Os bastidores de “AS PRIMEIRAS”, documentário sobre o recomeço do futebol feminino no Brasil - Revista Esquinas

Os bastidores de “AS PRIMEIRAS”, documentário sobre o recomeço do futebol feminino no Brasil

Por Sarah Campos, Marcelo Nascimento e Sofia Paiva : junho 4, 2025

O documentário está disponível por streaming via ClaroTV ou Vivo Play. Foto: Divulgação/Olé Produções

Em meio à popularização do futebol feminino no Brasil, as pioneiras da seleção brasileira ganham seu merecido destaque com “As Primeiras”

A trama, vencedora do prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, apresenta a vida de um grupo de mulheres que compartilham uma história em comum: elas formaram a base da primeira Seleção Brasileira Feminina de Futebol do Brasil. Em entrevista à ESQUINAS, a diretora e roteirista Adriana Yañez nos conta sobre as motivações e os bastidores dessa obra.

P: Começando pelo básico: como surgiu a ideia de fazer esse documentário?

Ela surgiu porque eu já trabalho com documentário há mais de 15 anos, direcionados a direitos humanos e direitos das mulheres, e o futebol feminino atravessa essas duas temáticas. A gente falando de futebol feminino também está falando do avanço do direito das mulheres. É um tema que surgiu para mim há muitos anos; em meados de 2011 eu fiz um curta-metragem sobre a Marta, no momento em que ela sai do sertão de Alagoas e vai morar no norte da Suécia.

No meio da minha trajetória, fui convidada pela produtora Olé e me disseram para pensar em um filme, um recorte sobre as pioneiras do futebol. Foi com essa provocação que a gente mergulhou no processo de pesquisa olhando para esse grande universo. Quando a gente entrou em contato pela primeira vez com essas mulheres, que são um grupo de amigas que moram no subúrbio do Rio de Janeiro, eu achei que seria um recorte muito interessante porque elas representam muito bem várias outras pioneiras. Elas estiveram ali nas primeiras seleções de 1988, 1991 e 1995. Elas também fizeram parte da formação dos primeiros times que surgiram no Rio de Janeiro, logo depois que o futebol feminino volta a ser regulamentado. Essas mulheres estavam dentro desse retorno do futebol feminino e da criação da primeira seleção.

P: Como foi o momento de coleta de dados e busca por essas jogadoras?

A gente trabalhou com uma pesquisadora muito experiente nesse universo do futebol feminino chamada Aira Bonfim, que foi quem fez a ponte com essas personagens. Ela conhecia um pouco o que existia de iconografia nesse sentido. Tem imagens ali bem antigas, antes de 1940, antes da proibição. O filme começa apresentando esse universo de imagens e depois, dessas primeiras Copas do Mundo, o material é muito escasso. A gente não encontrou imagens da Copa do Mundo de 1991, não existe nada disponível. De 1988, trouxemos uma seleção de coisas que encontramos, mas é muito pouco e com uma qualidade ruim. O filme acaba construindo seu arquivo a partir do material que essas mulheres tinham guardado em todos esses anos em que elas não foram retratadas, que a história delas não foi contada. Elas tinham as fotografias nas gavetas das casas. A gente pediu que elas abrissem os álbuns para poder escanear as fotos.

P: Você acha que, por esse acervo ser bem pessoal e as narrativas serem contadas por elas, reforça a perspectiva intimista do documentário?

Eu acho que isso é uma opção. Ao fazer o documentário, existiam muitas possibilidades de recursos de linguagem de como a gente retrataria essas mulheres e essa história. A gente poderia ter feito, por exemplo, várias entrevistas e coletado vários materiais de arquivos e ter feito um documentário que costura as pessoas falando e imagens de arquivo. Ou poderia ter pegado 15 pioneiras falando. Foi uma opção, me deu vontade de mergulhar intimamente na vida delas, também nos dias de hoje. Essa é uma história de resgate de uma narrativa muito importante, do papel fundamental que essas mulheres tiveram para a história do futebol feminino e das mulheres no nosso país. Mas também é um retrato delas hoje.

Me deu vontade de mostrar como essas mulheres envelheceram, o que elas fizeram com aquele sonho que sonharam quando tinham vinte e poucos anos e tudo que aconteceu de lá para cá. Como elas enxergam o futebol e a vida, que profissão elas têm hoje. Então fomos construindo junto com elas, pensamos em todas essas imagens e o que seria filmado no dia-a-dia. Eu fui escrevendo o roteiro pensando com elas. É uma coisa que eu escuto bastante sobre o filme, que a gente conseguiu entrar, e fico feliz que as pessoas se sentem lá dentro, porque esse era o meu objetivo.

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P: Quais foram os principais desafios para produzir o documentário?

Um dos desafios mais marcantes desse projeto era ganhar a confiança das meninas, porque a gente estava partindo de uma história de “apagamento”. Nós estamos falando de mulheres que eram da primeira seleção feminina de futebol do Brasil e é uma história que foi esquecida e apagada. Essas mulheres vivem dentro das suas comunidades, de trabalhos informais, com muito pouco dinheiro e não ganharam reconhecimento pelo que fizeram. Por isso, quatro décadas depois, chega uma equipe de documentário falando “que tal a gente fazer um documentário sobre a vida de vocês?”

Nesse período, de vez em quando surge um jornalista querendo fazer uma matéria e elas têm a esperança de que nossa história seja contada ou que algo mude. No final das contas, são produzidas coisas muito pontuais. Então eu senti uma desconfiança bem grande delas, que nós fomos tendo que entrar e conectar. Depois foi a partir de conversas e ligações que a gente foi ganhando essa confiança e esse espaço para que elas pudessem ir se abrindo. Tem coisas íntimas no filme, a gente toca em pontos sensíveis e duros, que também são espaços em que elas puderam se abrir, dar risada e falar bobagem. E fazer documentário independente no Brasil com grana curta. Tem que planejar muito bem e tirar leite de pedra, fazer muito com pouco.

P: Qual seu momento favorito nesse momento de pré-produção?

Vou comentar de um momento pré e um durante as filmagens. Eu sou muito apaixonada por documentário e já trabalho com isso há mais de 20 anos. Ele tem uma parte de muito estudo, trabalho sério de pesquisa, investigação e criação. E tem uma parte que as pessoas trazem, que é sempre muito bonito e maior do que aquilo que escrevemos no papel. Quando eu conheci essas mulheres e fiz uma ligação com cada uma, eu tive muita certeza que era com elas mesmo. Na produção, elas entregaram histórias muito fortes e definitivas lá na hora, que a gente entendeu o sentimento delas. E, mais que tudo, nos momentos de coletividade, elas assistindo aos jogos da seleção masculina. Depois elas mesmas se reúnem e comentam sobre a própria amizade. Isso são coisas que você coloca como dispositivo no documentário. A gente filmou elas assistindo a todos os jogos da Copa do Mundo de 2022 mas só trouxemos um para a montagem. Você vai testando na montagem e percebe que não faz sentido, que fica redundante. Mas tem algo que aconteceu entre elas antes, durante e depois daquele jogo que foi muito valioso. Então essas surpresas no fazer do documentário que me movem.

P: Como foi a recepção das ex-jogadoras e dos demais consumidores com a versão final do projeto?

Felizmente, a recepção tem sido muito boa. A estreia foi em janeiro de 2024 na Mostra de Cinema de Tiradentes – um festival importante para o cinema nacional – ganhando o prêmio de Melhor Filme de Júri Popular, ou seja, o público que elegeu ele como o melhor curta-metragem do festival, algo que já indicava que o filme é capaz de se comunicar com as pessoas. O segundo festival – chamado CineFoot – aconteceu no Rio de Janeiro com a presença de todas elas que assistiram pela primeira vez, juntamente com amigos, familiares e outras pessoas que moram na comunidade, numa sala de cinema com o público do festival. Foi muito divertido, quase uma sessão comentada, todo mundo falando ao mesmo tempo, catártico para dizer o mínimo.

No pós-filme, era perceptível como elas pareciam não acreditar no que estava acontecendo, que aquele filme tinha dado certo, que elas estavam assistindo ele. Foi gratificante. Embora o ocorrido mais tocante tenha se passado uns quatro ou cinco dias depois, quando aconteceram as premiações do festival, a equipe técnica já tinha voltado para São Paulo, então, falamos para elas participarem do encerramento e representarem o documentário – quem melhor, não é? – e nós ganhamos o prêmio de Melhor Filme! Que era, pela proposta do CineFoot, entregue acompanhado por um troféu. Enfim, elas se sentiram reconhecidas e retratadas.

O filme rodou o mundo depois disso: Espanha, Itália, Alemanha, República Tcheca, Canadá, Irlanda, Coreia do Sul. Eu tive a oportunidade de estar em algumas dessas exibições. A da Coreia do Sul me marcou bastante porque temia que ninguém estivesse entendendo o que se passava na tela, mas, ao contrário, vi pessoas de culturas e nacionalidades tão diferentes se identificarem e se emocionarem com a vivência de mulheres suburbanas do Rio de Janeiro. Percebi que é uma história muito particular, mas que as histórias muito particulares são universais, seja pela amizade, seja pelo sonho, seja pela risada, seja pela conexão, seja pelo sentimento, seja pela proibição, seja pelo impedimento, seja pela injustiça que mexe com todos nós.

P: E, ainda falando sobre recepção, quais eram as expectativas de impacto no público quando encabeçaram o projeto?

Meu objetivo era conseguir construir um filme que desse conta de abarcar a complexidade de sentimentos e a complexidade humana que existe nessas mulheres. Acho que esse poderia facilmente ter sido um filme que coloca essas mulheres no lugar de vítimas da história, da injustiça e do apagamento ou poderia ter sido um filme que só celebra e fala “nossa, olha que maravilhosas que elas foram, olha como a construção delas é definitiva, olha que história linda, olha que história perfeita”, mas não é nem só uma coisa, nem só outra, é uma história complexa de sentimentos, ela é tudo isso ao mesmo tempo, sentida por pessoas que sentem de maneiras diferentes entre si, que são impactadas de maneiras únicas pela vida, pelo sonho, pelo passado, pelo envelhecimento, pelo futuro visto na tela. O que eu senti durante a produção é que esses sentimentos precisavam estar presentes e que essas contradições deveriam ser transmitidas. Essa é a potência do cinema: acessar a complexidade do ser humano.

Algo que me surpreendeu na recepção do filme foram as risadas que ele se mostrou capaz de arrancar do público. Antes de filmar, eu não sabia que poderia ser um filme tão divertido. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho de produção da montagem que foi feito pela minha parceira Juliana Munhoz – super sensível e definitiva para o que o filme é – indicava que risadas e choros marcariam presença.

P: Agora, uma última pergunta, você enxerga a possibilidade das atuais jogadoras serem melhor representadas e valorizadas socialmente? Acredita que ainda precisa melhorar?

Com certeza, o filme vem para contribuir com a reparação dessa história e para devolvermos essas mulheres para a história, de onde elas nunca deveriam ter saído, devolver o reconhecimento a elas. Espero que as jogadoras da atual seleção possam assistir ao documentário, porque elas têm dado passos muito importantes e se desenvolveram em um passado muitíssimo recente e só fizeram isso pelo fato de, no passado, outras mulheres começaram a caminhar. E elas sofreram todos os tipos de preconceito e de limitações, jogaram enquanto o futebol era proibido para mulheres, quando foi regulamentado, elas voltaram a ser discriminadas por jogarem, por serem suburbanas e por serem mulheres lésbicas, fora toda falta de estrutura, enfim, elas tiveram que lutar contra todo descaso para fundarem o futebol feminino como vemos hoje. Espero que essas pioneiras sejam recompensadas pelo futebol, porque elas foram essenciais para ele, por meio da reparação que o longa se propõe a fazer.

E, sim, o futebol feminino tem cada vez mais se desenvolvido e temos que pensar no desenvolvimento conectado com a justiça social, o combate à violência contra mulheres e meninas, os direitos das mulheres, é fundamental que o futebol feminino avance nesse sentido. Em 2027, o Brasil vai sediar a Copa do Mundo Feminina, isso é um marco enorme, e deve trazer um desenvolvimento enorme para o futebol das mulheres no país, é maravilhoso. Mas devemos nos certificar de que não estamos deixando para trás coisas importantes e que sempre vamos dar às mulheres a valorização e o respeito que elas sempre mereceram e que elas merecem.

O filme agora chega ao streaming via ClaroTV e Vivo Play.

Editado por Luca Uras

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