“Em 40 dias, a covid-19 conseguiu mudar a telemedicina no Brasil de uma maneira que o Conselho Federal de Medicina não fez em 18 anos”, pontua professor de medicina da USP
‘Novo normal’ é o termo utilizado por Leonardo Trevisan, professor titular da PUC-SP no Departamento de Economia, para descrever a situação do mercado de trabalho frente à crise desencadeada pela pandemia. Indicando que o trabalho remoto não será uma condição efêmera no pós-pandemia, o professor constata que “há uma realidade absolutamente visível de que diferentes formas de trabalho conheceram e apreenderam formatos novos”.
Trevisan, que também é coordenador do Grupo de Pesquisa Gestão de Carreiras e Transformação no Trabalho da PUC-SP, ressalta que, especialmente na área da medicina, haverá um impacto maior devido à mudança legal estabelecida no Brasil. No dia 19 de março, o Conselho Federal de Medicina (CFM) encaminhou um ofício ao então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reconhecendo “a possibilidade e a eticidade do uso da Telemedicina no país”. Dias depois, a prática foi regulamentada pelo Ministério. Em 16 de abril, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que autoriza o exercício da telemedicina em caráter excepcional pelo tempo que durar a crise no Brasil.
O que é a telemedicina?
A resolução publicada em 2002, pelo Conselho Federal de Medicina, define que a Telemedicina é o exercício da Medicina feito “através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde”. Na prática, a relação médico-paciente é feita à distância, de forma que laudos, diagnósticos e exames são viabilizados digitalmente.
Chao Lung Wen, médico, professor e chefe da disciplina de Telemedicina na Faculdade de Medicina da USP, conta que, “do ponto de vista da responsabilidade médica, a prática é idêntica. Porém, a técnica e o uso de um sistema remoto baseado em vídeo são o diferencial”. Durante a teleconsulta, utiliza-se uma câmera para fazer a “entrevista estruturada” — um conjunto de perguntas feitas para tentar desenhar uma situação. Em seguida, o médico formula uma hipótese e tenta confirmá-la pelo exame físico, usando a imagem para observar o paciente com auxílio da verificação de temperatura e de pressão arterial. Após o exame, “cabe ao médico decidir se as informações são suficientemente seguras para tomar uma decisão. Se não forem, ele deve chamar o paciente para complementar a avaliação física presencialmente” afirma Lung Wen. Ele explica também que o exame remoto é suficiente em 60% dos casos.
O objetivo desse método é reduzir deslocamentos e aglomerações, permitindo diagnósticos à distância e evitando a exposição de pacientes a locais públicos e pessoas doentes. Já existem empresas especializadas em agendamento online de consultas presenciais e remotas, como a BoaConsulta. O cofundador e CEO Adriano Fontana diz que, comparando com o sistema da medicina convencional, “a telemedicina reduz custos, encurta distâncias, agiliza os diagnósticos e amplia o acesso da população ao atendimento especializado”.
Como está no Brasil?
A telemedicina no Brasil é realizada com base na resolução vigente, elaborada em 2002. Para Chao Lung Wen, uma resolução tão antiga pode gerar incertezas por ser vaga e não definir muitas coisas. “Ela não consegue dizer qual é o critério de segurança, por exemplo. Em 2002, nem se sabia muito bem sobre essa facilidade que temos hoje das videochamadas”, explica. Além disso, ele aponta que isso impede o exercício ético e seguro da telemedicina, já que “não orienta de forma efetiva, fazendo com que cada profissional interprete do seu jeito”.
Em 2018, médicos do Conselho Federal de Medicina formularam uma nova resolução que chegou a ser publicada no Diário Oficial e definia novos parâmetros para a atividade. Contudo, após protestos de médicos e entidades, a decisão foi revogada e as regras anteriores voltaram a valer. Agora, por conta da pandemia do coronavírus, a telemedicina está sendo utilizada de forma ampla.
Segundo o professor Lung Wen, “em 40 dias, a covid-19 conseguiu mudar a telemedicina no Brasil de uma maneira que o Conselho Federal de Medicina não fez em 18 anos”. Para ele, a estagnação em relação à prática no país se deu por conta da incompreensão do tema e pela falta de formação na área. “Não ensinamos telemedicina como matéria obrigatória da formação médica e na formação ética, isso gerou medo”. Diante disso, o professor tem procurado, junto a outras instituições, disponibilizar cursos de formação rápida que abarcam a ética, a responsabilidade e a segurança digitais e a escolha de softwares adequados.
Telemedicina é coisa do futuro?
Após o fim da pandemia, a situação brasileira deverá ser regulamentada por uma nova lei. Na análise do professor Trevisan, o cenário atual indica que o atendimento empresarial via telemedicina é o que parece estar mais próximo da nossa realidade. “Na prática, os primeiros que vão adotar esse processo serão os planos de saúde das empresas. É por esse caminho que vai crescer o teleatendimento. Isto também chegará nos planos individuais, mas em escala menor”, ele aposta.
Ainda que com menos frequência, o serviço a nível individual também já está sendo realizado. Adriano Fontana relata que, apesar do BoaConsulta ter planos de incluir o agendamento online de consultas remotas desde 2018, foi apenas em 2020 que a ideia de trabalhar com a telemedicina se concretizou.
Até o momento, a recepção dos pacientes quanto a esse atendimento foi bastante positiva e, segundo Fontana, os estados que mais acessaram essa modalidade pelo BoaConsulta foram São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Maranhão e Pará. Diante disso, ele complementa que “a telemedicina veio para ficar”.
A mesma ideia é endossada por Chao Lung Wen, que diz ser inevitável a telemedicina ganhar um maior espaço no Brasil pós-pandemia. Além de o país estar atrasado nesse aspecto em relação ao resto do mundo, “ninguém vai voltar à situação anterior”. O médico acredita que a telemedicina será mais incentivada quanto a uma atuação mais forte do Conselho Federal de Medicina, uma vez que, nas palavras dele, “estamos descobrindo vivencialmente uma forma responsável de ampliar os cuidados”.