Na linha de frente contra o HIV - Revista Esquinas

Na linha de frente contra o HIV

Por Ana Ferrari : abril 19, 2019

Foto: Anna Ferrari

Evento anual na Faculdade de Medicina da USP promove maior conhecimento sobre um assunto ainda tão atual: a infecção pelo vírus da Imunodeficiência Humana

Idealizado por Esper Kallás, professor da disciplina de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e pelo pesquisador David Watkins, da Universidade de Miami, o Curso Avançado de Patogênese do HIV recebe pesquisadores de todo o mundo para apresentar as últimas descobertas sobre o assunto. O objetivo é sensibilizar e direcionar o atendimento de pacientes, além de maior conhecimento sobre a complexidade da infecção.

Neste ano, o evento aconteceu entre os dias 10 e 17 de abril na FMUSP. Ocorreram palestras explicativas, oficinas, rodas de conversa e apresentações lúdicas sobre o tema. ESQUINAS faz a cobertura do curso.

10/04: OFICINAS BASE DA PATOGÊNESE DO HIV

Era uma espécie de “esquenta” para o desenvolvimento do curso. A primeira oficina da manhã foi dada por Kallás, que deu um panorama geral do funcionamento do sistema imunológico humano. O médico foi seguido de seguido por mais duas palestras sobre seus métodos de avalição nos aspectos celulares (pela biomédica Andrea Niquirilo) e moleculares (por Juliana Zanatta, doutoranda da FMUSP). Em seguida, Rico Vasconcelos – infectologista do Serviço de Extensão aos Pacientes (Seap) que trabalha diretamente com pacientes portadores do vírus e com a população vulnerável – traçou um histórico do HIV.

O pesquisador Lúcio Gama, do Vaccine Research Center (VRC), iniciou os trabalhos na parte da tarde abordando o ciclo de replicação do vírus. Explicou de maneira didática o processo de infecção e transcrição do vírus. Ele ainda questionou a possibilidade da criação de uma vacina que bloqueasse a incorporação do vírus aos receptores da célula – por conseguinte, evitando sua infecção – e mencionou a grande incidência de pessoas imunes ao HIV em países no norte da Europa por suas populações possuírem uma mutação genética desfavorável ao vírus.

Dr. Luiz Zanella em sua palestra (Foto: Anna Ferrari)

O médico Luiz Zanella preferiu uma pegada humanizada a uma técnica. Falou do tratamento de HIV e a resistência do público alvo em aderir a ele ou continuá-lo. Para ele, a adesão é maior quando há uma avaliação geral da rotina e vida do enfermo, adaptando cada tratamento para cada paciente. “Saber ouvir o paciente é essencial, pois o seu relato é muito importante”, ressalta. Douglas Nixon, da Universidade George Washington, fechou o dia e apresentou uma oficina sobre como apresentar um pôster e escrever um manuscrito a partir de um foco mais acadêmico.

11/04: ABERTURA DO CURSO

O anfitrião do curso, Kallás, deu a primeira fala do dia acompanhado de Dráuzio Varella. Este é conhecido por popularizar a informação médica no Brasil em programas de rádio, TV e internet (como seu site e canal no YouTube), além dos livros que escreve. Varella é um convidado que tem presença marcada em várias edições do curso e conta que teve as primeiras experiências com a epidemia de HIV durante seu trabalho com pacientes soropositivos na Penitenciária do Carandiru. Logo após, ocorreu a palestra sobre genética e imunologia da infecção pelo vírus com a infectologista Camila Donini – ligada ao projeto da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) – e Douglas Nixon. A palestra seguinte, com Ken Rock da Universidade de Massachusetts, comprovou o cunho técnico do dia, trazendo conteúdos maciços de pesquisas e teorias acadêmicas.

Numa rápida conversa com Donini e Rico Vasconcelos, foi enfatizado o fato de, apesar da complexidade técnica de algumas aulas, o curso era aberto ao público em geral. “Incluímos eventos lúdicos, como teatros e rodas, para atingir exatamente o público em situação de fragilidade”, diz a médica. Gerson Pereira, do Departamento de IST, AIDS e Hepatites Virais (DIAHV), deu sequência ao trazer dados sobre uma melhor aplicação de políticas públicas para prevenção e tratamento dessas infecções. Segundo os últimos registros, a população mais atingida é composta por homens (principalmente jovens) que fazem sexo com outros homens, travestis e transexuais (31% dos atingidos). A região mais afetada do país é a Sul. Uma medida tomada a partir desses dados foi a maior distribuição de preservativos masculinos no carnaval e direcionamento de projetos do PrEP para esta parcela da população. A meta do departamento para 2020 é diminuir 38% das infecções por aids por meio dos projetos “Viva melhor sabendo” e PrEP.

Gerson Pereira explanando sobre a situação do HIV (Foto: Anna Ferrari)

No final do dia, aconteceram palestras com Daniel Kuritzkies, da Universidade de Harvard, que abordou a duração do vírus no sangue e casos de tratamento precoce em bebês; Boris Peterlin, da Universidade da Califórnia, que explicou questões como a latência, reativação e silenciamento do vírus; e Thomas Hope, também da Califórnia, que apresentou a escala de transmissão, formação e prevenção do vírus.

12/03: HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO

O terceiro dia se iniciou com Susana Valente, da Vaccine and Gene Therapy, falando sobre o silenciamento da reserva de HIV, e Barney Graham, da Vaccine Reserch (NIH), sobre o desenvolvimento de vacinas para doenças infecciosas emergentes. Alguns pôsteres foram apresentados como um resumo ilustrativo dos próximos projetos de pesquisa a serem apresentados e realizados, muitas vezes por jovens pesquisadores que começam a trilhar suas vidas na academia.

Timothy Ray Brown era a celebridade do dia. Considerado o primeiro paciente dito curado do HIV, participou de uma mesa redonda ao lado de Nixon e Vanderson Rocha, do Hospital Sírio-Libanês. Brown contou um pouco de sua história, dos preconceitos sofridos por ser um homem gay em Barcelona, na Espanha – onde mantinha relações secretas com um amigo – e a ida para Berlim, na Alemanha, onde se infectou e passou a tratar o vírus.

Timothy Brown, Douglas Nixon e Vanderson Rocha (Foto: Anna Ferrari)

Durante o processo, foi acometido por uma leucemia que demandou quimioterapia e dois transplantes de medula óssea. Foi no segundo que ele recebeu células de um paciente que possuía a modificação celular necessária para a imunidade ao vírus do HIV. Em 2006, a carga viral em seu sangue era quase nula, sendo assim constatada a cura. Para ele, entretanto, é importante encontrar uma cura mais eficiente e acessível, já que esse tipo de transplante seria um método arriscado. Sua opinião sobre como a mídia aborda o assunto é que deve haver um cuidado especial, sem tratar de forma sensacionalista os fatos. “[Deve acontecer] o uso correto dos remédios para ter certeza de que não infectará ninguém”, aconselhou.

A roda de conversa sobre gênero e identidade, mediada pela assistente social Raphaela Fini, colocou a questão da transexualidade em pauta. A psiquiatra Ariadne Ribeiro, a ativista Brunna Valin, o designer Neon Cunha e também ativista Luiz Fernando compartilharam suas histórias de intolerância e violência dentro da comunidade.

“Fui estuprada aos 13 anos, e minha mãe me disse que era porque eu merecia. ‘Onde já se viu rebolar daquele jeito?’”. Foi assim que Ribeiro contraiu o vírus do HIV, que lembra a recorrência de casos de prostituição de pessoas trans, como aconteceu com Valin. Antes de se tornar a estudante mais prestigiada em seu curso de faculdade – sendo até representante de turma –, a ativista fora mulher de programa e cafetina. O colega de debate Cunha colocou em discussão as questões raciais, fazendo um histórico das injustiças causadas pelo privilégio branco. Citou a história de Dandara dos Santos, caso marginalizado de Fortaleza (CE) e pouco divulgado até hoje.

O grupo ainda enfatizou o quanto é necessária a representatividade trans para eliminar o estigma do “sem futuro”, para essas pessoas sentirem que a academia também é seu espaço. Uma iniciativa para isso é a Casa Florescer, que acolhe meninas trans em situação de rua e apresentou ao final do evento o curta-metragem Por que você não me pergunta meu nome?, produzido pela Casa em parceria com o Senac. Ainda houve a apresentação de performances de dublagem, poema e dança feitas pelas meninas do programa Divas Florescer.

Apresentação do coletivo Divas Florescer sobre a transfobia (Foto: Anna Ferrari)

15/04: UM DIA TEÓRICO

A segunda semana de curso parece ter seguido o ritmo de tecnicidade do fim de semana – que teve oficinas e visitações mais específicas e científicas para o assunto. A palestra de Robert Balderas, da BD Biosciences, iniciou o dia e trouxe as novas abordagens para citometria, que é a medida das características celulares. “[Teve] conteúdo bastante denso, porém rico para os especialistas no assunto, que pareciam estar gostando muito”, comenta Taís Vargas, assessora de imprensa e aluna.

Durante o restante do dia, houve palestras sobre cura do HIV, desafios e soluções (com Rafick Sékaly, da Case Western Reserve University) imunoativação na saúde de indivíduos saudáveis (com Hendrik Streeck, da Universidade de Duisburg-Essen) e manipulação de anticorpos neutralizadores do HIV para melhorar a atividade antiviral (com Richard Koup, chefe do laboratório de imunologia do VRC). Nesta, foram comentadas maneiras de combinação de anticorpos para uma melhor eficiência de uma droga que neutralizasse o vírus no sangue. Em português claro, é mais difícil o vírus gerar resistência a vários anticorpos do que a apenas um.

Na palestra sobre análises de células B em ensaios clínicos sobre HIV, foi introduzido um elemento que apareceria quase que constantemente nas seguintes: a utilização desse tipo celular para a prevenção e criação de defesas contra o vírus do HIV. Adrian McDermott, também da VRC, avaliou e tentou melhorar os resultados de testes com os anticorpos para a fomentação de vários modelos de vacina. Ao final, tendo o título “Um modelo de macaco para analisar o mecanismo de indução de anticorpos neutralizadores anti-SIV [vírus da imunodeficiência símia]”, que seria importante para o estudo das mutações de seu vírus equivalente – o HIV.

16/04: UM PESQUISADOR CARISMÁTICO

O penúltimo dia teve Mauro Schechter, da Universidade do Rio de Janeiro, revisitando START – a iniciação do uso de antirretrovirais no mesmo dia – e o tratamento como prevenção (TasP) e abordando pontos relevantes na profilaxia e tratamento da infecção pelo vírus do HIV. Logo após vieram as aulas sobre as buscas emergentes para a remissão do HIV, com Lishomwa Ndhlovu (Universidade do Havaí), o papel do microbioma, com Alan Landay (Rush University) e como ter sucesso na ciência, com Michael Lederman (Universidade Case Western Reserve).

À tarde, falou-se de ChemSex – tratada como tabu, é a prática sexual que inclui o uso de substâncias químicas (como GHB, poppers, metanfetamina e viagra) para o aprimoramento da performance sexual e relaxamento na hora da relação. Como explicou Karin Moreira, do centro de convivência É de Lei, estas substâncias no geral são usadas em grupo e festas principalmente por homens que fazem sexo com homens durante o sexo anal. Aí que mora o perigo do HIV pela possibilidade de surgirem na região fissuras que facilitam a infeção.

Karin Moreira e Daniel Barros no Bate-papo sobre ChemSex (Foto: Anna Ferrari)

Ao final do dia, Rebecca Lynch falou de anticorpos contra o HIV. Lynch é médica do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Medicina Tropical (MITM) da Universidade George Washington. “Poucas pessoas neutralizam vários tipos de vírus”, comenta. Lederman falou dos efeitos do tratamento com defesas inflamatórias no sistema cardiovascular, o que pode ser um tratamento pouco indicado para aqueles que possuem doenças cardíacas. Glen Beber, da Universidade de Miami, abordou as consequências da infecção do HIV, e David Watkins, também de Miami, expôs perspectivas para as vacinas da dengue, zika vírus e febre amarela para além do HIV.

17/04: ENCERRAMENTO

O último dia do curso foi marcado pela técnica científica. Tim Schacker, da Universidade de Minessota, respondeu o que acontece nos gânglios linfáticos durante a infecção aguda pelo HIV. Ronald Desrosiers, do Departamento de Patologia na Escola Miller da Universidade de Miami, mostrou a eficácia de vacinas que usam o vírus da herpes recombinado com genoma do SIV quase completo, um estudo bastante específico. David Watkins, que participou da primeira edição do curso também, apresentou uma perspectiva para as vacinas de HIV.

O David Watkins, da Universidade de Miami (Foto: Anna Ferrari)

A tarde teve uma sessão interativa no formato de um jornal. Maria Candida Dantas e Edimilson Medeiros liam notícias e boatos difundidos sobre o HIV, questionando verdades ou mitos do HIV, desmistificados pelo infectologista Ricardo Vasconcelos. “O maior medo das pessoas que vivem com HIV é passar para outras pessoas. Querer transmitir seria um caso de psicopatia”, explica Vasconcelos.

John Moore trouxe uma vacina que poderia ser feita a partir da modificação de três moléculas idênticas de um anticorpo para evitar a replicação do HIV. Esper Kallás encerrou as apresentações falando sobre o PrEP, cujo estudo foi taxado de “o mais antiético que a faculdade já tivera”. Os preconceitos ainda existem – dentro do meio acadêmico inclusive. Entretanto, foram apontados problemas como o fato de os maiores beneficiados serem homens brancos e instruídos, o que necessita de medidas para a maior inclusão de populações de risco. O curso só se encerraria com a peça teatral Mancha Roxa, que ilustrou a realidade de mulheres portadoras de HIV nos presídios brasileiros, deixando uma reflexão sobre conceitos e preconceitos.