Sobreviver como mulher negra fez Priscilla Feniks enxergar no pássaro da mitologia egípcia um espelho: às vezes a vida pode exigir que ressurjamos das cinzas
No mundo do rap nacional, a MC Priscilla Feniks considera que o processo de aprendizado com o ritmo e a poesia segue cada vez mais profundo. Aos 35 anos, seu encontro com a cultura hip hop vem de longa data.
Feniks teve um momento em particular que a apresentou à cultura hip hop: ver o rapper Thaíde e o grupo SampaCrew dançando na televisão foi o suficiente para que ela convencesse a si mesma de que era exatamente aquilo o que mais queria fazer. “Há muito tempo atrás, vi uma matéria sobre a São Bento [estação do metrô], e tava o Thaíde e o SampaCrew dançando. Depois que vi, aquilo não saía da minha cabeça”, conta.
Para a rapper de Porto Alegre, foi questão de tempo para que o envolvimento com o hip hop passasse a ser cada vez mais intenso e abrisse uma porta atrás da outra. Por causa desse maior horizonte de possibilidades, a MC conseguiu explorar mais experiências profissionais e algumas, inclusive, foram além da música. Em São Paulo, por exemplo, Priscilla fundou, em 2008, o Baile Soul Brasil, um evento de rua responsável por reunir vários coletivos de dança na Rua 24 de Maio, localizada no centro da cidade. Mais tarde, o projeto chegaria a seu fim por falta de recursos financeiros.
Mesmo sem o Baile Soul Brasil, a dança e o rap estão longe de serem os limites das formas de expressão da MC. No teatro, Feniks já estreou peças teatrais com a Companhia do Retiro dos Artistas, do Rio de Janeiro. Isso, com certeza, contribuiu para o cargo que ocupa atualmente no “Programa Conectad@s”, produzido no Centro Cultural São Paulo para evidenciar o trabalho de cantoras brasileiras. As funções são muitas e os ganhos, também, mas não são só esses os acontecimentos na vida de Priscilla até agora.
Do break ao rap
2001. Aspirante a b-girl, mulher dedicada ao breakdance. Essa época define o início da caminhada de Priscilla na cultura. Segundo a MC, foi após um entrosamento maior com pessoas já imersas nesse mundo que os caminhos até a realização de seu desejo de dançar começaram a ficar menos difíceis. “Conheci uma galera da rua e a gente sempre trocava uma ideia. Um dia um dos meninos falou que a irmã era b-girl e eu não acreditei”, relembra. “Era a b-girl Cris […] Ele apresentou a gente e ela já era bem mais velha, uma das protagonistas mesmo, se não a protagonista de toda a cena do rap de Porto Alegre. Ela que me mostrou o break”.
Mas um incidente acabou comprometendo a continuidade dos passos da aspirante a b-girl. Por dançar e jogar vôlei ao mesmo tempo, Priscilla não pôde seguir praticando o break. Seu joelho não aguentou e ela não conseguia mais dançar e desenvolver passos. No entanto, ao mesmo tempo em que as portas da dança se fecharam, as do rap se abriram.
Feniks define o momento em que as rimas entraram definitivamente em sua vida como algo inesperado, sem hora certa. O rap simplesmente impregnou nela. Mas, mesmo sem um divisor de águas marcante nesse sentido, para a rapper, as coisas funcionaram como costuma ser com todo mundo que se esforça – toda longa caminhada em um pomar rende boas colheitas.
Entre as músicas da MC já gravadas e publicadas para conhecimento público, estão Forasteiro da rua, Só a gente sabe e Nem eu, nem você, que renderam 5.343 visualizações no canal Priscilla Feniks do Youtube, com quase 200 inscritos. No entanto, a rapper, que tem um bom engajamento e canções já reconhecidas (embora ainda falte bastante estrada para um status de visibilidade justo), teve de passar por poucas e boas antes de fidelizar um público, fazer o próprio nome e produzir livremente.
Adentrar as experiências vividas por MC’s como Priscilla é saber que contar nos dedos os dissabores do machismo no meio do hip hop é uma tarefa impossível. De relatos sobre a má vontade de produtores até ser praticamente ignorada num show mesmo fazendo parte do line-up, a gaúcha revelou como as barreiras impostas pelo patriarcado tentaram fazer com que sua carreira não fosse para frente. Ela tinha que provar toda hora que sabia rimar, que tem flow, ritmo. Quando se trata do convívio profissional com mulheres negras nesta área, o buraco fica bem mais profundo.
“Eles criam diversos estereótipos para a mulher preta. Falam que nós somos barraqueiras e que fica impossível trabalhar porque a gente quer causar confusão com qualquer coisa. Estereótipos que a sociedade cria para colocar as mulheres negras no lugar delas e os homens do rap usam isso muito bem. Eles não fogem desse privilégio”, diz.
Segundo a rapper, mesmo podendo exercer o que seu coração diz ser certo, ser uma mulher negra num mundo completamente dominado por homens demandou uma boa carga de luta desde o início de sua carreira até aqui – ainda que, agora, o panorama tenha melhorado consideravelmente de acordo com a MC. “‘Que que cê vai rimar, mano? A gente já faz isso. Faz o que a gente não faz’. Era isso que eles falavam. ‘Faz diferente. Fala de amor, de coisa de mulher’”, conta.
Efeitos da branquitude
Ser mulher e escolher insistir para existir no meio do hip hop é ter de lidar com vários obstáculos ao mesmo tempo. Além dos apontamentos machistas e estereotipados feitos para mulheres como Priscilla, a rapper ainda deve lidar com elementos do discurso social que tornam cada vez mais difícil a remada de MC’s negras contra a corrente. Entre eles, a branquitude.
Segundo o texto Negros de pele clara, escrito por Sueli Carneiro, autora ativista no Movimento Negro do Brasil, a branquitude é o respaldo do fenômeno do colorismo, que mascara a identidade negra por conta dos tons “não tão escuros” de pele. Isso, porque a sociedade tem uma ideia fixa de identidade racial que desconsidera a miscigenação forçada pela qual o país passou.
Quando se vive o fenômeno do colorismo na pele (literalmente), o racismo coloca as pessoas em nível hierárquico de tolerância: quanto mais escuro o tom, menor a passividade branca. Quanto mais claro, maior a tolerância – o que não significa que a opressão será menos dolorida. Dessa forma, justamente por não ter a pele escura é que Priscilla sofre um racismo expressado de outras maneiras – que, inclusive, não são entendidas por muitos como uma forma de opressão racial.
No raciocínio da rapper, entretanto, faz sentido que muitas pessoas negras estejam alienadas em relação a esse comportamento da branquitude por conta da falta de autoconhecimento. “Eu nunca me entendi assim porque em casa não tinha um diálogo para me dizer que sou negra. Até porque, talvez, o entendimento da minha mãe também não tenha sido esse”, argumenta.
Mesmo que tenha havido uma demora considerável para que Priscilla se enxergasse como uma mulher negra, a descoberta invisibilizada pelas relações inter-raciais não demorou muito para vir à tona por conta do racismo. “No momento em que você assume e diz que é negro e que, apesar de mestiço, o predominante são os traços negros, os brancos falam que você não é tão negro assim”, diz. Quando tenta ser branca – alisar cabelo, usar lente colorida, tentar seguir o padrão –, falam que ela não é isso. Mas quando Priscilla se coloca como preta e se empodera, também dizem que essa não é sua identidade.
Uma verdadeira ferramenta
Os pesares não são poucos, mas para Priscilla, mesmo com as dificuldades implantadas pelas impressões sociais com o gênero – quando representado por grupos femininos no geral e, especificamente, por mulheres negras –, não dá para deixar de reconhecer o papel essencial que esse tipo de música teve (e ainda tem) na sua e em outras vidas.
Ressaltando um caráter que vai além do recreativo, Feniks colocou as rimas e as batidas sob um holofote que as ilumina como verdadeiras ferramentas de resgate de uma alienação que é imposta. “Foi com o rap que a gente começou a entender a autoestima do negro da periferia e dizer: ‘Samo marginal? Então samo’. E vamos lutar pelos nossos direitos”, declara.
Na cabeça da MC, o rap não é só um escape para muitos pedidos de socorro. O gênero é, também, uma oferta de diversidade profissional. Hoje existem vários designers de hip hop, assessores de imprensa, jornalistas que começaram com o rap e acabaram não só desenvolvendo a arte em si, mas também indo para outras áreas. Tudo começou no rap.
É mais do que nítido que o ritmo e a poesia têm, juntos, significados importantes na vida de Priscilla justamente por terem causado grandes efeitos sobre ela. Mas, além de todo o sentido que o ritmo tem na vida da MC, há um ainda mais importante: o rap veio para ser uma ferramenta de luta e busca por direitos.