Em tempos multimidiáticos, a arte e seu consumo se transformam
Consumir arte é normalmente padronizado em nossa sociedade como uma ida a uma exposição de obras clássicas ou uma leitura de livros renomados. Fugir desse padrão resulta em um preconceito do que seria reconhecido como arte. A rejeição está presente em diversos campos: novos artistas, perspectivas e formas de consumo.
Em uma era de transformações digitais, a quarta revolução industrial inova todos os aspectos previamente conhecidos, já que a tecnologia se faz cada vez mais presente e necessária. As chamadas geração Y e Z, imersas nas múltiplas realidades desse mundo, tiveram que aprender a lidar com todos os rótulos pré-estabelecidos e estão remodelando o modo de consumir arte e cultura. Elas contrariam o pensamento de que as redes sociais criaram uma “geração rasa” intelectualmente ao desconstruírem nos meios digitais o consumo de cultura. Mostram-se essenciais não só para essa nova era, mas também para expressar os sentimentos e angústias dela.
Plataformas como o Instagram permitiram a ascensão de um novo grupo de artistas e escritores que abordam questões da contemporaneidade, como a depressão, a ansiedade, os relacionamentos e a sexualidade. Suas obras servem de amparo para adolescência atual. O projeto “Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente”, por exemplo, nasceu de um grupo de amigos que decidiu começar a escrever textos com informações que deveriam ser absorvidas de maneira lenta e menos superficial. Iniciaram postando no Tumblr, mas, em 2016, migraram para o Facebook, que apresenta atualmente mais de um milhão de curtidas. O TCD, como também é conhecido, é dono de uma conta no Instagram com 520 mil seguidores e um perfil no Twitter que já ultrapassou a marca de um milhão de fãs.
Um dos autores e idealizadores da iniciativa, Igor Pires da Silva, ao perceber o engajamento das pessoas com seus textos, materializou suas ambições na publicação do livro do TCD pela Globo Livros em 2017. Foi sucesso de vendas: chegou a ser um dos mais vendidos na Livraria Saraiva e o quarto na lista de ficção da Revista Veja.
Ao ser perguntado sobre os “poetas do agora”, nome dado a quem escreve poesia nas redes sociais, Pires lembrou da sua importância. “Esses autores conseguem traduzir o que essa geração está sentindo. É necessário que escutem algumas verdades. Não vamos confundir abuso com amor, por exemplo. É ao mesmo tempo um soco e um alívio”, explicou. Para ele, esses autores emocionam com as palavras que escrevem nas redes sociais. Diz ainda que recebe diversos agradecimentos de leitores afirmando terem encontrado nos textos do TCD a coragem necessária para reconstruírem suas vidas. “Esse é o poder efetivo e primário da literatura: promover mudanças”, afirma.
Orgulhoso, ele destaca o fato de o projeto não possuir uma identidade. Assim, o livro não possui um vínculo direto com o autor. Seu desejo é que a conexão do leitor com os textos esteja relacionada estritamente ao conteúdo. “Acho que o ser humano tem a necessidade de seguir alguém, um rosto. Não quero, não gosto e não pretendo me tornar uma pessoa pública”, avalia Pires. Quanto a futuros projetos, o escritor anuncia com satisfação que o segundo livro do “Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente” será lançado até o final deste ano.
Mais um escritor envolvido com a iniciativa de produção literária dentro das redes sociais, Daniel Arruda Teixeira passou a ser popularmente conhecido por Daniel Daarte por causa de seus trabalhos. Após a insistência de amigos e familiares, o médico criou uma página no Facebook, que apresenta hoje 688 mil curtidas, e revitalizou seu Instagram, chegando ao valor de 411 mil seguidores. Nas duas contas, começou a publicar poesias que costumava escrever em paralelo à rotina médica. Foi necessário quebrar o preconceito pessoal que tinha em relação à arte presente na web por acreditar que esses textos não deveriam se associar aos ambientes digitais. “Eu achava que poesia não combinava com redes sociais”, confessa. Contudo, ao ingressar no meio digital, percebeu que haviam várias generalizações dos produtores de conteúdo online. Muitas vezes relacionados equivocadamente à futilidade que circula pela internet, os “instapoets”, outra denominação para os poetas do universo online, ainda são alvo de preconceitos e estereótipos. Na opinião de Daarte, o que deveria acontecer, na verdade, é um julgamento individual de cada artista.
O livro físico do médico poeta também está a caminho. Daarte revela que tem boa parte dos textos já escritos, porém faltam ilustrações para finalizar a obra. Outra iniciativa que possui é o projeto de distribuições de cápsulas de poesia: o médico entrega aos pacientes pequenos envoltórios com poemas de sua autoria. Quando questionado sobre a importância da atividade, ele enfatiza o poder simbólico da ação. “Ela possui a capacidade de gerar um vínculo emocional imediato. A pessoa que recebe se sente cuidada. De certa forma, é um remédio para a alma”, diz.
Em outro viés, ilustradores também lutam pelo reconhecimento de suas obras no ambiente digital. Com a democratização do espaço de produção da arte propriamente dita, vários nomes começaram a se destacar. Entre eles, Belkisse Lemes é dona do perfil “Chuvisco de risco”, com 300 mil seguidores no Instagram. Na conta, a ilustradora posta suas artes acompanhadas de pequenos textos quase que diariamente e vende produtos, como cadernetas e canecas, estampados com suas ilustrações. Lemes tem como plano a produção de uma espécie de compilado de suas postagens. Ela acredita que, apesar da disponibilidade online, o livro físico ainda se apresenta como um objeto histórico e emocional. “É para ser algo simples, que sirva como uma forma de acalentar o outro, um presente”.
Sob a mesma perspectiva, Flávio Wetten criou o perfil “Life on a draw”, seguido por quase 300 mil pessoas no Instagram. Segundo o artista, o projeto nasceu com o intuito de que conselhos, frases, poemas e acontecimentos do dia a dia não passassem despercebidos diante dos olhos e ouvidos das pessoas, mas sim para que fossem vistos de um ponto de vista fora do comum. “As coroas nos desenhos surgiram inspiradas na música ‘De onde vem a calma’, da banda Los Hermanos, mais especificamente no trecho que diz ‘e no final assim calado, eu sei que vou ser coroado o Rei de mim’”, explica a origem da sua marca registrada, uma pequena coroa amarela.
Em meio a uma sociedade que ruma em direção a caminhos afetivos cada vez mais efêmeros e voláteis, a arte transcende todos os paradigmas pré-estabelecidos. Independentemente da plataforma, linguagem ou tema abordado, ela permanece sendo o oásis da humanidade.