"Precisamos mudar como humanidade", diz coordenadora de enfermagem sobre o pós-pandemia - Revista Esquinas

“Precisamos mudar como humanidade”, diz coordenadora de enfermagem sobre o pós-pandemia

Por Diego Valencia e Pedro Zagury : maio 24, 2020

Ainda que o vírus seja a pauta mais em foco no mundo todo, a relação de pessoas com outras enfermidades, como o câncer, é pouco discutida nesse momento 

A pandemia do novo coronavírus tem se apresentado como um desafio para os profissionais de saúde que estão cuidando dos pacientes infectados. Além de um fluxo enorme de pacientes, o covid-19 trouxe dúvida em relação ao tratamento e ao controle da transmissão do vírus. Porém, há um problema enfrentado pela maioria dos médicos que não fica tão claro para as pessoas fora do meio: como estão os pacientes com outros problemas de saúde?  

A dificuldade de isolar os enfermos em estado de saúde frágil dos novos infectados, o prognóstico da comunidade médica sobre essa situação inusitada e o futuro são temas da entrevista a seguir com Andreia Meira, coordenadora de enfermagem do Hospital Beneficência Portuguesa na área da oncologia. 

  

Como sua rotina foi afetada pelo covid-19? 

Dentro do hospital, houve uma mudança no fluxo. Desde a entrada do paciente, confirmações de consultas, até se ele apresenta sintomas do corona. Se ele tiver algum sinal, não deverá comparecer ao centro de oncologia. 

  

Até mesmo aqueles que já faziam tratamento? 

Exatamente. Pacientes com câncer não podem adiar seus tratamentos, então eles continuam frequentando os lugares prévios para consultas, entregas de exame ou para tratamento. Mas tem de haver um cuidado por parte do paciente e do acompanhante. Por isso, foi instituída, na porta do hospital (menos no pronto-socorro), uma tenda, onde se realiza a medição de temperatura e um questionamento sobre possíveis sinais do covid-19. Assim, ele recebe uma máscara, tanto para sua proteção quanto para quem está no hospital. 

  

É possível dizer que alguma coisa permanece igual? 

A frequência e o tratamento do paciente, pois cada protocolo tem sua maneira, e temos de segui-la. O que difere é o paciente que vem para suporte, como medicações complementares ao tratamento do câncer ou cuidados com o catéter. Podendo ser adiado, nesse momento, ele é estendido. 

  

Quais são os obstáculos criados pela crise para os pacientes e para sua equipe? 

Os pacientes, no início da pandemia, ficaram muito assustados, e muitas pessoas achavam que tinham a doença quando não tinham. Qualquer dor de cabeça era tratada como infecção por coronavírus, porque existia muito pânico – dentro da equipe, inclusive, por morar com pessoas do grupo de risco. 

  

Como você enxerga a cobertura midiática do momento atual? 

Estão nos mostrando o que está acontecendo. O medo não é histeria, principalmente para nós, que estamos na área da saúde. Temos noção do que o vírus pode causar, isso evolui muito rápido e em todas as idades. Temos profissionais aqui, trabalhando em outras instituições, que contam a realidade de maneira geral do sistema de saúde e isso acaba gerando pânico. 

  

Há uma forte presença da imprensa nos hospitais atualmente,  isso atrapalha? O foco é o mesmo para as outras áreas (que diferem das UTIs)? 

Ela esclarece, principalmente para a pessoa leiga, que tem uma visão errada da pandemia, aqueles que têm a ideia de que ela vai afligir somente as pessoas do grupo de risco. Por isso, a veiculação de informação médica e técnica é essencial. Não há o mesmo foco para as diferentes áreas porque elas não possuem a mesma televisibilidade. Porém, foi criado um grupo nacional de oncologia no qual estão acontecendo lives e uma troca de informações. O foco é ter atualizações de como os hospitais estão tratando os pacientes, essa preocupação deve estar ocorrendo em todas as áreas. O paciente não pode sair pior do que entrou. 

  

Houve contaminação de pacientes que vieram por outra enfermidade que não covid-19? 

Meu conhecimento é dentro da oncologia e eu desconheço algum paciente que tenha entrado sem o corona e tenha saído contaminado. Nós sabemos de pacientes que vivem em determinados locais ou com pessoas que estavam previamente contaminadas. 

  

Como você  está se protegendo da pandemia? 

O funcionário que trabalha na oncologia já possui uma paramentação para trabalhar com quimioterápicos (drogas citotóxicas) que é muito semelhante para o tratamento  de pacientes infectados. São máscaras faciais, óculos e luvas de proteção e aventais impermeáveis. Além de o hábito de lavar as mãos e limpar rigorosamente o local, que são básicos no ambiente hospitalar, visando não infectar o paciente. Saindo do hospital, há outras medidas recomendadas, como usar máscaras, deixar os sapatos na porta e ir diretamente ao banho. 

  

Apesar de todo esse esforço, houve infecções na equipe? 

Eu tive confirmações de duas colaboradoras. Foram afastadas assim que tiveram a suspeita, seguindo a recomendação do isolamento em casa. Elas mudaram a rotina familiar, ficando isoladas em seus cômodos com o mínimo contato com os outros, recebendo comida na porta de seus quartos. Mantidas assim por 14 dias, foram acompanhadas por meio de consultas diárias de um médico do Hospital por telefone. 

  

Os hospitais estão seguros para aqueles que não têm o contato direto com pacientes infectados? 

A grande maioria dos hospitais está separada em ‘áreas limpas’ e ‘áreas contaminadas’. Então, normalmente, se separam por blocos e setores os pacientes de covid-19. Não se misturam funcionários e fluxo de pacientes, tendo apenas uma porta de entrada do vírus, o pronto atendimento. Os caminhos são próprios, assim como os elevadores, além de o paciente estar paramentado durante todo o trajeto. Essa é a realidade que eu vivo. 

  

Todos esses protocolos serão mantidos após a pandemia? 

Creio que sim. A pandemia se estenderá por um período longo. Iremos passar por momentos mais críticos por alguns meses. Até que se tenha um controle do vírus, os protocolos terão de ser mantidos. 

  

Como você enxerga o futuro em relação ao vírus? 

Creio que deve piorar bastante. O lockdown deve acontecer em breve, pois não se observa, na prática, a adesão das pessoas, no geral. Como o brasileiro precisa ‘ver para crer’, somente quando um vizinho ou um familiar morrer, haverá noção do que está acontecendo. Ninguém, que eu conheço, da área onde trabalho, vê isso como algo rápido. Há uma sensação geral de que irá durar mais alguns meses e que muitas pessoas ainda irão morrer. Devemos mudar como humanidade, acho que o mundo inteiro irá sofrer uma mudança a partir disso.