Segundo lideranças, coronavírus já matou 15 indígenas e traz à tona lutas históricas da comunidade
Publicado simultaneamente no Diário do Centro do Mundo (DCM). Compartilhado pelo escritor Daniel Munduruku
“Viver em comunidade é motivo de orgulho, porque garante a sobrevivência cultural e econômica. Na pandemia, se tornou o ponto mais fraco das populações indígenas”, afirma o escritor e professor Daniel Munduruku. Com a chegada do novo coronavírus nas aldeias e levando em conta a forma compartilhada como vivem e se organizam nelas, há a preocupação em torno da contaminação em massa. “Somos um povo de memória. Toda vez na história do mundo em que aconteceu uma pandemia como essa, os que mais sofreram foram justamente as populações mais desprovidas de cuidado, os mais frágeis por viverem em outra realidade”, pontua Munduruku.
Povos indígenas e o histórico de negligência
Para entender o impacto do novo coronavírus nos povos tradicionais, ESQUINAS ouviu Daniel Munduruku e Sônia Guajajara, importantes lideranças indígenas. O governo de Jair Bolsonaro é amplamente criticado por seu desprezo a essas comunidades e por negar seus direitos.
Guajajara protesta: “O governo segue com um comportamento criminoso, negligenciando a proteção dos índios, descumprindo todas as medidas até mesmo da Constituição Federal, que vê os povos indígenas como grupo vulnerável, e mesmo assim não tem feito nada para garantir a saúde dessa população”. O desmonte do Estado também é alvo de crítica. “A Funai há muito tempo não é um órgão indigenista”, afirma. “Hoje, atua contra os povos para atender os interesses do governo”.
A saúde indígena foi pauta de governos petistas, como o de Lula e de Dilma, que, segundo Daniel, davam atenção específica ao assunto. “As comunidades têm direito a um tratamento de saúde diferenciado. Isso não é privilégio, é um dever adquirido e conquistado”, afirma o professor. A estrutura existe. Segundo Guajajara, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, tem uma rede de Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os Dseis. “Mas hoje não há equipamentos de segurança individual para as equipes de saúde, que também estão expostas. Em alguns casos, os profissionais se negam a ir para as aldeias por falta desses EPIs”, denuncia. Ela ainda afirma que a Sesai nega atendimento aos índios que, como ela, vivem em contexto urbano, e só contabiliza casos e óbitos vindo das aldeias, o que agrava a questão da subnotificação de casos de coronavírus em indígenas.
ESQUINAS contatou a Sesai para questionar as questões pontuadas por Guajajara, como a falta de equipamentos de proteção individual para os agentes de saúde que atendem indígenas, mas até a data da publicação desta reportagem não obteve resposta.
“Com base em informações que recebemos das bases de apoio, constatamos um aumento de 111% na contaminação por coronavírus nos últimos 4 dias (23/4 – 27/4) e um aumento de 50% no número de óbitos no mesmo período”, afirma a líder. Segundo ela, até o dia 28, já havia 15 óbitos de indígenas por covid-19. “Esse é o número real, e pode ser ainda maior. Não temos como saber ao certo pela falta de testes”, diz. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) alerta que o número de índios que morreram pela doença saltou 800% em 15 dias durante o mês de abril. A associação recomenda que indígenas atendidos fora das aldeias exijam o registro do nome de seu povo no cadastro do SUS.
Frente ao descaso do governo, cabe aos povos fazer o isolamento valer dentro de suas aldeias, mas é necessário que eles tenham condições suficientes para sobreviver. “Se a população não-indígena passa necessidade, imagine como é para as comunidades mais fragilizadas e isoladas da sociedade”, diz Munduruku, justificando o grito de socorro de lideranças indígenas, como o cacique Raoni. “Muitos têm dificuldades o ano inteiro. Numa situação em que não podem vender seus artesanatos e receber visitas, de onde tiravam algum dinheiro para comprar o mínimo necessário, é claro que está existindo uma carência muito grande”, completa. Durante o mês de abril, inclusive, muitos índios são contratados por prefeituras, escolas e instituições como SESC e SESI para promover atividades ligadas à temática indigenista, o que não pôde acontecer este ano.
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Tirando vantagem
“A estratégia de orientação é: ninguém entra e ninguém sai. Mas não temos como controlar os invasores, que são os principais vetores de contaminação”, afirma Guajajara. Eles aproveitam o momento turbulento em que não há patrulhamento das terras para entrar em territórios indígenas com o intuito de desmatar, sequestrar animais, praticar biopirataria e garimpo e extração mineral ilegais. “É muito preocupante. A própria política permite a exploração, esse governo é uma piada de mau gosto para todos que prezam pela vida, ele [Bolsonaro] é um profeta da morte”, diz Munduruku. Segundo ele, há, ainda, “pessoas infectadas ou com suspeita de covid-19 agindo de má intenção e invadindo aldeias para levar o vírus para dentro das comunidades”.
O Ibama diz estar enviando menos agentes de campo para combater crimes ambientais na Amazônia. Esse afrouxamento da segurança já é visível nos dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que mostram que o desmatamento na porção amazônica brasileira em março de 2020 foi 30% maior que o do mesmo mês de 2019. “Nós estamos cumprindo a quarentena e eles estão aproveitando para invadir. O governo, ao invés de adotar medidas para impedir, está enfraquecendo os órgãos e, de certa forma, autorizando essas invasões”, afirma Guajajara. “Quando alguém tenta tomar atitudes para coibir essas invasões, é punido, como o ex-diretor do Ibama que fez uma operação para fiscalizar e expulsar os invasores ilegais em Roraima e foi exonerado”, completa, relembrando o caso de Olivaldi Azevedo.
Gustavo Silveira, coordenador do Programa Amazonas da Operação Amazônia Nativa (OPAN) reforçou que as medidas tomadas pelo governo vão de encontro às causas dos índios: “Saiu uma instrução normativa da Funai, que é quase uma regularização da grilagem em terras indígenas”, disse, em referência à Instrução Normativa nº9/2020, emitida dia 22/4, que permite a invasão e até comercialização de terras indígenas ainda não homologadas pelo presidente, que, de acordo com a própria Funai, são 237. “Com isso, dá pra ter uma ideia de como está sendo o política em relação aos índios. A questão do coronavírus associada à maneira que os governantes olham pras questões indígenas é um barril de pólvora”, finaliza.
Abril e a luta indigenista
O Abril Vermelho é o mês da intensificação das lutas indigenistas.”O vermelho vem do sangue, para explicitar o descaso e a violência que vêm atingindo os povos indígenas. E é também o vermelho do urucum, que representa a resistência”, explica a líder. O mês de abril é importante no calendário indígena porque é quando acontece o Acampamento Terra Livre (ATL), evento organizado pela Apib para fortalecer as denúncias históricas das comunidades e pressionar o governo em Brasília. “Se a gente não pode se reunir presencialmente em Brasília, como fazemos há 16 anos, estamos ocupando as redes sociais através do Acampamento Terra Livre Online, nos posicionando e fazendo as denúncias de omissão deste governo em relação aos povos indígenas”, diz Guajajara.
O ATL 2020 foi adaptado ao ambiente digital com apoio do Mídia Ninja e, do dia 27 ao 30 de abril, contou com debates e atividades como palestras por videoconferência e uma mostra de filmes que atingiu mais de 63 mil acessos. A líder indígena conta que “tem sido um desafio, mas ao mesmo tempo quebra muitos paradigmas, pois muitas pessoas ainda acham que o lugar dos índios é só nas aldeias, que se você tem um celular quer dizer que você não é mais indígena. Nós temos equipes espalhadas pelo Brasil inteiro e estamos mostrando que é possível, sim, mobilizar as pessoas pelas redes sociais”.