Desde que se declarou apoio às manifestações do último domingo e se disse antifascista, coordenador da pastoral do Povo de Rua vem recebendo ataques constantes em suas redes sociais
Às 6 horas da manhã, o padre e coordenador da Pastoral do Povo de Rua Júlio Renato Lancelotti, 71 anos, coloca túnica, luvas, viseira e máscara de proteção para começar a lida diária. Às 7 em ponto, ele abre os portões da pequena Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo. Faz o que faz desde antes da pandemia — há 35 anos, para ser mais preciso: auxilia moradores em situação de rua.
Mesmo no grupo de risco, Lancelotti encara a pandemia distribuindo alimento e kits de higiene a até 500 pessoas diariamente. Aos domingos, 10h, segue celebrando missas por meio de lives no Youtube e Facebook. E agora vem recebendo ameaças.
As intimidações tem motivação clara: o “padre rebelde”, como é conhecido, continua exprimindo opiniões fortes em relação à política. Sobre os protestos do fim de semana, se declarou “padre antifascista”. E desde então vem sendo atacado.
“O que mais tenho recebido, a partir das publicações nas redes sociais, são ofensas e insultos. Parece ser de uma usina de robôs. Quando se vai nesses perfis, percebe-se que eles existem só pra isso: ofender. São coisas que chamam a atenção pela insensibilidade e desumanização”, descreve.
As críticas não são novidade. Além da população em situação de rua, o padre já realizou trabalhos com jovens encarcerados, portadores de HIV e a população LGBTQI+. “Toda ameaça que eu sofro é por estar junto e partir da visão da população que está na rua”, afirma. Júlio ainda fala sobre o estereótipo de não poder se posicionar por ser padre. “Falam pra mim ‘ah, mas você é religioso, tem que contemporizar’. Toda mediação nessa sociedade é acalmar os pobres pra manter a elite quieta, no mesmo lugar e do mesmo jeito de sempre”, explica.
Com posições alinhadas à defesa dos direitos humanos, Lancelotti se sente “vigiado” pelos detratores. “Essa turma fascista não precisa de brecha, pra eles qualquer coisa que você manifeste é motivo de ataque. Eles monitoram sua forma de pensar, de agir. E atacam.”
Denunciante constante das à população em situação de rua recebe, o padre afirma que elas seguem em meio à pandemia. “Pela manhã, eles nos trazem queixas de situações ligadas à Polícia Militar. Muitos têm medo de levar isso pra frente com boletim de ocorrência. Se dizem ‘sou lá do grupo do padre Júlio’, acabam recebendo ofensas e xingamentos”, afirma. O trabalho voluntário também foi motivo de confusão. “Houve reclamações dos vizinhos de que estávamos fazendo aglomerações na porta da igreja. Levamos na conversa. Também estamos tomando os cuidados de proteção, distribuindo máscaras e colocando álcool gel. Mesmo assim, chegaram a vir reclamar quatro vezes em um único dia”, relembra.
O padre não nega certo temor em relação às ameaças. “Não podemos deixar que o medo nos paralise. Porém precisamos tomar cuidado”, diz. “Algumas vezes passam carros com uma pessoa que não conseguimos identificar e eles nos insultam, nos xingam. A gente percebe que essas pessoas tem um certo desdém, um desprezo e, de certa forma, até uma raiva pelo trabalho para com os irmãos de rua”, relata.
O sacerdote fala da raiva que é sentida em relação aos sem-teto e lembra da campanha “Cidade Linda” feita em 2017 pelo até então prefeito da capital, João Dória. “O que foi a campanha Cidade Linda? Foi pra expulsar os pobres. Escondê-los. A beleza, para eles, tem uma estética sem ética. Isso gera conflitos. Não existe estética sem ética. Não pode existir se a vida não é respeitada e se os mais fracos tem seu lugar imposto e não construído. Nossa cidade é de muita riqueza e muita pobreza”, afirma. Ele ainda exemplifica com o ocorrido na favela do Moinho, no fim de abril, quando a polícia invadiu o local. “Levaram gente presa e jogaram bomba. Pra pegar um, que eles dizem que querem pegar, jogam bomba em todo mundo, tanto nas crianças quanto nas mulheres. Sempre assim”, completa.
Com a fama de inquieto, Lancelotti defende uma dose de rebeldia e insubordinação na vida. “Se atuar sempre dentro do que é estipulado, você não sai do caminho. O que é estipulado é pra manter esse sistema do jeito que ele é. Então tem que romper. Confrontar, lutar e exigir. Porque senão as coisas não mudam, não vai ser na base do ‘por favor’. Nenhuma mudança na história ocorreu assim. É no conflito, na tensão”, explica. “Nossa realidade é muito conflitiva. Não dá pra ficar dos dois lados, uma hora estar do lado da pedra, outra hora estar do lado da metralhadora. No conflito você tem que estar de um lado. Não tem jeito de você se ver numa sociedade conflitiva fora do conflito, ou só como mediador”, completa.
Não só ajudando com as ações diárias, mas também, orientando a população de rua para com o auxílio emergencial, o padre reclama da burocracia para se ter o benefício. “É uma emergência, mas pra quem? Os moradores em situação de rua não tem onde ficar. As estruturas institucionais querem fazer tudo dentro daquele limite que eles estão acostumados. Tudo que é muito burocrático é muito restritivo”, explica. “Parece que tudo é feito pro povo ficar sem esperança”, completa.
Perguntado sobre como será sua vida quando tudo isso passar, o padre Júlio afirma que não consegue mais pensar no dia seguinte. “Não consigo mais me programar. Não consigo pensar mais do que um ou dois dias pra frente. Estamos tão mergulhados nessa crise que não tô conseguindo pensar no que vai ser domingo”, afirma. “Tô pensando amanhã, se tiver frio, como vamos distribuir agasalhos pros moradores em situação de rua”, justifica.
Em relação às ações diárias, o padre diz não se sentir cansado, mas sim, “desafiado”. “E comprometido. Há muita demanda. Todo dia surge coisa nova”, explica. O padre ainda ressalta a importância de outras figuras religiosas também se posicionarem no momento político atual. “A igreja com seus membros, não só os padres, deve deixar claro que o evangelho é incompatível com o fascismo”, finaliza.