característica marcante de ambos. Isso fica evidente na decisão mais recente de Trump de impedir que Harvard — a universidade mais antiga e uma das mais importantes do país — continue a prover a certificação do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio. A instituição havia sido a primeira a se opor às reformas no programa de estudantes internacionais. De forma semelhante, Homelander, na série, também se posiciona contra minorias e imigrantes, ainda que de maneira indireta.

Quando a ficção reflete a realidade

A adaptação da Prime Video é, de forma clara e assumida por Kripke, uma crítica ao governo americano, especialmente à extrema direita. Na América fictícia, onde existem pessoas com superpoderes que, a cada episódio, se mostram cada vez mais perigosas e narcisistas, a população comum se divide, como ocorre nos períodos eleitorais dos EUA. De um lado está Homelander, que esconde crimes por trás da imagem de defensor da pátria; do outro, sua opositora Starlight (ou Luz-Estrela), que tenta expô-lo e é acusada por ele de ser “inimiga da pátria”.

The Boys utiliza o cenário de super-heróis e o humor ácido não apenas para divertir, mas também para denunciar e expor críticas sociais importantes. “A série mostra como a ficção pode ser mais realista do que a realidade quando aponta os mecanismos do poder”, afirma Matheus Fiore, crítico de cinema e redator com atuação destacada na cultura contemporânea. Temas como abuso de poder, corrupção e manipulação midiática são centrais na narrativa.

Em diversas entrevistas, Kripke revela que, desde o início, Homelander foi pensado como uma analogia direta ao presidente Donald Trump. Segundo ele, a figura do vilão tornou-se uma maneira dos roteiristas expressarem suas próprias angústias em relação ao governo republicano. Para Fiore, há um efeito colateral preocupante nessa abordagem: “Existe um perigo real quando o público começa a torcer pelo vilão. Isso transforma crítica em espetáculo.” A exaltação da figura do Capitão Pátria, portanto, ultrapassa as telas e reflete como, muitas vezes, a própria realidade se molda a partir das narrativas da cultura pop.

O discurso populista: Homelander e Trump lado a lado

Apesar de existirem em universos distintos, as atitudes de Trump e Homelander se encontram com frequência. Ambos utilizam discursos populistas para defender os valores dos EUA e combater os inimigos que ameaçam seu autoritarismo. O redirecionamento do “inimigo interno” é uma manobra de ambas as personalidades, baseada nos medos da sociedade. Essas ameaças têm como alvo principalmente os opositores, geralmente representados por minorias e imigrantes.

Esse apelo ao povo transforma todas as ações da extrema direita em um grande espetáculo, dando a sensação de sempre serem dignas de aclamação. Luiz Megale, âncora da BandNews FM e jornalista com experiência em cobertura internacional, destaca o impacto direto dos discursos de Trump: “Um apresentador de rádio afirmou a teoria de que há uma rede de pedofilia ligada à oponente de Trump, Hillary Clinton, indicando o local onde essas crianças estariam — uma pizzaria de fachada. Um homem chegou a invadir a pizzaria com um fuzil para ‘libertar crianças’. É inacreditável, mas seus seguidores acreditam nisso.” Em The Boys, Homelander acusa Starlight de pedofilia e de manter crianças presas, o que também leva à invasão de sua base por um seguidor armado.

A retórica da violência nasce da construção de uma narrativa na qual ela se apresenta como a única resposta possível. Para isso, líderes populistas desumanizam seus opositores, tratando-os como ameaças existenciais. Donald Trump reforça essa lógica ao propagar a ideia de que imigrantes seriam responsáveis pelo desemprego nos Estados Unidos, criando um inimigo interno conveniente para justificar políticas de exclusão xenofóbicas. “Essa espetacularização da violência vem acompanhada do processo de desumanização do imigrante. Só depois que você retira do imigrante uma essência humana, torna-se possível ridicularizá-lo, transformar a dor daquela pessoa em uma vitória”, comenta Marcos Sorrilha, doutor em História e especialista em cultura política.

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A questão migratória: da ficção para o real

Deportação, pânico e perseguição marcam o segundo mandato de Trump. Desde a campanha, ele prometia medidas duras contra imigrantes. O fechamento de fronteiras já era esperado, mas ele foi além: em janeiro de 2025, pousou no Brasil o primeiro avião com brasileiros deportados por estarem em situação irregular nos EUA.
Em março, Trump utilizou a Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798 — que permite a deportação de estrangeiros em caso de guerra — para retirar do país centenas de venezuelanos acusados de integrar o grupo criminoso ‘Tren de Aragua’. Essas deportações ocorreram sem aviso prévio e sem direito à defesa, sendo realizadas sem processo judicial adequado, conforme prevê a lei.

“Trump dialoga diretamente com sua base social e política. Sua trajetória está ligada à visão de mundo WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant). A ideia de que os imigrantes roubam empregos atiça essa base para apoiar políticas anti-imigração”, analisa Leandro Consentino, professor de Ciências Políticas do Insper. Segundo ele, essa visão é distorcida:

“Essa ideia é uma meia-verdade. Muitos trabalhos exercidos por imigrantes não são desejados pelos americanos.”

Uma das inúmeras preocupações dos adeptos da direita americana é um futuro sem empregos devido à ocupação do território pelos imigrantes, vistos como inimigos. Cosentino explica por que esse pensamento pode ser considerado precipitado:

“Essa ideia de que os imigrantes roubariam postos de trabalho norte-americanos está muito mais relacionada à base social mais propensa a apoiar políticas anti-imigratórias. Isso é uma meia-verdade; não faz muito sentido quando se considera que muitos desses trabalhos realizados pelos imigrantes não são desejados pelos próprios norte-americanos e eles não se dispõem a executá-los.”

Essa necessidade de reafirmar constantemente seu poder provoca impactos reais e irreversíveis na vida de milhares de pessoas. “Essa política pode gerar a separação de famílias, principalmente quando os filhos são americanos e os pais não, o que pode se tornar um conflito internacional”, alerta Angélica Ribeiro, advogada especializada em direito internacional.

A História se repete? O nacionalismo em diferentes contextos

A devoção à nação é um traço presente na cultura dos Estados Unidos desde o início do país, quando conquistou sua independência ao se rebelar contra os britânicos, e passou a comemorar o 4 de julho com grandes festas e fogos de artifício. Para Donald Trump, a adoração à pátria inclui também o ódio por aqueles que não são considerados “puramente americanos”, sentimento que, em diferentes contextos e momentos da história, já se manifestou em outros países.

“Nos comícios do ano passado, Trump dizia, por exemplo, que os imigrantes estavam contribuindo para contaminar o sangue dos americanos. Trata-se de uma clara alusão racial e étnica… um preconceito biológico explicitamente declarado”, ressalta Sorrilha. Falas xenofóbicas estão presentes de forma recorrente nos discursos do presidente americano, muitas vezes escondidas ou aceitas por seu público como estratégias de proteção ao país.

A criação de um “inimigo interno” é constante na política americana. Lideranças definem alvos frágeis para justificar suas decisões. A comparação entre Trump e Homelander se sustenta ao unir ficção e realidade: ambos são líderes carismáticos, autoritários e autoreferenciais. Quando a política se transforma em espetáculo — e o espetáculo se inspira na política —, o risco é deixarmos de distinguir crítica de reprodução, passando a viver uma distopia que antes parecia confinada às telas.

Apesar de não ser possível prever os movimentos político-econômicos de Donald Trump, a comparação com o personagem Homelander se acentua ao unir ficção e realidade. Ambos personificam lideranças carismáticas e autoreferenciais, indispensáveis para seus seguidores, misturando discursos de salvação com atitudes autoritárias. Quando a retórica política adota tons de espetáculo — e o espetáculo se inspira abertamente na política —, o risco é deixarmos de distinguir o que é crítica e o que é reprodução, passando a viver uma distopia que antes parecia confinada às telas.

O entretenimento, que deveria provocar reflexão, pode tornar-se anestesia — e talvez esse seja o maior alerta que a série tenta nos enviar. O risco maior não é o vilão agir como herói, mas o público começar a vê-lo assim. Afinal, ainda conseguimos distinguir onde termina a crítica e começa a reprodução?

Editado por Enzo Cipriano

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