Exposição das crianças à tecnologia aumentou durante o isolamento social; situação pode afetar memória, postura, visão, audição e até alimentação
Por conta da pandemia, quase dois anos da vida de Letícia** passaram com a menina de 9 anos estudando através da tecnologia, seja no computador ou até brincando pelo celular e descansando em frente à televisão. O isolamento social foi responsável por uma intensa mudança de rotina na sua casa que resultou em um aumento considerável do uso das tecnologias.
Estudos mostram que essa é uma realidade coletiva. Em pesquisa encomendada pela Fundação Lemann e Instituto Natura, o Datafolha apontou, em agosto desse ano, que as atividades nos lares brasileiros mudaram: 37% das crianças e adolescentes estão jogando videogame ou usando o celular em uma frequência maior do que antes da crise da covid-19 e 43% aumentaram as horas de TV. Letícia reconhece fazer parte desta estatística: “Parece que o celular me atrai”.
A psicóloga clínica Sylvia Van Enck Meira, coordenadora do grupo de pais e adolescentes dependentes de tecnologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq-HC/USP), explica que “quanto mais se usa o celular, mais atraente fica”. Segundo ela, a criança próxima ao vício “tem a noção de que está sendo difícil abrir mão e deve estar tendo dificuldades de gerenciar o tempo dela no celular”.
Ela ressalta que a tecnologia da informação, de um modo geral, contém um mecanismo de captação de atenção capaz de afetar especialmente as pessoas em fase de formação: “Tudo que a criança vê nas telas é altamente estimulante e difícil de controlar”.
Entenda as consequências da exposição
Meira aponta consequências da superexposição às telas para o pós-pandemia e afirma que o cenário é reversível, mas pode ser pior sem a intervenção dos pais. “Se continuar nesse ritmo e não houver um controle legal, combinado e conversado, o que pode acontecer, além de danos de ordem física, são problemas na parte cognitiva da criança”, diz a psicóloga.
Na parte física, a especialista afirma que os problemas podem ser posturais, de visão e audição – por conta dos fones em volume excessivo – ou ligados à alimentação, porque, segundo ela, “muitos ficam diante da tela e não comem”. “Isso vai gerando obesidade e, às vezes, até quadros de anorexia”, acrescenta.
Na ordem cognitiva, a psicóloga explica que “na tecnologia, as coisas vêm prontas”. Para ela, a facilidade da navegação, muito usada durante a pandemia, deve prejudicar a memória das crianças: “Sabemos, por estudos, que não buscar na memória alguma informação que se precisa e ir direto para o Google faz com que ela não seja estimulada”.
“Isso tudo pode prejudicar a questão do desenvolvimento, da linguagem, da articulação, da fala e das relações sociais”, aponta. “A tela é muito pequena e não traz aquela coisa de sentar e realmente bater papo”.
O papel dos adultos no controle à tecnologia
Segundo a especialista em telas Mariana Fraga, garantir uma rotina que permita à família ter tempo de união sem as telas é o primeiro passo para desfazer o hábito desenvolvido no período da pandemia.
Ela defende a intervenção dos pais, já que, “nesse primeiro momento, são eles que têm o discernimento de conduzir a criança”. Para ela, os responsáveis devem rever sua própria conduta, uma vez que são o modelo de referência dos pequenos: “Não dá para tirar a criança do celular dela se o pai estiver usando o celular dele”.
“A gente não pode esperar que uma criança desligue o videogame e saiba que o celular em excesso faz mal”, diz. Fraga sugere que os pais pensem no que a criança vai fazer depois de desligar o aparelho e que façam coisas juntos, como sair para tomar sorvete ou caminhar. Ela argumenta que a interação viva é importante para atrair a atenção dos filhos.
A psicóloga clínica, por outro lado, pede cautela aos pais ao diminuírem o uso de telas: “Desconectar tudo que for à cabo, desligar a internet e confiscar o celular de forma brusca são opções perigosas”. Segundo ela, “isso pode levar a atos de risco, como tentativas de suicídio e agressão física”.
Menos iniciativa pública, mais exposição
As especialistas concordam que muitas famílias são prejudicadas pela ausência de investimento em infraestrutura para as crianças nas escolas, sobretudo em informação sobre o uso de telas.
“Faltam alternativas e esclarecimentos aos pais”, afirma a Dra. Sylvia van Enck Meira. Ela sugere que poderiam ter sido criados mais canais acessíveis de sugestão de interação familiar: “A maioria dos pais hoje entende que o uso excessivo da tecnologia é prejudicial, mas não todos.”
Mencionada no início da reportagem, Letícia denuncia o atraso de sua escola, uma instituição pública, no desenvolvimento de atividades educativas para o tempo de pandemia. “Também comecei a usar muito o celular porque quase um ano foi sem fazer lições e eu não tinha nada pra fazer”, lembra.
Diante da retomada das aulas presenciais, há uma expectativa da inserção de recursos digitais no ensino. “Vai ser bom porque o futuro é esse, mas a escola precisa ensiná-los a usar”, conclui a psicóloga.