Representação, linguagem, som e Caio Blat são destaques da montagem do livro de Guimarães Rosa para o teatro no Sesc
Viver é muito difícil. Contar é ainda mais. Agora, apresentar e representar dramaticamente o não entendível é ainda mais dificultoso.
Duas dessas ideias são palavreadas por João Guimarães Rosa em seu magnum opus Grande Sertão: Veredas, enquanto a terceira frase é o ideal da obra no teatro. Ao mesmo tempo que utiliza a forma para evidenciar o quão dificultoso é representar o microcosmo sertanista no teatro, é a transposição desses dois ideais aos palcos que leva ao mote da montagem, exibida atualmente no Sesc Pompéia, na zona oeste de São Paulo. E o respeito à obra original é o que faz da apresentação, espetáculo-instalação da atriz e diretora Bia Lessa, uma das melhores adaptações literárias para o teatro. A peça será exibida até o final de fevereiro, com as sessões já esgotadas.
A história explora a condição social e filosófica dos sertanejos. Temas como amor e justiça cercam toda a narrativa. Similar às andanças da vida, é árduo e custoso entendê-la. Vários personagens fazem parte dela. Não é o físico que apenas importa. “A vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços”, declama Riobaldo, o personagem-narrador da trama.
Todo leitor de Rosa se depara com uma certa confusão complexa das palavras e fatos. Logicamente, a direção de Lessa não poderia deixar isso de lado em sua montagem. As representatividades são diversas, um personagem é feito por vários atores, e o fluxo de consciência frenético, junto à linguagem carregada de poesia do autor original, trazem um estranhamento para aqueles que se deparam pela primeira vez com o modo de narrar roseano.
A técnica também é destaque da montagem, além do conteúdo e das escolhas de direção. A utilização de fones de ouvido para acompanhar todo o espetáculo é exigida: o som não sai em caixas, como na maioria dos teatros. As trilhas e o sound design podem ser apenas escutados através dos fones. Entretanto, caso você queira escutar somente as falas dos atores, de uma forma mais crua e árida, basta só retirá-los. Os fones revelam uma intimidade, quase como se uma história estivesse sendo narrada próxima a ti e você esteja vivendo-a, enquanto a falta deles descortinam a ficção.
O segundo principal destaque da peça é Caio Blat, que interpreta Riobaldo. Sua constante conversa com o “Doutor”, vindo da cidade grande, que deve passar três dias em sua casa para escutar a história do jagunço, se faz por meio de frases do romance e representações feitas pelos outros personagens. Blat sobe a um microfone quando quer deixar claro que está no papel de narrador. Há momentos em que ele é apenas personagem e outros em que seus papéis se confundem.
A cenografia da peça é crua e simples – com objetos que remetem a corpos que podem ser mochilas, um lago ou o que a cena do momento necessita. As lutas corporais de gritos e sons de animais tipicamente regionais ambientam e completam o cenário mínimo. A luz é simples, mas feita de maneira que complementa todas as demandas da montagem.
Os mistérios, revelações e dúvidas que Guimarães Rosa levanta em seu romance são respeitados e evidenciados. A palavra se torna travessia. E a travessia é feita através da interpretação e presença corporal. “O demônio existe?”, sempre pergunta Riobaldo, sem fazer ideia que caminhos cruzar para chegar à resposta. Com mais perguntas do que respostas em mente, semelhante ao jagunço, é a situação que o espectador se encontra ao sair da peça. No fim das contas, viver não é algo entendível e contar é muito dificultoso. Agora, por que representar seria um trabalho simples?