Coordenadora do Cuca da UNE e docentes da Faculdade Cásper Líbero discutem a arte como forma de resistência
O ano era 1968. Protestos eclodiam em todo o ocidente. Trabalhadores ocupavam as fábricas, o movimento negro saia às ruas com as panteras negras nos Estados Unidos e feministas queimavam sutiãs. Entretanto, o Brasil enfrentava seu quarto ano sob o regime militar. Especialmente neste ano, os movimentos sociais estavam tendo seu direito à expressão cerceado, além dos precursores perseguidos. No mesmo ano produções artísticas brasileiras destacavam-se por se colocarem em oposição à Ditadura.
A União Nacional dos Estudantes (UNE) fez parte desses movimentos que tiveram direitos preteridos. A organização nasceu no fim do ano de 1938 com o intuito de ser a entidade máxima dos estudantes e articular com a sociedade. Entre os projetos da organização, havia a promoção de cultura popular. No mesmo dia do Golpe Civil-Militar no País, dia 1º de abril de 1964, a sede da UNE sofreu um incêndio criminoso. “É um pouco impossível falar da história da nossa República sem falar da luta dos estudantes e da UNE”, afirma Camila Ribeiro, coordenadora geral do Circuito Universitário de Cultura e Arte (Cuca) da UNE.
No campo cultural, a organização perpassou experiências como as do Teatro Brasileiro do Estudante e o Teatro Experimental do Negro, companhia de Abdias do Nascimento, no Rio de Janeiro. Ribeiro lembrou do Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1962, pela associação estudantil em conjunto com intelectuais como Ferreira Gullar, Carlos Lyra e Armando Costa.
Os Centros eram espaços que reuniam artistas de todas as áreas, que começaram a desenvolver tentáculos pelo Brasil com as UNE Volantes, que saíam pelas universidades do País para discutir uma reforma universitária que diminuísse a desigualdade no ambiente do ensino superior. “Foi um canal de chamar a atenção para a produção da arte engajada, afinal, pensava-se que a arte tinha uma função política muito determinante”, lembra Ribeiro. Inclusive, uma dessas viagens da UNE Volante, é o ponto de partida de um dos maiores documentários já feitos no País, Cabra Marcado pra Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, integrante do CPC na década de1960.
“Foi um período em que a elite intelectual decidiu definitivamente pensar o País”, afirma Jorge Paulino, professor de História da Arte da Faculdade Cásper Líbero. Ou ainda, nas palavras do crítico literário Roberto Schwarz, “um período em que o Brasil estava irreconhecivelmente inteligente”, “de combate ao imperialismo e ao latifúndio”, em que o social atravessou a estética nas mais diferentes frentes. Desde os planos de construção de Brasília, que propunham uma nova capital projetada para evitar desigualdades, passando pelos filmes do Cinema Novo, movimento do qual participavam Glauber Rocha, Cacá Diegues, Leon Hirzsman, entre outros, cineastas em busca de uma ótica capaz de abranger as misérias do Brasil. Enfim, período também de muitas contradições e falhas: sobre Brasília, o cinema-novista Joaquim Pedro de Andrade, autor de Macunaíma (1969), filmou, por encomenda de diretores da Olivetti, fabricante de máquinas d escrever, Brasília, Contradições de uma Cidade Nova (1967), uma crítica feroz à realidade da nova capital. Os patrocinadores, claro, não gostaram nada do resultado.
No campo das artes plásticas, os artistas desse período buscavam uma renovação da linguagem e influenciaram grupos posteriores. Para entender a arte de 1968, é necessário entender o contexto anterior à ela. Em 1950, destacava-se no Brasil a fusão entre literatura e artes visuais nas obras dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, além de Waldemar Cordeiro. Era o surgimento do Popcreto – uma fusão entre arte pop e concretismo.
Duas vanguardas ganharam força na época da Ditadura, a carioca e a paulistana. Seus artistas se reuniam e realizavam exposições, todas com caráter militante e crítico às mudanças ocorridas no Brasil. A exposição Opinião 65, ocorrida no Rio de Janeiro em 1995, contou com uma série de eventos artísticos e debates. Uma das obras mais conhecidas foi a de Hélio Oiticica, chamada de Parangolés. Em São Paulo este cenário de transformação da sociedade por meio da arte também estava presente. Além do movimento Popcreto, outras exposições se uniram na capital paulistana, como a Proposta 65, realizada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em 1965. Em termos de influência, o maior legado da arte criada no período ditatorial foi a crítica ao regime, de forma a contestar a ordem imposta e mostrar à população os crimes do período.
Integrante do Centro Acadêmico Vladimir Herzog, Leopoldo Cavalcante fez um breve texto sobre o que foi essa época para o Brasil:
“Foi o pior dos tempos, foi o melhor dos tempos. Dentro de um hiato que durou vinte e cinco anos, o compositor baiano deixou de cantar que tudo era divino e maravilhoso; o príncipe de olhos azuis sorvia a aguardente que não saciava; o mineiro barbudo pedia, na voz daquela moça do cabelo curtinho, a volta do irmão do Henfil; Cordélia Brasil punha tudo de pernas pro alto por conta de um cigarro roubado; as bocetinhas pareciam sorrir entre as folhas de banana eram expostas nos saraus da contracultura, pelas esquinas do Lampião e as malícias do Pasquim; as meninas do internato procuravam seu lugar sob o brilho do sexo e da vida burguesa; o iraraense vaticinava que a felicidade ia desabar sobre os homens. Ainda aguardamos.”