Os bastidores do documentário “Com o meu luto”
Quando entramos na faculdade de jornalismo, os sonhos são imensos. A vontade de contar histórias, investigar a fundo e doar-se ao desconhecido alimenta o grande sonho de ser jornalista. Mas, afinal, o que é ser um jornalista? Diferente do que sempre pensamos, é muito mais do que escrever centenas de palavras.
Em abril de 2017, começa a nossa jornada de entrevistas para o TCC. O tema escolhido foi o luto. Não esperávamos nos deparar com tamanha profundidade dentro desse assunto, mas sentíamos que poderíamos fazer a diferença. Talvez ser jornalista seja mesmo mudar um pouquinho o mundo, mesmo que só um pouquinho ao seu redor. Lá fomos nós começar a gravar o documentário “Com o meu luto”.
O primeiro luto – e a primeira luta – descoberto foi o de Célia Gamba. Nos auge dos seus quase 52 anos, a professora abriu a porta de sua casa em São Bernardo para receber três estudantes de jornalismo que decidiram falar sobre a perda. Entre bolo de limão, que a Célia fez questão de preparar para nos receber, e chá de hortelã colhido na hora de sua horta, começamos a nos entranhar os sertões daquela mulher tão alegre que havia perdido dois de seus três filhos.
A priori, conversamos sobre trivialidades. Queríamos deixa-la o mais confortável possível para as perguntas que viriam na entrevista. Foram duas horas de um bom papo até chegarmos ao “vamos ver”. O que parecia um trabalho de conclusão de curso que “poderia mudar vidas”, passa a ser um grande desafio: como poderíamos mergulhar nos abismos mais profundos de outro ser humano? Gamba estava pronta para se abrir para nós e não poderíamos deixa-la sem respaldo. Ao lado da filha Carolina, a professora do ensino fundamental nos contou que perdeu a Giuliana e o João Paulo. A primeira aos 16 anos faleceu devido a leucemia no estágio 3, já o João Paulo não chegou a sair da maternidade.
Coração apertado, mãos geladas e, pela primeira vez em meses de preparo, entendemos de verdade o tema do nosso TCC. Entramos na vida da Gamba, mergulhamos de cabeça em suas histórias mais guardadas e profundas. Segue a entrevista. Ela nos contou que chegou a questionar sua fé (sempre muito grande) por algum bocado de vezes. “Por que eu? Eu perguntava a Deus o porquê daquilo ter acontecido justo comigo”, desabafou, “mas depois entendi que eu não era diferente de ninguém, nem mais especial, então por que não comigo?”. Desde então, ela costuma frequentar a igreja toda semana e não abre mão de conversar com Deus. “Hoje, sempre que me perguntam eu digo que tenho, sim, três filhos. Uma comigo e dois com Deus”.
Um mês depois de conhecermos a história da Gamba, foi a vez de mergulharmos de cabeça na vida de Alice Bueno. Quem a vê na rua, provavelmente não sabe o que os seus vinte e poucos anos carregam como bagagem.
Não precisamos de mais do que vinte minutos de bate papo prévio para chegarmos a sua história. No carnaval de 2015, enquanto sua família passava o feriado em uma praia do Rio Grande do Sul, dois homens armados assaltaram a casa e seu pai, Alexandre Bueno, reagiu ao assalto. Alice, que nessa época morava em São Paulo, contou que ficou sabendo do fato ocorrido através do tio.
A terceira entrevista realizada foi com um casal, Valéria Buccini e Carlos Giovanni (Gil). Eles nos receberam de braços abertos, em meio a um almoço em família para nos contar uma história sob perspectiva de dois olhares. A primeira a falar foi a Valéria, que perdeu o filho de 25 anos em um acidente de moto.
Para nós, era a terceira entrevista que estávamos fazendo e, ainda assim, o coração ficava apertado ao ouvir cada palavra, mas Valéria estava calma. É claro que vez ou outra a fala cambaleava, precisávamos fazer algumas pausas para que ela respirasse fundo, mas, no geral, ela parecia bastante confortável para falar de sua dor. Acontece que ela e Gil fazem parte de um grupo chamado Casulo, onde mães e pais se reúnem mensalmente para falar sobre suas perdas e se apoiarem uns nos outros.
Em contrapartida, Gil, mesmo que frequentasse as reuniões do grupo, não costumava falar sobre seus sentimentos. Quando marcamos a entrevista, ele deixou claro que não iria participar, mas, depois de conversarmos por um tempo antes de começar a gravar, ele se sentiu confortável e quis falar sobre o que havia sentido.
https://www.youtube.com/watch?v=r3Y4bjCQxqw
Na família Buccini, foi interessante entrar em contato com duas perspectivas tão diferentes de uma mesma (ou quase) história. Valéria disse que vive seus dias sempre no presente, um passo de cada vez. Gil, por outro lado, mostra um ponto que nos fez refletir bastante. Ele disse que, quando convivemos com alguém, raramente perguntamos sobre essa pessoa.
Um ano inteiro de entrevistas passou. Depois de conhecer três histórias deveras profundas, faltava ainda uma personagem para fechar o nosso documentário e o último recorte era justamente o mais complicado: suicídio. No início, ficamos em dúvida sobre se deveríamos abordar esse assunto tão polêmico na sociedade. Então surgiu Maria Cristina Stefano.
A psiquiatra, que reside em Jundiaí, foi indicada como uma possível entrevistada para o nosso TCC. Maria Cristina nos recebeu de braços abertos e blusa amarela, mostrando seu apoio à campanha para prevenção de suicídio, “Setembro Amarelo”. Desde o início, a doutora deixou claro que não iriamos falar de suicidas, mas sim das pessoas que sobrevivem a esse “homicídio ao próprio corpo”, como ela costuma chamar.
A mãe de Felipe nos conta que descobriu a morte do filho depois de dois dias do ocorrido. O jovem não estava mais indo ao trabalho e ela não conseguia contatá-lo, então decidiu ir até a casa de seu filho, acompanhada do marido, onde o encontraram enforcado. Stefano também nos contou que a sua primeira sensação foi a de se sentir traída. Há dez anos, Felipe mantinha diários, que mais tarde foram publicados pela psiquiatra no livro “Suicídio: Epidemia Calada”, onde escrevia sobre seus sentimentos. Para ela, foi um choque descobrir que o filho sentia tudo aquilo e nunca lhe contou. Apesar da fala tranquila e clara, Maria Cristina demorou um ano e meio para ler os diários do filho. Hoje, ela faz parte da campanha “Setembro Amarelo” e ministra palestras falando sobre a prevenção do suicídio.
Durante a construção do documentário “Com o meu luto”, nos entranhamos nos sertões de cinco desconhecidos. Conhecemos o luto e a luta de cada um deles. Fomos apresentados à saudade, ao vazio e às famílias. Descobrimos que cada personagem de uma forma: uma chora mais, outra parece mais fria; uma fala com mais firmeza, outra fala por inércia (no automático); uma enxerga a superação, outra enxerga o abandono.
Talvez o jornalismo seja isso mesmo: visitar o outro e contar como fora a visita. O luto, por sua vez, continua sendo um tema pesado, mas o enxergamos de outra forma agora. O luto vai além de sentimentos melancólicos e trajes escuros. O luto é a saudade, a força – que vem dos lugares mais inusitados, a perda, o vazio, a eternidade.