O marco temporal: um projeto parado no tempo - Revista Esquinas

O marco temporal: um projeto parado no tempo

Por Juliany Machado Rodrigues, Luana Miwa Watanabe, Maísa Alves Balsan e Mariana Torezan Silingardi Rigoletto : julho 3, 2023

“O povo Yanomami é um povo tradicional que, de repente, se vê com um monte de invasores, que trazem doenças, cometem estupros e destroem o rio. É muito triste assistir o que está acontecendo com o Brasil”/Foto: Mídia Ninja, Flickr

Como a tese pode ser uma ameaça à constituição, aos povos originários e ao meio ambiente

No dia 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou, com 283 votos, o PL 490/07, que agora está em tramitação no Senado como PL 2903/2023. De acordo com a seção II, presente no capítulo II do texto inicial do projeto de lei, uma das principais alterações propostas é a introdução do marco temporal, questão que já vem sendo discutida desde 2007. “A ausência da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu enquadramento no inciso I do caput deste artigo, salvo o caso de renitente esbulho devidamente comprovado”, diz o 2º parágrafo do documento.

Luisa Cytrynowicz, advogada e assessora jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa, explica que o marco temporal é uma tese que regulamenta o artigo 231 da Constituição Federal, o qual trata dos direitos indígenas, incluindo o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão das terras dos povos originários. “Ele prevê que só teriam direito a verem as suas terras reconhecidas e demarcadas os indígenas que tivessem pisando naquela terra, ocupando-a fisicamente, na data da promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988.”

Essa abordagem tem sido alvo de críticas, argumentando que ela coloca em risco a própria existência e sobrevivência desses povos, além de impactar negativamente na preservação ambiental e na diversidade cultural do Brasil. “Por atentar contra a demarcação das terras indígenas, o marco temporal compromete o pouco que resta de vegetação nativa do nosso país, pois eles têm um papel fundamental na proteção dos diversos biomas espalhados pelo território brasileiro contra toda forma de desmatamento e exploração”, destaca Luisa.

Márcia Kambeba, geógrafa e ativista indígena, reforça que, ao longo da história, os povos originários têm mantido uma relação harmoniosa com o meio ambiente. “Deixar a natureza em pé e viva é um ato de generosidade não só para nós indígenas mas também para todo o mundo, uma vez que já estamos sentindo os efeitos das mudanças climáticas. Portanto, o marco temporal é um problema que afeta a humanidade como um todo.”

Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres, advogado e indigenista especializado da Funai com atuação na Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, explica que o impacto social do projeto de lei está relacionado ao aumento de conflito no campo e à insegurança jurídica, uma vez que, se aprovado, será uma forma de incentivo a mais invasões, violações dos direitos indígenas e desmatamento de suas terras. “A expansão da fronteira agrícola e agro pastoril tem muito interesse nas terras indígenas, que são territórios ainda bem preservados, de muito interesse das madeireiras, por exemplo. O estabelecimento de um marco temporal é uma forma de abrir esses territórios para esses interesses econômicos”, reforça o entrevistado.

Segundo os dados apresentados pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), atualmente, existem 761 terras indígenas registradas, o que corresponde a aproximadamente 13,75% de todo o território brasileiro. Ainda que estejam localizadas em todos os biomas, a Amazônia Legal é a região que abriga a maioria delas. Dentre o número total, 137 estão em estudo, 73 são declaradas, 8 homologadas, 475 regularizadas e 44 delimitadas.

O CASO DA RAPOSA-SERRA DO SOL

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima, por exemplo, é uma das que já se tornou declaradamente posse dos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingaricó e Wapichana. A discussão pela identificação e demarcação da terra iniciou em 1992 e foi intermediada pela Funai. Entretanto, na época, a limitação foi impedida devido à presença de agricultores, vindos do sul do país, que alegavam ter títulos que lhes concedia a posse da área.

Já em 15 de abril de 2005,  após uma série de campanhas lideradas por ONGs espalhadas pelo Brasil, incluindo o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e o movimento Survival, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a homologação da terra indígena. Apesar da conquista, não demorou muito para que o assunto voltasse a ser debatido.

Logo depois da decisão histórica, surgiram esforços em oposição à demarcação da Raposa Serra do Sol. Um deles foi a Petição 3388, que reivindicava a anulação da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, contestando a delimitação do território indígena já reconhecido.

“De pronto, esclareço que o processo contém 51 (cinqüenta e um) volumes, sendo que a inicial impugna o modelo contínuo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada no Estado de Roraima. Daí o pedido de suspensão liminar dos efeitos da Portaria nº 534/2005, do Ministro de Estado da Justiça, bem como do Decreto homologatório de 15.04.2005, este do Presidente da República. No mérito, o que se pede é a declaração de nulidade da mesma portaria”, pedia o documento, que teve seu julgamento encerrado pelo Supremo Tribunal Federal apenas em 2009.

Já mais recentemente, o ex-presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou que pretendia rever a decisão acerca da Raposa-Serra do Sol durante o seu mandato, que chegou ao fim no início deste ano. “É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional. E no lado do índio, dando royalty e integrando o índio à sociedade”, declarou o político em 2018, nove anos após a conclusão do julgamento.

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MANIFESTAÇÕES

A iminência da aprovação do PL do Marco Temporal na Câmara dos Deputados desencadeou protestos de povos indígenas pelo Brasil no dia 30 de maio, data em que aconteceu a votação. Em São Paulo, os manifestantes bloquearam um trecho da Rodovia dos Bandeirantes, mas foram violentamente reprimidos por policiais da Tropa de Choque e da Polícia Militar, que liberaram a via com a utilização de jatos de água, bombas de gás e balas de borracha.

“Os protestos que os povos indígenas realizaram no último dia 30 de maio e em diversas outras datas, chamados pelas organizações indígenas para a mobilização em torno dos direitos indígenas, colocam no debate público, em âmbito nacional, a importância de que a sociedade como um todo olhe para essa questão e pressione pela garantia dos direitos indígenas, então esses protestos são centrais para colocar isso em pauta”, é o que afirma Luisa Cytrynowicz.

Já para Rodrigo Ayres,

“Esses protestos são importantes para que os indígenas tenham mais participação e voz ativa nos processos que dizem respeito aos seus direitos. Eles são sujeitos de direito que devem falar por si mesmos. Então, é importante que eles mesmos encabecem, estejam à frente dessas discussões e decisões que dizem respeito ao futuro deles. Eles têm participado ativamente, temos muitos advogados indígenas, que atuam até mesmo no Supremo Tribunal Federal. Eles têm tido uma participação muito forte nessas articulações.”

Outra manifestação aconteceu no dia 4 de junho, já após a aprovação do 490/07, o ato foi denominado de “Caminhada Pela Vida”, e consistiu em uma caminhada iniciada na Vila Clarice, zona norte da capital paulista, até o Pico do Jaraguá, onde se localiza uma das reservas indígenas de São Paulo.

O ato inicialmente seria na Bandeirantes, retomando o protesto interrompido no dia 30 de maio, mas foi proibido pela a Justiça paulista, sob ameaça de multa de 20 mil reais. Mesmo sendo uma manifestação pacífica, o percurso foi acompanhado pela Polícia Militar.
A votação do projeto de lei aconteceu sob regime de urgência, que dispensa algumas das formalidades, com o objetivo de acelerar a tramitação e passar na frente de outras propostas.

Contudo, quando isso acontece, os prazos para análises, discussões e apresentação de emendas são reduzidos, o que impacta diretamente no texto que será aprovado, uma vez que não há tempo para as devidas considerações e alterações por parte de outros membros do Congresso.

No dia 26 de maio o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, após ser notificado a respeito da aprovação do regime de urgência, se posicionou demonstrando preocupação, tanto em relação ao PL, quanto na antecipação da votação. Em nota afirmaram que “O Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que exige que quaisquer medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente os povos indígenas devem ser precedidas pela sua oitiva, mediante procedimentos apropriados, especialmente por meio de suas instituições representativas. Trata-se, portanto, de imposição supralegal incompatível com a tramitação em regime de urgência.”

UM REFLEXO DO BRASIL

Na visão de Márcia Kambeba, o marco temporal foi criado para retirar os direitos dos povos indígenas e pode afetar a permanência em seus territórios, dificultando suas relações e vivências em comunidade. A ativista ainda destaca falas pejorativas usadas para defender teses contrárias à demarcação de terras.

“Quem não ouviu frases como “Para que índio precisa de muita terra”? ou “Índio é tudo preguiçoso”. Pois bem, o fato de não desmatar e transformar tudo em pasto ou em lavoura, agricultura, não significa que somos preguiçosos, tiramos o que se precisa para viver em comunhão com a natureza numa relação de respeito.”

Ayres também analisa a situação e afirma ser um reflexo do autoritarismo presente na sociedade brasileira “por ignorar o direito originário dos povos indígenas ao território”, algo previsto no artigo 231 da Constituição. Para além disso, a aprovação do PL 490/07 ameaça a vida e o futuro desses povos, que existem em uma profunda relação com as terras, segundo Luisa Cytrynowicz.

A advogada ressalta que o marco temporal também desconsidera o histórico de violência que levou à expulsão de indígenas de suas terras.

“Quando se estabelece um marco de tempo fictício, se ignora que essa relação de tradicionalidade possa ter sido atravessada por diversos eventos, que, por vezes, implicaram na expulsão desses povos de suas terras e muitos deles estavam relacionados a violência e brutalidade. Então, a tese do marco temporal, no fundo, reforça essa situação de violação e de expulsões, reconhecendo direitos de particulares sobre territórios dos quais esses povos foram expulsos.”

Apesar de o projeto de lei afetar mais diretamente os povos originários, Kambeba alerta que suas consequências irão impactar a sociedade como um todo.

“Teremos profundos impactos que vão reverberar em muitas camadas da sociedade, inclusive nas camadas onde estão aqueles que não tem condição financeira de todo dia por comida na mesa. Mas a classe alta sentirá também as consequências de seus crimes, porque o marco temporal é um projeto da morte, criminoso em várias camadas.”

Editado por Ronaldo Saez

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