Pacientes contam suas experiências durante a espera por um transplante e a importância da conscientização para doação de órgãos
Outubro de 2020. Tomou o avião com sentido à Porto Alegre. Entrou na aeronave, identificou seu assento e acomodou-se confortavelmente. Uma passageira se aproximou e perguntou se poderiam trocar. Que importunação. Logo o melhor lugar, com tomada! Mas por que teria de abrir mão do seu assento? No mínimo, ficou irritado. Foi aí que percebeu: a mulher tinha consigo uma bomba de oxigênio e dependia dela para respirar. Dependia também daquela tomada para o funcionamento do aparelho. Constrangido, pediu desculpas e cedeu o lugar a Marindia.
Um ‘não’ do passageiro seria o menor dos problemas. Ainda mais para Marindia, uma entre outras tantas 50 mil pessoas que esperam ansiosamente por um único ‘sim’. No Brasil, a permissão para a doação ou não doação de órgãos parte estritamente da família após a morte encefálica de um ente querido. Mas, os números registrados pelo Ministério da Saúde ainda revelam certa resistência e falta de informação sobre o tema.
Quem dera a veterinária estivesse viajando a passeio. Tão perto do céu, ironicamente, o que mais lhe faltava era o ar. Com apenas 30% da capacidade pulmonar, Marindia Lahm foi diagnosticada com Fibrose Cística aos 14 anos. Natural de Luís Eduardo Magalhães, no interior da Bahia, a família ia a cada três meses buscar os medicamentos e realizar os exames no Centro de Reabilitação de Salvador, a 900 km de distância de onde residiam. Durante 15 anos, assumiram religiosamente o compromisso com duas noites sem sono na estrada, já que o dinheiro não era suficiente para pousadas e hotéis.
Formada em medicina veterinária, não entendia o motivo de sua desmotivação e cansaço. Uma queda brusca na imunidade levou à investigação médica na capital baiana, constatando apenas 30% de capacidade pulmonar.
“Se você não entrar na fila, você não tem nem mais cinco anos de vida”, disseram os médicos do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando Marindia ligou em busca de orientações. Ao mesmo tempo, a pandemia começava a tomar conta do Brasil, e viajar não era mais uma opção viável. Mesmo ao se deparar com a situação da fila para receber a tão sonhada doação de órgãos, Marindia não desanimou: “Porque ninguém quer durar, todo mundo quer viver”.
Apesar da paixão por aventuras, viajar, na verdade, continua não sendo uma opção viável para Malu. Enfermeira formada, hoje aos 28 anos, Maria Luisa Villela viu a vida tomar rumos completamente diferentes do que imaginava para a sua juventude. Foi em uma consulta de rotina, lá em 2018, enquanto fazia residência no Rio de Janeiro, que se assustou com os altos níveis de creatinina que o hemograma acusava.
“Eu já sabia o que aquilo significava, o que iria acontecer comigo. Eu comecei a chorar muito, eu acho que eu nunca chorei tanto assim, de pavor, de medo, de raiva, de tudo, eu nunca tive essa experiência de novo. Foi horrível, foi muito horrível”, lembra.
Insuficiência renal crônica. Nem mesmo os médicos da FioCruz sabiam como reagir. Mas Malu decidiu lutar contra a realidade, e após uma bateria de exames, continuou trabalhando na residência e negando os sinais que seu corpo dava. Foi só mais tarde, depois de passar por complicações terríveis e a agonizante certeza de que não sobreviveria nos corredores de um hospital público do Rio de Janeiro, que decidiu assumir a gravidade de seu quadro.
Hoje, depende da hemodiálise. Quatro horas ao dia. Três vezes por semana. Duas horas de viagem. Esperando por um único sim. “Eu amo minha vida, sou grata por ela e pela hemodiálise, mas tudo que eu quero é o transplante”, conta Malu.
As sensações na fila de transplante
Difícil mesmo é tentar entender como situações desafiadoras podem gerar reações tão diferentes. Enquanto Malu chorava copiosamente, prevendo tudo o que teria de enfrentar, Rosane apertava o play em sua série preferida, How I Met Your Mother. “Tive o pensamento de que qualquer tristeza ou qualquer sentimento de raiva naquele momento não seria nada útil”, diz Rosane.
Hoje médica formada, Rosane Morais teve de enfrentar a ironia do destino quando descobriu seu diagnóstico de leucemia aos 20 anos, nos primeiros anos de faculdade. O caso era especialmente complicado e a quimioterapia tinha apenas 50% de chance de sucesso. Com uma recidiva após seis meses de tratamento, não tinha mais tempo a perder e tornou-se candidata a transplante de medula óssea.
“Com o passar do tempo eu comecei a dar mais valor para algumas experiências de vida. Tive que criar paciência para lidar com pessoas que reclamam por besteira, porque você vira uma pessoa que tende a nunca reclamar por nada, ou pelo menos reclamar o mínimo possível”, afirma.
Tomou um avião rumo a São Paulo, onde junto à equipe médica do Hospital Israelita Albert Einstein, pôde dar início ao processo de transplante. Dentre as opções de doadores, sua mãe assumia a melhor posição. Depois do transplante, o protocolo exige que o paciente fique mais 3 meses próximo à estrutura para cumprir com os atendimentos.
E assim se fez a rotina de Rosane e sua mãe na capital paulista, até que a jovem estivesse saudável o suficiente para retornar à Fortaleza, sua cidade natal. Durante dois anos fez-se necessário o uso de imunossupressores. Ao todo, tomava 27 comprimidos por dia. “Hoje, vivo uma vida normal. É uma vida incrível na verdade, amo minha vida. Tem coisas que ainda quero alcançar, mas um passo de cada vez. Atualmente estou muito feliz”, celebra Rosane.
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“Oi Marindia, aqui é a Jaque!”
Porque não lembrar da manhã do dia 27 de setembro de 2021, quando o Governo Federal lançou a Campanha Nacional de Doação de Órgãos. Foi também na madrugada do dia 27 que Marindia recebeu a ligação mais importante de sua vida. “Quando ela falou Jaque, eu já pulei da cama porque sei que ela é médica da equipe de transplantes”, lembra.
A veterinária já estava muito desanimada com a espera. Há quase um ano na fila, continuava sem perspectivas de quando o seu dia iria chegar. Por conta da pandemia, a doação de pulmões foi completamente prejudicada, visto que é o órgão mais afetado pela infecção de coronavírus.
“Meu Deus, será que vai dar tempo?”, pensava toda vez que um soldado ficava para trás no campo de batalha. É assim que ela enxerga a vida em uma fila de transplante: como uma guerra.
Ao longo de 2021, perdeu quatro amigas. Uma delas não resistiu à espera. Por questões burocráticas, levou dois anos para conseguir entrar na fila. Assim que o fez, pegou covid e veio a óbito. A outra conseguiu fazer a cirurgia de transplante, mas a saúde debilitada de quase dois anos de espera impediram que a paciente resistisse ao novo órgão. “Depois do óbito dessas duas amigas em especial, eu fiquei muito mal de saúde, parece que fui piorando”, conta emocionada.
A verdade é que a história de Marindia não seria tão certa se fosse planejada. Apegada a Deus, derruba rumores de que a doação de órgãos vai contra alguma religião. “Não existe no Brasil e nem em nenhum outro lugar, uma religião que impeça a doação de órgãos. Inclusive a bíblia traz uma passagem que diz que ‘nenhum corpo, nenhuma carne e nenhum tecido vão adentrar o reino dos céus’”, afirma.
Os últimos momentos antes da operação foram bem difíceis. A certeza de ir e a incerteza de voltar. Mas ela voltou, voltou como um bebê que é expulso do ventre e tem de aprender a respirar novamente.
Foram três dias desacordada após a cirurgia. Duas semanas na UTI e uma difícil experiência. Se pergunta se estas estruturas não deveriam ser repensadas. “As luzes nunca se apagam. Comecei a ter alucinações. Essa foi a pior parte”, relembra a veterinária.
Foi transferida para o quarto no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida. Pôde comemorar seu aniversário e renascimento em casa. Um dia antes de completar 31 anos, recebeu alta. Agora, anda até se engasgando com o tanto de ar que consegue respirar: “Eu não sabia que cabia tanto ar dentro de um peito! Porque são 31 anos respirando de um jeito totalmente debilitado”.
À espera de um “sim”
Usar o banheiro é um dos maiores desejos de Malu, que daria de tudo para, simplesmente, voltar a fazer ‘xixi’. Mesmo após o diagnóstico de Insuficiência Renal Crônica, uma suspeita de tumor bilateral obrigou a enfermeira a retirar os dois rins.
“Só se eu vender meu rim para conseguir comprar isso!”. É como um tapa na cara para Malu. Dói. Mas ela não perde a paciência e explica quantas vezes for necessário: “Eu já vi tanto isso. Eu falo ‘gente, não falem isso porque é duro, porque a gente está esperando um órgão e vocês estão comparando coisas materiais com órgãos’”, desabafa.
Prestes a completar dois anos na fila de transplante, Maria Luisa depende da compatibilidade dos doadores, mas não perde as esperanças. Um novo rim lhe traria a liberdade de novas possibilidades e uma vida mais próxima do normal possível: “À medida que o tempo passa você aprende a lidar com algumas coisas, mas outras também continuam sendo difíceis, então é um dia de cada vez”.
“Com o transplante eu vou poder fazer xixi! Poder beber água, beber suco de laranja que sou apaixonada, mas não posso por conta do potássio”, diz animada. Com o transplante, a rotina de hemodiálise também não impediria que Malu viajasse para onde quer que desejasse. No fim das contas, a enfermeira só quer tomar um avião, entrar na aeronave, identificar seu assento e acomodar-se confortavelmente.