Escultura de Richard Serra, no pátio do Instituto Moreira Salles, é provocação para o corredor cultural da Avenida Paulista
A mitologia grega conta a história de Eco, ninfa que, para impedir que Hera flagrasse seu esposo Zeus se divertindo com outras ninfas, ludibriou a deusa com uma longa conversa. Percebendo o engodo, Hera a sentenciou: “Só conservarás o uso dessa língua com que me iludiste para uma coisa de que gostas tanto: responder. Continuarás a dizer a última palavra, mas não poderás falar em primeiro lugar”. Tal maldição estragaria sua relação com Narciso, já que a ninfa nunca conseguia falar nada para o amado, apenas repetir seus últimos dizeres. Morrendo de vergonha, Eco refugiou-se nas cavernas.
Talvez a primeira impressão do visitante ao dobrar o pescoço para ver a escultura, instalada permanentemente nos fundos do Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, não seja a de emitir algum som para a ninfa repercutir. No máximo, um “uau”. O espanto é natural: atrás do restaurante Balaio, no térreo, em um quintal de cascalho que estava vazio até alguns dias atrás, agora estão fincadas duas imponentes lâminas de aço de 18,6 metros de altura, 15 centímetros de espessura e 70 toneladas cada. E há um detalhe quase imperceptível a olho nu, mas essencial: ambas as peças estão tombadas em 5 centímetros. Echo é uma obra do artista norte-americano Richard Serra.
Curioso pensar que tamanhos obeliscos estão tão escondidos na avenida mais movimentada de São Paulo, perceptíveis apenas aos pedestres da Rua Bela Cintra, atrás do instituto. Menos “exposição”, porém, não é acaso ou falta de planejamento. Apesar da obra só ter sido instalada agora, há um ano e meio da inauguração do IMS Paulista, Echo foi concebida desde o princípio, em 2014, na conversa entre Serra e os arquitetos do edifício. Ironia para a carreira de um artista famoso por suas intervenções monumentais e que sempre teve sérios conflitos com os arquitetos – especialmente quando vetaram a exposição de uma escultura sua no Centre Pompidou, em Paris.
Lorenzo Mammì, crítico de arte e curador do IMS até outubro de 2018, participou da abertura da obra e a relacionou a outros trabalhos similares da carreira do artista. Para o crítico, em comparação com as chapas quase da mesma altura expostas tanto no Grand Palais (Promenade, 2008), em Paris, como as instaladas no deserto do Catar (East-West/West-East, 2015), Echo é a mais coerente e desafiadora de suas produções recentes.
Essa é sua primeira intervenção na América Latina e é um desafio para os espectadores. É preciso atravessar um corredor para acessar os fundos do prédio e, assim que se chega lá, o corpo é desafiado. “O primeiro movimento exige os limites do pescoço para que possamos ver até onde vão aquelas placas. Entretanto, o espaço é muito pequeno e o limite imposto pelos muros não permite nunca que observemos a obra em sua totalidade”, disse a artista mineira Iole de Freitas sobre sua primeira impressão de Echo. O diálogo com a arquitetura vem justamente nessa recusa à observação total: do mirante no quinto andar, não é possível ver o térreo, apenas o topo da escultura no nível dos olhos.
Para Sônia Salzstein, professora-titular de História e Teoria da Arte da Universidade de São Paulo, a disposição da obra não poderia ser mais acertada ao conversar com a tradição do quintal luso-brasileiro. Espaço doméstico em extinção, é símbolo de certa distinção que herdamos do período colonial. Assim, Echo recusa holofotes propagandísticos ao esconder-se no maior corredor cultural da cidade, com vocação para tudo, menos para o status de cartão postal. “Imune” às imagens (nenhuma foto é capaz de transmitir a totalidade da escultura, muito menos suas nuances), a obra recusa o caráter repetitivo da fotografia – aspecto muito importante para monumentos – e faz um convite ao corpo.
Em uma época em que a modernidade “bela” caminha junto a uma certa ideia de transparência – vide os enormes edifícios de vidro de São Paulo –, as placas de aço negras operam nessa chave da contradição do seu entorno. Como se os blocos monolíticos oferecessem sua opacidade para melhor reflexão dos nossos dias. Um detalhe interessante é que o material usado nas placas, o aço corten, foi utilizado para que não haja corrosão interna, concentrando a ferrugem apenas na casca do bloco, o que permitirá à obra muitos anos de vida.
Em uma mistura entre ironia, melancolia e técnica (a instalação da peça exigiu muita engenharia e criatividade), Richard Serra explica “eco” que nomeia a obra – e cuja origem mitológica ESQUINAS recuperou na introdução. “Vejo duas placas verticais que, enquanto reverberam e uma ecoa na outra, não são exatamente a mesma coisa. E é isso que acontece com o eco, ele não é exatamente a mesma coisa”, diz Serra. “Quando o eco é refletido e volta até nós, pensamos ouvir a mesma coisa, mas é sempre um pouco diferente”.
Para causar essa impressão de desequilíbrio, além de afetar o labirinto do nosso ouvido exigindo que olhemos para cima, a rotação das placas não está exatamente paralela. Enquanto uma se inclina em direção ao centro, a outra se inclina na direção oposta. As possibilidades interpretativas são vastas.
Assim como em 2001: Uma Odisseia no Espaço, cujos monólitos apareciam para o homem logo após certa evolução tecnológica, as placas de Serra, por macabra coincidência, surgem em seguida ao maior desastre trabalhista e ecológico do Brasil, em Brumadinho. O lamaçal expôs os custos da nossa modernidade, de nossa tecnologia. Cauê Alves, professor do Departamento da PUC-SP, chamou atenção para a importância que a exportação do minério de ferro tem para a economia do País e lamentou a sintonia do ferro de Serra e do extrativismo da Vale. A escritora Noemi Jaffe, presente na plateia do evento, chamou atenção também para um “desperdício de material”, sublinhando certa ironia da obra: o mesmo material que nos desperta essas reflexões também sustenta a tecnocracia do capitalismo. Já diria o filósofo Walter Benjamin sobre a arte moderna e a sua relação com a barbárie…