Atuando na linha de frente contra o novo coronavírus, Márcio Lima Pinheiro relata caos no sistema público de saúde da capital do Amazonas
Reportagem publicada simultaneamente no portal UOL
Corria o plantão de primeiro de abril no Hospital 28 de Agosto, na zona centro-sul de Manaus, quando o médico Márcio Pinheiro Lima sentiu falta de ar e precisou buscar apoio. “Sentei um pouco e tossi. Como sou asmático, não imaginei que pudesse ser outra coisa”. Uma colega se espantou com a prostração e receitou tamiflu, amoxicilina e clavulonato. Também mandou Márcio fazer exames para covid-19. No dia 3 de abril, veio o resultado – positivo – de uma versão que o médico classifica como “leve” da doença.
O histórico de comorbidade afastou a moderação dos sintomas. “Eu colocava a máscara N95 e não conseguia dar cinco passos sem sentir falta de ar. Foram três dias assim. Tentava lembrar o dia certo dos primeiros sintomas, olhava para o calendário e pensava: ‘será que a doença vai piorar agora?’. Do quinto ao décimo dia é quando surgem mais complicações”, relata. “É angustiante conhecer com detalhes a evolução do problema. Vejo isso todo dia”.
Recém-formado em medicina pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Márcio, de 22 anos, trabalha em diversos hospitais da rede pública de Manaus. O sistema colapsou devido à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus. Com 161 mortos e 1.897 casos confirmados até sábado (18), o Amazonas tem a mais alta taxa de incidência da doença no país. Apenas a capital possui leitos de UTIs, que já estão 100% ocupados nos hospitais de referência. No fim da semana, circularam vídeos mostrando o desespero por atendimento médico em unidades públicas de saúde.
Márcio atua nas chamadas “salas rosas”, lugar onde os pacientes com sintomas respiratórios ficam em observação nos pronto-socorros da rede pública. As equipes estão desfalcadas. Cerca de 10% da força médica de Manaus deixou de trabalhar na cidade por atrasos nos salários, relata o Conselho Regional de Medicina do Amazonas. E a covid-19 também tem gerado afastamentos. “É impossível estar no meio médico nesse momento e não conhecer alguém que foi infectado, mesmo que tenha tomado as devidas precauções”, diz. Segundo o médico, há corrida para confirmar o diagnóstico. “A gente fica perguntando um para o outro: ‘onde é que você consegue fazer teste’? ‘Sabe se tem algum lugar com uma fila de espera menor?’”.
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Engrossando a estatística dos afastados pelo novo coronavírus, Márcio passou duas semanas em isolamento. Na volta ao trabalho, domingo passado (12), viu o número de casos explodir. “Antes da licença, era possível ficar algumas horas sem atender pessoas com sintomas respiratórios. Quando voltei, já tinha sala de observação lotada”.
Com a falta de leitos em Manaus, apenas os pacientes graves são admitidos. Vários são dispensados e voltam para casa com receita médica e instruções para retornar em caso de piora. “Dói no coração. Você sabe que aquele paciente daqui a dois, três dias pode piorar bastante. Mas, no momento, tem uma sala inteira de pacientes que já estão em situação grave e não há recursos para atender todos”, conta o médico, com a voz embargada.
Márcio diz que pessoas fora do considerado grupo de risco tem chegado bastante aos hospitais, e que a rápida piora dos sintomas da covid-19 representa um desafio extra para os profissionais de saúde. “Você vê pacientes que nunca imaginaria. Gente com 30, 40 anos com comprometimento pulmonar. Num momento, estão bem. Meia hora depois, estão desesperados pedindo ajuda porque a saturação de oxigênio caiu de 96% para 80%. Paciente que ontem estava conseguindo respirar bem e hoje vai para o oxigênio. Paciente que chega no plantão e uma hora depois tem de ser entubado. É um ciclo que vai repetindo dia após dia. É cansativo. É muita gente”, completa.
Outro fator complicador é a falta de conhecimento sobre a covid-19. Como se trata de uma doença nova, a cada semana, novas recomendações são sugeridas. “Isso impacta a rotina hospitalar. A gente também está aprendendo a lidar com a situação — não só com a doença, mas como tratar, como lidar com o paciente, o que fazer com a pessoa quando ela chega, quantos técnicos, quantos enfermeiros e quantos médicos têm de ficar ali acompanhando”, explica. “Não preparam você para se ver numa linha de frente de pandemia. A faculdade não te prepara para isso. Ninguém nunca prepara você para isso”.