Jair Naves: Vida com V maiúsculo - Revista Esquinas

Jair Naves: Vida com V maiúsculo

Por Larissa Basilio : maio 4, 2019

Jaime Silveira / Divulgação

Músico brasiliense, Jair Naves tem trajetória na cena independente das canções nacionais

Em um fim de tarde nublado, tipicamente paulistano, o músico Jair Naves esperava pacientemente no Café Fellini, na Rua Augusta. O local da cafeteria é anexo ao Espaço Itaú de Cinema, na altura do número 1470. Às 18h10, fui recebida com um amistoso sorriso pelo músico, que estava em uma mesa localizada em um dos cantos da cafeteria. Naves é um rapaz branco, com cabelos claros e camisa jeans. Estava com um headphone. Sobre a mesa, um pequeno caderno cuja letra eu não entendi muito bem, apesar do esforço e curiosidade.

Jair Naves nasceu na capital do Brasil, mas passou a infância em locais diferentes. A mãe, Maria Lúcia, era funcionária da Caixa Econômica Federal. Quando a instituição financeira decidia transferi-la, a família mudava de cidade. Em Brasília, Naves só ficou até os 5 anos de idade, passou um período em São Paulo, retornou a Brasília, teve uma breve estadia no Rio de Janeiro e voltou definitivamente a São Paulo aos 9 anos. Ele conta que, até os 12, mudava de colégio quase todos os anos – sensação descrita como um estado de movimento permanente. “Alguém me perguntou esses dias quem eram meus amigos de infância. Meus amigos de infância eram meus amigos de faculdade, porque foi quando consegui fincar raízes maiores mesmo”, afirma.

A relação de proximidade com a música surgiu ainda na infância. Ele relembra que, segundo sua família, na época da novela Roque Santeiro, veiculada em 1985 pela Rede Globo, ficava encantado com a música Mistérios da Meia-Noite, interpretada pelo cantor paraibano Zé Ramalho. “Eles falavam que eu adorava essa música. Eu era pequeno, tocava isso, ficava vidrado na TV, antes mesmo de saber o que ele estava querendo dizer com aquela música. Até hoje eu não sei”, ri mostrando o sorriso. O cantor ainda comenta que, por meio dos irmãos mais velhos, acompanhou o boom do rock nacional, representado em sua memória por discos como Cabeça Dinossauro, da banda paulista Titãs, e Dois, da Legião Urbana, ambos de 1986. As músicas soavam muito contestadoras, criando questionamentos sobre a sociedade. O irmão tocava violão e despertava interesse sobre música em Naves. Tudo isso ainda longe de qualquer expectativa profissional.

Jair Naves possui quatro irmãos. Um por parte de mãe e três mulheres por parte de pai. Ele conta que cresceu mais próximo do irmão, uma vez que as irmãs moravam em outro lugar – o pai faleceu muito cedo. Também fala que a mãe gostava de samba, principalmente do sambista carioca Emílio Santiago, e relembra de quando ela o levava ao colégio cantando os sambas, animada. Apesar do contato com sons de todos os gêneros, não havia na família nenhum músico de carreira.

Jaime Silveira / Divulgação
Jaime Silveira / Divulgação

A geração dos anos 1990, da qual Naves faz parte, foi marcada pelo surgimento da MTV no Brasil e, ao mesmo tempo, dificultada pela má qualidade do sinal na televisão. Os adolescentes da época ficaram fascinados com o produto musical oferecido, impulsionando o surgimento de uma leva totalmente nova de bandas. Os festivais, transmitidos pela TV aberta, também mexiam com o imaginário adolescente. Rock in Rio e Hollywood Rock trouxeram para o Brasil bandas como Alice in Chains, L7 e Nirvana.  A relação com a música se estreitava, mas ainda era um terreno distante. “Para mim, parecia que só quem era bonito como Axl Rose ou Kurt Cobain poderia fazer música”, afirmou. Jeder Janotti Junior e Simone Pereira de Sá, pesquisadores responsáveis pela apresentação da coletânea do livro Cenas Musicais, afirmam que a cena musical é “um modo de construir cidades e músicas: mesmo que essas sejam urbes imaginárias e as sonoridades agregados musicais disformes”.

Na adolescência, por volta dos 15 anos, Naves começou a descobrir e frequentar as cenas independentes e passou a acompanhar bandas em espaços pequenos. “Pareceu muito mais acessível”, afirma. Aprendeu a tocar guitarra aos 16 anos, uma idade considerada mais avançada para a prática, comenta. Mesmo assim, a forma como tudo se desenvolveu rapidamente é peculiar. O segundo professor de guitarra do músico o convidou para tocar na banda dele profissionalmente. A banda Okotô, com uma pegada entre punk e metal, foi a primeira experiência de Naves, na qual permaneceu até os 20 anos.

Começou nas aulas de guitarra por acidente. O professor era André Fonseca, guitarrista histórico e responsável por gravar os sons do instrumento no álbum Corredor Polonês – filho único da banda de pós-punk experimental Patife Band. O projeto é considerado por Naves o maior álbum dos anos 1980. Okotô era outra banda de Fonseca, na qual Naves apostou suas fichas jogando indiretas no professor para que ele o convidasse para tocar. “Eu falava que tinha comprado um baixo para ver se eles me chamavam”, conta, rindo. As investidas deram certo. Era como ganhar na loteria. “Foi como um dia de princesa para mim, eu tocava com as bandas que eu amava”.

Em paralelo, lidava com as pressões comuns atribuídas aos jovens, como a faculdade. Iniciou o curso de Psicologia, mas desistiu após um ano. Queria uma vertente mais filosófica, que só era apresentada depois de incessantes aulas de Estatística e Anatomia. Entrou no Jornalismo, curso em que chegaria até o último semestre, sem concluir: a banda que ele liderava, a Ludovic, tinha acabado de lançar o primeiro álbum, Servil. Era 2004 e a experiência de palco provocou um efeito hipnótico no jovem. “Eu marcava tudo quanto era show, em qualquer lugar, em qualquer cidade do interior, e faltava muito nas aulas. Eu falei: ‘não estou sendo muito legal com meu grupo, vou largar’”, justifica. A pressão por uma profissão, no entanto, não era para menos: uma irmã é professora e três irmãos, advogados, profissão que a mãe também exercia. Aos poucos, convenceu a família de que “viver de música” era viável, apesar de difícil.

Com o início da era da internet, o músico usava chats para conhecer e permanecer em contato com pessoas que gostavam de música. Foi uma fase marcada pelo uso de nicknames estranhos derivados de bandas e filmes, referências culturais da época. Segundo Naves, era tudo muito cafona, ingênuo e puro. Antes mesmo dos computadores, a comunicação entre pares de música era feita por cartas e classificados em revistas temáticas.

Patrícia Caggegi / Divulgação
Patrícia Caggegi / Divulgação

A formação estável da Ludovic demorou para acontecer. A demo inicial foi gravada com pessoas aleatórias. Primeiro, o baterista Hugo Falcão foi chamado. Além da Ludovic, Falcão fazia parte de outra banda, a Shed, que tinha Zeek Underwood na guitarra. Quando a Ludovic ficou sem guitarrista, Naves convidou Underwood para assumir o posto. Eduardo Praça, “amigo de um amigo” da escola, foi o último a entrar. No início da banda, Praça tinha apenas 15 anos.

O começo foi difícil. Naves não queria e nem se considerava cantor. “Eu era mais o letrista, compositor”, afirma. “Nós bebíamos muito antes, ficava uma coisa meio desengonçada, mas foi bem bom”. Flertavam com diversos circuitos do hardcore ao de metal. Naves frequentava locais para sondar onde a banda poderia tocar – e reforçar o sucesso na cena.

Idioma Morto, segundo álbum da banda, foi lançado em 2006. Diferente do anterior, foi gravado com apenas uma formação: Jair, Edu, Zeek e Júlio Santos, baterista recém-saído do Dance of Days. O álbum com a capa dos lírios tinha uma preocupação especial com as letras, com músicas que tinham letras maiores e com poucas repetições. A banda se preocupava com a aceitação que o projeto teria. Uma parcela dos fãs criticou o produto, dizendo que parecia que a banda estava declamando poesia em cima do instrumental. “Na real, era meio que isso mesmo”, admite Naves. Enquanto Servil tinha 11 músicas cruas e com letras curtas, Idioma Morto mostrava nuances sonoras e outras melodias, como as faixas Unha e Carne e Sob o Tapete Vermelho.

Naves conta que a transição entre a Ludovic e o trabalho solo foi difícil. Era uma banda corajosa: tocava em qualquer local por valores mínimos ou mesmo por cerveja. Os seus integrantes queriam viver da banda, mas não tinham a disciplina necessária, o que acumulou alguns estresses entre eles. No início da composição do terceiro disco, ficou claro para todos que seguiam caminhos diferentes. A banda acabou pacificamente.

Ludovic, a banda na qual Naves permaneceu mais tempo, terminou de maneira pacífica
Patrícia Caggegi / Divulgação

O palco dos dois álbuns da Ludovic serviu para a gravação do EP que lançaria Naves na carreira solo. O TC Stúdio era confortável para o músico por se tratar de um lugar comandado por uma mulher, Tereza Miguel. Ela teve de se acostumar com quatro jovens gritando e tocando alto – e depois apenas com Naves – já que gravava apenas bandas de forró. O projeto de Araguari levou um ano e o objetivo era se distanciar da Ludovic. “Não fazia sentido para mim cantar músicas da ex-banda”, explica.

Quando o EP foi lançado, era a hora de excursionar. Arranjou uma banda, que foi mudando ao longo do tempo. Um dos novos integrantes, Renato Ribeiro, está com Naves até hoje. Além dele, Thiago Babalu se juntou para a criação do primeiro álbum E Você se Sente numa Cela Escura, Planejando a sua Fuga, Cavando o Chão com as Próprias Unhas. Era algo versátil, tanto nas composições quanto nas letras. Naves conseguiu se desligar da Ludovic e alcançar outros patamares. Foi um projeto que abriu portas para que tocasse em novos lugares. O álbum lhe rendeu o prêmio Revelação do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), em 2013. No trabalho solo há uma busca mais filosófica – e talvez adulta – sobre o que é o mundo.

Em seguida, o próximo álbum, Trovões a me Atingir, foi marcado por participações especiais. As gravações aconteceram nos estúdios El Rocha e Kalundu, em São Paulo, por meio de um projeto de crowdfunding. Bárbara Eugenia, Beto Mejia, Camila Zamith, Guizado, entre outros, reforçaram o time de peso que participou do álbum. O financiamento coletivo, segundo o brasiliense, é um recurso que ele não utilizará novamente tão cedo, já que lidar com o dinheiro e com as expectativas dos outros é muito complicado.

Rente é o último disco de Naves, lançado em maio de 2019 (clique na imagem para escutar)
Divulgação

Os shows solo são mais difíceis. Apenas com violão e o cantor sozinho sobre o palco tornam o ambiente mais hostil. É preciso lidar com o barulho das pessoas, quase como uma disputa de espaços sociais, e saber também conduzir a apresentação. Na Ludovic, tudo era diferente. Com o retorno aos palcos em 2015, a banda voltou com toda a força para a comemoração de dez anos do lançamento de Servil. Foi uma forma de finalizá-la em grande estilo. Naves crê que esse tipo de coisa não acontecerá novamente.

Naves já realizou uma parceria com a esposa, Britt Harris, a qual chamaram de NavesHarris. A dupla folk lançou no ano passado seu primeiro álbum, A Flash of Feeling. Segundo Naves, pertence muito mais à esposa do que a ele. As músicas do casal transitam por uma vibe mais otimista e calma. Os dois se conheceram e rapidamente começaram a namorar, mas Britt não morava aqui, era dos Estados Unidos. Decidiram viver juntos e, tendo o visto negado, Naves continuou no Brasil e Britt veio de mala e cuia para cá. Bijou Monteiro, curadora musical do Teatro da Rotina e amiga do casal, descreve o cantor brasiliense como “um coração sereno, um irmão e um dos maiores expoentes musicais brasileiros”.

O músico não gosta do termo “fãs”. Tenta personalizar ao máximo as relações com eles, já que criam uma rede em que todos sabem um pouco da vida do outro e se aproximam. Naves acredita que saber quem são as pessoas que escutam o que ele faz é o diferencial. “Está tudo muito difícil, fazer algo no Brasil é muito difícil, principalmente expressões artísticas. Há um tempo houve uma onda crescente de uma opinião equivocada de que arte é para vagabundo”, critica. “O que eu tenho realmente a dizer é: continuem, não parem, o valor das coisas é muito maior que o monetário. Continuem, resistam, vale a pena”.