A história da seita do médium João de Deus: papo com Chico Felitti sobre A Casa - Revista Esquinas

A história da seita do médium João de Deus: papo com Chico Felitti sobre A Casa

Por Erich Mafra : maio 18, 2020

O jornalista Chico Felitti, autor de Ricardo e Vânia e Mulher Maravilha, fala sobre o processo de apuração e escrita de sua nova obra, A Casa, que conta a história da seita do médium João de Deus.

O jornalista fala sobre sua carreira e o curioso processo de apuração de seu mais novo livro, que conta a história da seita de João de Deus

Lançado no começo de abril, A Casa, livro escrito pelo jornalista Chico Felitti, ambienta o leitor no universo místico de Abadiânia (GO), cidade que recebeu a seita de João Teixeira de Faria — mais conhecido como João de Deus — no fim da década de 1970. Embora o texto acompanhe a trajetória de Faria desde sua infância até a condenação a 40 anos de prisão pelo estupro de cinco mulheres, o autor deixa claro: sua intenção nunca foi “escrever uma biografia” do homem que rendeu mais de 300 denúncias de abuso sexual ao Ministério Público.

O livro revela uma série de causos que mostram como a essência da Casa Dom Inácio de Loyola — a “igreja” da seita — sempre foi questionável. Além das centenas de abusos cometidos na sala do médium, Chico expõe fatos que ligam Faria e muitos dos seus fiéis e capangas a orgias, tráfico de material radioativo e a crimes locais. A obra também retrata os efeitos econômicos causados pela ascensão e queda da Casa em Abadiânia. João de Deus

No campo literário, o jornalista Chico Felitti também trabalhou em projetos como o livro Ricardo e Vânia (sobre Ricardo Corrêa da Silva, vulgarmente conhecido como Fofão da Augusta), que rendeu a ele o Prêmio Petrobrás de Jornalismo, e o audiobook Mulher Maravilha (biografia de Elke Maravilha). João de Deus

Em entrevista à ESQUINAS, Chico debate sua carreira e conta sobre o processo de apuração e escrita em torno de A Casa.

ESQUINAS ANTES DE ESCREVER A CASA VOCÊ LANÇOU RICARDO E VÂNIA E MULHER MARAVILHA, BIOGRAFIAS DE FIGURAS QUE, DIFERENTE DE JOÃO TEIXEIRA DE FARIA, SEMPRE TE ATRAÍRAM. O QUE TE CHAMOU ATENÇÃO NELAS?

Em algum momento da minha vida eu decidi que talvez o meu nicho fosse escrever sobre essas pessoas socialmente segregadas [Ricardo e Elke Maravilha] que admiro. Estava feliz nisso, até aparecer A Casa.

 

ESQUINAS A IDEIA DO LIVRO SURGIU DE SUA EDITORA, A TODAVIA?

Exato! Eles me atazanaram. Eu queria dar um tempo; já estava no meio da apuração de Elke, que foi feito para outra empresa. Depois de uma reunião tentando me convencer, o pessoal da Todavia começou a me mandar fotos do João de Deus sem parar. Dei risada e disse que tudo bem. Então, eles me ofereceram a viagem até Abadiânia, sem compromisso, para eu ver se encontrava algum recorte para o livro. Eu sabia que não queria fazer uma biografia de João e até hoje acho que essa foi uma decisão acertada. Quando eu cheguei lá, enlouqueci. A Todavia jogou a isca muito bem.

 

ESQUINAS NO DIA A DIA DE UM JORNALISTA NA REDAÇÃO, É COMUM QUE ELE FAÇA PAUTAS DE QUE NÃO GOSTA. MAS ESCREVER UM LIVRO É OUTRA HISTÓRIA. A ESCRITA DE A CASA FOI MAIS DIFÍCIL DO QUE A DE OUTROS TRABALHOS?

99% da minha vida em redação foi bucha e pegar coisa horrorosa que eu jamais faria. Mentira, estou sendo bem dramático, não foi nem 10% (risos). Felizmente, nos lugares que trabalhei havia uma liberdade imensa para propor nossas pautas. Mas, nesse caso de um livro, seria um ano, algo bem diferente. Eu não tenho muito problema em começar a escrever, para ser sincero. O entrave maior de A Casa era a linearidade. As informações pareciam ter explodido. Elas estavam em todos os cantos e eu precisava juntar as peças do quebra-cabeça. Só descobri na última semana de trabalho uma das informações mais importantes que está no começo do livro. Eu precisei ficar escrevendo e reescrevendo capítulos sempre que conseguia entrevistas ou provas. Foi bem próximo do prazo que rolou a entrevista com a mulher que fingia ser paraplégica. Foi uma experiência bem diferente de escrever Ricardo e Vânia. Lá a história tinha um fio condutor.

 

ESQUINAS NO CAPÍTULO “JOÃO DE DEUS E EU”, VOCÊ ABORDA OS RECEIOS DE SE ENVOLVER NO PROJETO E DRAMAS PESSOAIS, QUE SUBVERTE A LÓGICA DE QUE O JORNALISTA DEVE SE MANTER DISTANTE DE SUA NARRATIVA. O QUE MOTIVOU A INCLUSÃO DESSE CAPÍTULO? 

Acho que ele era incontornável. Eu, como você, venho de uma escola de objetividade do Jornalismo. Ela acredita que “o repórter nunca é o personagem”. Eu trabalhei assim por muito tempo. A Folha [de S.Paulo] é o veículo em que você menos tem voz, e eu acho isso excelente em 99% dos casos. Teoricamente, nada de hard news precisa ser em primeira pessoa. Mas acho que em alguns casos, de narrativas mais longas, ficaria meio cafajeste negar o seu envolvimento e a ingerência do repórter na história. Ricardo e Vânia é a prova disso, porque eu e minha mãe achamos a certidão do Ricardo e levamos ao Hospital das Clínicas para encaminhá-lo a outro órgão de saúde mental. Eu tinha uma grande responsabilidade pelos atos. Eu poderia causar um grande mal só de mencionar os milhares de reais em sua conta. Alguma pessoa poderia ter se aproximado de Ricardo só pelo dinheiro. Acho que a objetividade também acaba excluindo uma responsabilidade que é do repórter. No caso de João de Deus, não era minha ideia, mas em outubro muitas coisas começaram a acontecer na minha casa. Na mesa de cirurgia, meu marido acha esse tumor que nenhum exame de imagem tinha mostrado; o avô e a avó dele morrem; eu caio no esgoto e as pessoas que começam a trabalhar nesse livro também começaram a relatar coisas esquisitas. Por isso, pensei que deveria levar isso ao leitor para não esconder informação.

 

ESQUINAS O LIVRO DEIXA MUITO CLARO QUE VOCÊ É CÉTICO EM RELAÇÃO AO MISTICISMO. ESSES ACONTECIMENTOS NEGATIVOS O FIZERAM QUESTIONAR ESSE POSICIONAMENTO?

 Jamais! Eu esperava uma coisa muito sofisticada, meio Sopranos. Porém, quanto mais me afundava na história, mais percebia que parecia um episódio de Trapalhões. Era tudo mambembe e com personagens meio patéticos. Tem a ex-atriz pornô que vira um braço direito de João e dissemina fake news e outros. Você olha tudo isso e pensa: “Jura que o mundo inteiro caiu nessa farsa por quarenta anos?”

 

ESQUINAS DURANTE A LEITURA, É PERCEPTÍVEL QUE AINDA HÁ UMA FERIDA ABERTA EM ABADIÂNIA. QUAIS OS RISCOS DE ESCREVER UM LIVRO SOBRE UMA HISTÓRIA RECENTE?

Eu sou a pior pessoa para avaliar riscos. Acho que tinha um risco físico mesmo. Em Abadiânia a vida vale muito pouco, muita gente foi morta e isso nunca importou. Tem muita história que não pude colocar no livro porque era pouco comprovável. Não tem B.O ou prova documental. Escutei gente dizendo que o tio morreu após brigar com João, o tio foi pescar e nunca mais voltou. Existem talvez outros seis casos de pessoas que foram mortas na Casa ou perto dela — sempre envolvendo gente que trabalhava lá. Além desse risco de morrer, que eu ponderei porque João não estava mais por lá, também existe o risco narrativo. Quando eu comecei a apurar, ele não tinha sido condenado. Eu estava apurando há mais de um ano. Se ele, de alguma maneira, fosse inocentado de todos os crimes, caía toda a narrativa. Seria estranho se a Justiça determinasse que pelo menos 300 mulheres mentiram, mas era uma possibilidade até a primeira condenação. Felizmente, teve esse desfecho prático; a história fecha com ele marcado como o predador sexual que é. Mas ainda há muito por vir.

 

ESQUINAS A FAMA DE JOÃO DE DEUS SURGIU E CRESCEU GRAÇAS A UMA JUNÇÃO DE FATORES. VOCÊ ACREDITA QUE A IMPRENSA SENSACIONALISTA CARREGA A MAIOR PARCELA DE CULPA POR AMPLIFICAR A INFLUÊNCIA DO MÉDIUM?

100%! A maior relação pública que o João Teixeira de Faria teve foi com a imprensa. Cara, a Folha, o Estadão e a Veja… o tanto de matéria que saiu chancelando e passando a mão na cabeça dele. Ele é um charlatão que corta as pessoas com o estilete. [Chico agarra uma caneta durante a videochamada] Pega essa caneta e enfia no olho das pessoas. Ninguém pensa que isso é proibido e que não deveria ser feito? Eu me lembro das Páginas Amarelas que a Veja publicou quando ele saiu do tratamento do câncer. Aquilo é de uma inconsequência… é bater palma para maluco dançar.

 

ESQUINAS ALÉM DISSO, ELE TAMBÉM POSSUÍA LIGAÇÕES COM DIVERSOS POLÍTICOS LOCAIS E INTERNACIONAIS?

Com personagens da direita, da esquerda e do centro. Ele tratou a Dilma, o Temer e é muito próximo do Barroso [Ministro do Supremo Tribunal Federal]. Cinco ministros do STF se disseram impedidos de julgar qualquer processo por ligações pessoais com João. Ou seja, o que é questão pessoal? É amigo.

 

ESQUINAS PARA APURAR VOCÊ SE “INFILTROU” NA CASA. QUAL O DESAFIO DE FAZER ISSO EM UMA CIDADE PEQUENA, ONDE AS HISTÓRIAS SE ESPALHAM RÁPIDO, COMO ABADIÂNIA?

Minha primeira viagem para lá foi com um grupo. Então fiquei bem diluído. Não fiz entrevista e nunca me identifiquei. Fiquei uma semana só “pescando”, pois ainda não sabia nada sobre Abadiânia e a Casa Dom Inácio de Loyola. Era zero do meu universo. Li pouco sobre; lembro de uma matéria do João Batista para a capa da Vejinha que era bem crítica. A vida inteira consumi matérias sensacionalistas sobre, mas só. Não tinha muita curiosidade antes de chegar lá.

 

ESQUINAS NA ERA DA INTERNET, COM MUITA INFORMAÇÃO, HÁ O RISCO DO SURGIMENTO DE UM NOVO LÍDER MÍSTICO COMO JOÃO?

Acho mais fácil do que nunca. Porque é um contexto em que a verdade virou uma escolha. Inclusive, tem muito negacionista dos crimes de João Teixeira nessa história. Gente que diz que tudo foi um conluio do governo brasileiro com a Indústria Farmacêutica para derrubar esse grande líder que curava as pessoas de graça. A Gail Thackray [ex-atriz de filmes eróticos] é uma propagadora de fake news nos grupos internacionais de fiéis do João. Para mim, a verdade virou uma questão de opinião.

 

ESQUINAS O EPÍLOGO DO LIVRO BASICAMENTE REFORÇA A IDEIA DE QUE O TRONO DE JOÃO ESTÁ VAGO E NOVAS FIGURAS ESTÃO SURGINDO. O QUE VOCÊ ACHA QUE O FUTURO RESERVA PARA A CASA DOM INÁCIO DE LOYOLA?

Foi uma inovação narrativa, pois há um fim além do final do livro. Me chocou muito ver como lá ainda existia uma demanda da fé, mas sem a oferta do João Teixeira. E ele não deixou nenhum sucessor. Por isso, começaram a surgir outros líderes espirituais como a pastora Elizabete Batista, que em um vídeo retira um chiclete do olho da Baby do Brasil e diz que é um tumor. Mas não vejo perspectiva nenhuma de um sucessor direto na Casa Dom Inácio de Loyola. Ela já está fechando aos poucos e deixando de abrir em dias que deveria funcionar. Não me surpreenderia nada se ela fechasse agora por causa da pandemia. João de Deus

ESQUINAS SOBRE O SEU FUTURO, VOCÊ ESTÁ TRABALHANDO EM ALGO NOVO?

Eu vendi dois podcasts. Um é um podcast investigativo sobre dez pessoas que gravaram um meme e como foram impactadas por ele. Fui para a Itália entrevistar a Bambola Star do “bom dia Brasil, boa tarde Itália” e procurei o Nissim Ourfali. A história dele é a mais triste, ele teve que mudar de país e foi ameaçado de morte. Acho que ficamos mais conscientes desde que o meme dele viralizou, mas dez anos atrás não tínhamos noção dos impactos negativos da internet. Encontrei gente que chamou o Nissim para entrevista de emprego só para tirar foto com ele e dar risada. E o outro podcast chama-se “Gente: pessoas comuns em situações extraordinárias”. Cada pessoa normal trará uma situação mágica. Uma das histórias é de um moço que coloca um anúncio no jornal para conseguir dinheiro e viajar à Indonésia para encontrar o amor da vida que conheceu nesses aplicativos tipo “Par Perfeito”.