Dias após Ministério da Saúde admitir colapso na capital amazonense, plantonista relata como vêm sendo o combate à covid-19 na rede pública
“Todo plantão tem um monte de gente pra internar. Todo plantão tem gente pra ser entubada. Todo plantão tem declaração de óbito para preencher”. Recém-formado em medicina pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Márcio Pinheiro Lima trabalha em diversos hospitais da rede pública de Manaus. Atua nas chamadas “salas rosas”, enfermarias em que os pacientes com sintomas respiratórios ficam em observação.
Na linha de frente contra a covid-19 desde março, Lima conta que a situação se agravou de vez após as festas de fim de ano. “Nas últimas duas semanas, os casos explodiram. Antes tínhamos repiques da doença mas agora saiu do controle”, afirma. Na véspera de Natal, o Amazonas registrou 999 novos casos. Menos de uma semana depois, em 30 dezembro, o número saltou para 1.369 novos casos. Em 15 de janeiro, o total diário chegou a 3.816.
O médico descreve que o atual perfil dos pacientes é mais jovem. “A principal diferença do primeiro pico para agora é que antes eram muito mais idosos e debilitados. Hoje a gente vê paciente de 30, 40, 50 anos, com desaturação e precisando internar”, diz.
Lima relata que em uma só tarde chegou a internar 10 pessoas — segundo ele, é mais do que internava na primeira onda. “Sinto que bem mais gente está precisando de hospitalização dessa vez”, afirma. Nos primeiros 14 dias do ano, o estado do Amazonas bateu recorde de internações: 2.768 pessoas, sendo 254 delas só em Manaus. Os números são os maiores desde o início da pandemia. O boletim epidemiológico de quinta-feira (14), divulgado pelo governo estadual, apontou que os leitos de enfermaria estavam operando além da sua capacidade, com 103% de ocupação, enquanto a média geral das UTIs na capital batia em 90%. Segundo o Ministério da Saúde, até quinta-feira 480 pessoas esperavam leitos hospitalares no Amazonas.
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Lima descreve os plantões como uma “linha de montagem” para ver se o paciente precisa ou não de internação. “Você vê no início mesmo que ele tá saturando 76% de oxigênio, quando o normal é 100. Esse paciente você vê que precisa internar, nem precisa de exame. Já faz a internação direto”, explica. “Chega o próximo paciente e ele também está desse jeito, chega outro paciente e está desse jeito. Se precisar de oxigênio, é indicação de internação hospitalar”, relata.
Na última quinta-feira, o oxigênio acabou em algumas unidades do estado, como o Hospital 28 de Agosto. A empresa White Martins disse, em nota, que alertou sobre a falta de oxigênio há duas semanas atrás e que a demanda é mais que o dobro do pico da pandemia no estado, em abril. “A demanda exponencial por oxigênio já aumentou cinco vezes nos últimos 15 dias, alcançando um volume de 70 mil metros cúbicos por dia”, informou a empresa. “Em abril, no pico da pandemia, foram 30 mil metros cúbicos por dia”, disse a empresa em comunicado.
Lima diz que nos hospitais em que trabalha não faltou oxigênio, mas outros insumos começam a escassear. “Não temos, por exemplo, o fluxômetro [regulador de oxigênio] para todos. Não temos umidificador de ar para acoplar no oxigênio. Muitas vezes não temos nem máscara para colocar no paciente”, afirma. Na falta de ponto de oxigênio disponível, a recomendação é colocar os pacientes de bruços para facilitar a respiração. A medida visa amenizar uma falta de ar que ele descreve como “desumana”. “É quase uma sensação de afogamento. Por isso, temos de tentar fazer com que o pulmão do paciente se abra para ele conseguir respirar”, conclui.
Muitas vezes o esforço é em vão. “A gente vai fazendo o que dá. Fazemos o nosso melhor mas ainda sim não é o suficiente para evitar mortes”, conta. Lima diz que as equipes médicas estão “no limite” e “não aguentam mais” a situação. “Ninguém aguenta mais fazer plantão. Você tenta passar seu plantão e ninguém pega. Você fica falando com os outros médicos como a situação está insuportável”, afirma. Ele diz também não acompanhar mais o número atualizado de casos diários da covid. “Não sei mais o número de casos. Não sei mais qual a situação em números oficiais”, completa.
Com equipamentos escassos e oxigênio faltando em alguns lugares, a média móvel de óbitos subiu 182% nos últimos sete dias no estado. Na sexta-feira (15) houve novo recorde de enterros em Manaus: 213, números maiores que os 198 da quinta-feira. A média é de 125 por dia. Só nos primeiros 15 dias do ano foram 1.886 sepultamentos em Manaus.