O que acontece na Venezuela? - Revista Esquinas

O que acontece na Venezuela?

Por Beatriz Cristina, Beatriz Gil e Isabela Barreiros : junho 18, 2019

Entenda os motivos que levaram um dos países mais ricos em petróleo ao caos econômico, político e social

A crise que a Venezuela está passando atualmente é uma das mais emblemáticas no cenário internacional. Desde o final do governo populista de Hugo Chávez, que governou de 1999 a 2013, a população sofre com falta de produtos de primeira necessidade e com a violência que assola o país.

Arte de Henrique Artuni

As origens da crise

Para entender a crise na nação vizinha é preciso investigar os fatos históricos que levaram à eleição de Hugo Chávez. No ano de 1989, o país afundava em grandes casos de corrupção política. O presidente da época, Carlos Andrés Pérez adotou medidas neoliberais que não foram bem-sucedidas, mudando radicalmente as ações tomadas do seu mandato anterior. O doutor em ciência política, Pedro Cícero fala em seu artigo Transformar o gigante num pigmeu: as desventuras do projeto neoliberal na Venezuela (1989-1998) as consequências das medidas de Pérez. “As circunstâncias que levaram ao fracasso dos programas de ajuste econômico implementados influenciaram decisivamente na fulminante e vitoriosa ascensão do projeto político bolivariano [de Chávez] durante as eleições nacionais ocorridas no final de 1998”, diz Cícero.

Medidas adotadas pelo presidente Pérez como o plano de austeridade, que consistia principalmente no aumento do preço dos combustíveis, das passagens de ônibus e dos alimentos, revoltaram a população venezuelana que em resposta saiu às ruas em grandes manifestações. Estas conhecidas como Caracazo foram violentas e sangrentas. Segundo a reportagem do Nexo As origens da crise na Venezuela, o governo reagiu e deixou entre 300 e 3000 mortos – o número de dados ainda é impreciso pois muitas pessoas foram enterradas em valas comuns.

O Caracazo foi um marco na sociedade venezuelana. Ele dividiu os civis e as forças armadas, gerando uma profunda polarização no país. Alguns militares com viés de esquerda se revoltaram com a repressão descabida e, com o apoio popular, decidiram voltar-se contra o governo. Em fevereiro e novembro de 1992, aconteceram tentativas de golpe contra Pérez que fracassaram. No entanto, o movimento dos militares foi importante para lançar o nome de Chávez, Tenente Coronel do exército venezuelano, no cenário político nacional.

Em 1993, após o impeachment do presidente Pérez, eleições foram vencidas por Rafael Caldera, que governou do ano de 1994 a 1999. Em 1998, o militar Chávez concorreu a sua primeira disputa eleitoral, vencendo com 56% dos votos. Assim que assumiu, fez reformas que havia prometido à população venezuelana: abriu um referendo nacional para propor uma nova constituição, posteriormente aprovada por 72% da nação, e criou uma Assembleia Nacional Única, destituindo a estrutura de Câmara e Senado.

A eleição de Chávez deu início a Revolução Bolivariana, uma guinada social, política e econômica ao “novo socialismo”. Segundo a tese de doutorado de Raphael Seabra da Universidade de Brasília (UNB), A primeira revolução do século XXI? Bolivarianismo e socialismo na Venezuela, o processo revolucionário tem uma especificidade que consiste na “conquista gradual e pacífica do poder político, sem postular a ruptura imediata com a ordem capitalista”. Segundo Seabra, o projeto bolivariano teve o intuito de criar um sistema múltiplo de propriedade estatal, social e privada para superar as bases da dominação imperialista que monopolizavam o mercado na época.

A indústria petroleira também estava na mão de um pequeno setor da classe dominante, as empresas multinacionais. “Foi a primeira vez as classes populares passaram a ter acesso a maior riqueza do país, que é a renda petroleira”, conta o historiador Jones Manoel. A política de Chávez envolveu principalmente reformas de Estado e um aumento na intervenção do governo na economia, sobretudo na questão do petróleo, maior produto exportado pela Venezuela e uma das maiores reservas do mundo.

Os problemas que se alastram até hoje surgiram fortemente em 2014, já no governo de Nicolás Maduro. Em consequência da crise econômica mundial, que teve início nos EUA em 2008, o preço do petróleo sofreu uma queda brusca.

Como a Venezuela era dependente dessa mercadoria, quando o preço internacional caiu de R$ 138,54, valor estimado em 2008, para R$ 80, apenas seis anos depois, foi um baque para a economia nacional. E a produção também diminuiu. Em 1999, eram mais de 3 milhões de barris por dia, hoje não passam de 1,5 milhões o que, segundo a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), é o pior nível de produção em 33 anos.

A escassez de produtos básicos surgiu logo após a o preço do petróleo desabar. Os governos chavistas (Chávez e Maduro) não investiram em outras áreas importantes para o país, focando apenas na indústria petrolífera. Agricultura, infraestrutura e indústria não receberam a atenção devida, e sem ter dinheiro para importar produtos e serviços, a população e o governo hoje sofrem com a crise de abastecimento.

A tentativa de superar a crise e a hiperinflação também foi falha – ao imprimir mais dinheiro para completar o rombo nas contas públicas a inflação aumentou drasticamente. As pessoas tinham que carregar pilhas de bolívares, cédula venezuelana, para fazer compras. O governo também adotou uma medida de controle artificial para tentar controlar a inflação: obrigou os comerciantes a baixarem os preços, colocando estes em um custo que estava abaixo do preço de produção real, para que o governo pudesse fazer importações. Essa estratégia colaborou também para a falência das indústrias e dos comerciantes.

A população venezuelana sofre com as consequências dessa crise no seu cotidiano de forma extrema. A queda da economia nacional levou a um aumento considerável no nível de pobreza no país. Em 2017, segundo dados da pesquisa da Universidade Católica Andrés Bello, 87% dos venezuelanos estavam na linha da pobreza, contando com um acréscimo de 40 pontos percentuais em apenas três anos.

Nos olhos de quem vive a crise

Memórias e impressões de quem viveu ou ainda vive na Venezuela

Ayleth Díaz, professora de Inglês, 30 anos

Neste país não importa o que você faz e sim quem você é. Se você é um delinquente, mas tem conhecidos no alto comando militar, não importa o que você fez, porque seu delito ficará impune.

Nas marchas, as maiores violências são contra os mais jovens. O filho de um amigo meu foi detido em uma marcha só por protestar, com a acusação e que ele portava bombas molotov, cocaína e fazia terrorismo. É um menino de 14 anos, passou 9 dias detido, cortaram seu cabelo e batiam nele todos os dias. Seu companheiro de cela era outro menino de 14 anos, portador de leucemia, e o tratavam da mesma forma. Se você não conhece alguém dentro das Forças Armadas da Venezuela, ou você paga muito dinheiro ao governo, ou seu parente é condenado a vários anos de prisão.

Aqui não importa se você é de direita ou de esquerda, porque tudo se resume a dinheiro. Os poucos chavistas ou maduristas que sobraram são “apadrinhados” do governo. Então, enquanto você tem dinheiro, nada te incomoda. Os militares neste país são uma das piores pragas que já aconteceram na Venezuela.

Daniel Quevedo, engenheiro, 29 anos

Vivi na Venezuela por quase 25 anos, até sair para morar no Equador a trabalho. O mais difícil da crise era encontrar alimentos e, quando isso acontecia, os preços eram muito altos, chegando a custar 5 ou até 10 vezes mais que o normal. Quando Chávez chegou ao governo, era visto como um salvador, alguém que poderia solucionar todos os problemas da Venezuela. Mas Maduro apareceu como uma imposição – Chávez ficou doente e dizia a população que se algo acontecesse com ele deveriam votar em Maduro.

Acredito que a crise vem piorando desde a morte de Chávez. Mesmo que o governo seja ruim, a oposição é ainda pior. Não existe uma personalidade que consiga uni-la e também não há plano de governo tanto de um lado quanto do outro: todos querem sentar no trono. E a crise continua. Em tempos difíceis, necessitamos de ações difíceis que não são tomadas pelo governo que teme ir contra o que dizia ou fazia Chávez. Mesmo assim, acredito que uma intervenção militar estadunidense não seria uma opção viável, já que em nenhum lugar que os Estados Unidos colocaram suas mãos os problemas foram resolvidos, pelo contrário, isso apenas aumentou a crise que já existia.

Paula Ramón, jornalista, 38 anos

Eu saí da Venezuela em 2010, um ano após a escassez de produtos começar a ser percebida pela população. Um dia faltava um produto, no dia seguinte faltava outro e os preços eram sempre muito elevados por conta da desvalorização da moeda no mercado, consequência das políticas econômicas do governo. Nesta época, o país já era afetado pela crise, mas não como hoje, a situação parecia contornável.

Quando você está dentro do país não tem como analisar a crise criticamente, você simplesmente continua vivendo e se adapta aos ocorridos. Passar cinco dias sem eletricidade pode parecer incabível para algumas pessoas, mas se tornou algo comum na Venezuela. É normal ir ao mercado e não ter comida, não ter remédio…

O governo Chávez teve uma popularidade muito grande. Ele era carismático, sabia falar exatamente o que o povo queria ouvir. Infelizmente, sua morte coincidiu com a crise do petróleo e sobrou para Maduro, que já não tinha a popularidade do ex-presidente, lidar com essa parte. Hoje eu acho que é um pouco óbvio que a maioria não apoia Maduro.

Do meu ponto de vista a crise não pode ser politizada: não pode ser esquerda contra direita. Hoje se trata muito mais do povo unido para acabar com o sofrimento, porque a população está sofrendo e as famílias se separando, tem pessoas morrendo e a situação tende a piorar ainda mais.

Alberto Alexandre Diaz, físico, 32 anos

Vivi na Venezuela minha vida inteira, até hoje. A crise começou a ser percebida em 2013 e afeta na vida de todos os níveis da sociedade atualmente. Apesar de ser sentida, ela deve ser vivida e enfrentada – na minha opinião, tendemos a negar a realidade e também a reprimi-la para evitar situações de estresse e ansiedade. O maior problema que enfrento no meu dia a dia é a falta de comida, o que resulta em apenas uma refeição diária que nunca poderia fazer parte de uma alimentação saudável e balanceada.

Não penso em presidentes como famosos ou celebridades. Pouco me importa a personalidade de Chávez ou Maduro. Para mim, um governante precisa ter inteligência e o compromisso de transformar a sociedade em uma que seja melhor, cada vez mais humana, culta e produtiva. A descrença no governo é algo que cresce na população exatamente porque isso não é a realidade do país.

Infelizmente, acredito que a situação esteja longe de melhorar, e com os frequentes apagões nacionais, parece que a crise está piorando progressivamente. Ela deve ser manejada de forma meticulosa, estamos no meio do furacão de um grande conflito geopolítico. Mas a possibilidade de uma intervenção estadunidense na Venezuela é uma alternativa viável para a solução dessa conjuntura.

Expectativas

O futuro venezuelano ainda é incerto. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a inflação no país chegará a 10.000.000% no fim de 2019. Neste mesmo ano, em janeiro, uma nova crise se instaurou: Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, se autoproclamou Presidente da Venezuela, com Maduro ainda sem completar seu mandato. Carregadas de violência e repressão, manifestações contra e a favor desse novo governo foram às ruas. No dia 30 de abril, em ato em apoio a Guaridó em Caracas, tanques atropelaram manifestantes.

Existe muita divergência entre a população Venezuela em relação à autoproclamação de Juan Guaidó, e os especialistas também divergem. O historiador Jones Manoel afirma que como Maduro foi eleito presidente ele precisa terminar seu governo. “A soberania do povo venezuelano não pode ser violada: a maioria das pessoas escolheu Maduro como seu representante e ele tem que terminar o mandato” aponta. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, as eleições ocorreram normalmente. Conforme reportagem do portal Opera Mundi, mais de 200 observadores internacionais foram convidados para acompanhar o processo eleitoral no país, entre eles o ex-presidente da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero.

No entanto, ainda existem questionamentos em relação à integridade das últimas eleições venezuelanas. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Maurício Santoro, o primeiro passo para resolver a crise política é ter Maduro fora do poder. “As eleições foram muito questionadas internacionalmente sob acusações de fraude e repressão a oposição. Se a gente novas eleições e forem vencidas pela oposição, criaria um governo com legitimidade internacional e com apoio de países importantes para a Venezuela”, explica Santoro.

Em meio a tanta instabilidade política, é difícil ter uma previsão de quando e como a crise irá terminar. “É a falência institucional, as instituições também faliram” afirma o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Feliú Ribeiro.

De acordo com Ribeiro, um dos sinais da persistência da crise é o apoio do governo de Maduro por parte dos exércitos. “Talvez o melhor indicador para a questão política seja o apoio das forças armadas, que garante certa estabilidade [ao governo Maduro] e ainda não apresentou mudanças significativas” explica Ribeiro. Santoro completa: “nesse momento, Maduro ainda tem três cartas importantes na manga, uma delas é o apoio da cúpula militar e as duas outras são o apoio da China e da Rússia”.

“A Venezuela faz parte de um tabuleiro geopolítico maior” aponta Santoro. A posição de países relevantes internacionalmente como China, Rússia e Estados Unidos em relação à crise interfere de forma determinante nessa dinâmica mundial. Segundo Manoel, existe hoje uma disputa acirrada da hegemonia mundial entre Estados Unidos e China. “No ponto de vista econômico, falta para a China conseguir derrubar o dólar como principal moeda de transação internacional e para isso, é necessário que o comércio de petróleo e derivados deixe de ser feito em dólares”, aponta. Essa pretensão chinesa explicaria sua importante relação com a Venezuela, grande país exportador de petróleo.

O consenso entre os especialistas é de que seria inviável uma interferência militar estadunidense no país latino-americano. “A opinião pública dos EUA está pouco propensa a apoiar uma invasão militar direta, como aconteceu no Iraque e no Afeganistão. O próprio Donald Trump está com a popularidade em baixa” comenta Manoel. Ribeiro opina que, caso houvesse a possibilidade de militarização do conflito, é provável que os Estados Unidos fariam “um grupo de linha liderado por Colômbia e Brasil, o que seria terceirizar a movimentação militar”.

Manoel acrescenta, ainda, outros fatores que também colaboraram para a crise política na Venezuela: a morte de Hugo Chávez, grande líder da Revolução Bolivariana, e a mudança de ventos políticos na América Latina com o chamado ciclo progressista, em que os governos de esquerda vão caindo um a um – no Brasil, Chile e Argentina, por exemplo, foram importantes aspectos que também atuaram para a situação vigente no país.

Por enquanto, o cenário está em aberto. A crise que aflige a população venezuelana ainda não tem prazo para chegar ao seu fim e conta com diversos fatores complexos para sua resolução. “No momento em que os chefes do Estado maior [das Forças Armadas nacionais] começarem a questionar o governo aí a mudança política irá ocorrer, e os aspectos político e econômico estarão condicionando a mudança social”, comenta Ribeiro. “Mas certamente com tamanha perda econômica e social, a Venezuela vai precisar de uns 10 anos para se recuperar”, conclui Ribeiro.