“A gente corre o risco da covid e da vida”, diz fundadora do Instituto Nice sobre prostituição - Revista Esquinas

“A gente corre o risco da covid e da vida”, diz fundadora do Instituto Nice sobre prostituição

Por Giulianna Lombardi : junho 25, 2020

A profissional do sexo e fundadora do Instituto Nice, Valéria Rodrigues, explica como o vírus mata garotas de programa para além de seu contágio

Valéria Rodrigues, 40 anos, é transexual, profissional do sexo há 22 anos e formada em Direitos Humanos e Diversidade Sexual pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. Ela é fundadora e coordenadora do Instituto Nice, entidade LGBTQIA+ referência no resgate e acolhimento de vítimas do trabalho análogo ao escravo e de exploração sexual, com foco em travestis e trans traficadas de diversos estados do País.

 

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Natural de Campo Mourão, no Paraná, Valéria conta que, na situação atual, cada vez mais garotas de programa têm procurado a ajuda da organização. “Pessoas trans que nós nem conhecíamos apareceram porque dependiam das ruas para fazerem programas. Depois dessa pandemia, a cada dia aumenta mais. Nós estamos desesperadas”, ressalta.

A organização realiza workshops, aulas e faz doações de cestas básicas e produtos para as mulheres em situação de vulnerabilidade. Além disso, apoia transexuais em diversos âmbitos, inclusive na retificação de nome e gênero.

A sede do projeto, desde o início dos trabalhos, em 2013, era em São Paulo. Mas, devido a dificuldades com o pagamento do aluguel, teve de sair da capital paulista. Assim, em 2017, o escritório mudou para o prédio do Centro da Integração da Cidadania (CIC) em Francisco Morato, na região metropolitana de São Paulo.

A coordenadora do Instituto Nice explica que a maior parte do auxílio chega por meio de doações que são administradas por um time de voluntárias. Esse grupo é composto, em sua maioria, pelas próprias beneficiárias dos programas assistenciais.

Instituto Nice promovendo workshop de artesanato
Acervo Pessoal

Esse era o caso de Natasha Lobato, uma mulher trans e profissional do sexo que foi assassinada por um cliente no dia 27 de abril deste ano. As primeiras informações recolhidas pela polícia indicam que ela foi morta em sua própria casa, já que precisou transferir o atendimento, que normalmente acontecia nas ruas ou em motéis — que agora estão fechados –, para sua moradia.

No entanto, mesmo com a perícia, Valéria atribui a culpa a outro responsável. “É fácil dizer que foi um cliente, né? Mas a verdade é que quem assassinou ela foi o Estado. Ele é culpado da morte da Natasha quando nega a ela o direito de trabalhar, de ter uma oportunidade. Eles dizem que está difícil para todo mundo achar emprego, mas para uma travesti ou uma transexual é impossível”.

“Natasha sonhava com a oportunidade de trabalho formal que nunca chegou. E, como 60,7% das manas, recorreu à prostituição como única forma de sustento. Onde está o Estado que não nos garante segurança, saúde e dignidade?”, denunciou Valéria no Instagram do Instituto.

“A culpa desta morte é do Estado, que não nos enxerga e nos mantém na invisibilidade”, postou o Instituto Nice.
Reprodução

Segundo a coordenadora, ela continuava trabalhando como garota de programa porque “o sexo, a rua e a prostituição ainda são os únicos empregadores de travestis e transexuais”. Ela também afirma que a colega esperava há mais de um ano por uma vaga de trabalho, que nunca saiu, na UPA da cidade e “precisava pagar conta, aluguel, comer e comprar os hormônios”.

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Com a pandemia, o quadro da profissão “única saída” se agravou. Para a fundadora da ONG, especialmente neste momento, não há alternativa: “é uma questão de necessidade”.

Além de enfrentarem a diminuição de clientes nas ruas, as profissionais do sexo são, como Natasha, obrigadas a atenderem em suas casas. Dessa forma, as decisões sobre seus corpos ficam ainda mais nas mãos dos clientes – que, segundo Valéria, “não costumam estar preocupados com o contágio e a transmissão do coronavírus”.

Sobre a necessidade de se expor em meio a uma crise sanitária, ela afirma: “A conta de luz e a geladeira falam mais alto. Se tem corajoso que paga, a gente tá aí firme e forte. Mas são dois riscos, né? O da covid e o da vida, de uma agressão.”

Porém, fora do horário de trabalho, a coordenadora se esforça para seguir as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Eu tento não me expor, uso máscara, [álcool] gel, não tenho contato com as pessoas. Só vou buscar doações, mas não fico em aglomeração. Apesar disso, acabo me expondo, sim, porque não tem como, né?”

Os relatos de Valéria denunciam uma realidade invisibilizada pela sociedade e pelo Estado. Apesar da situação atual, a coordenadora do Instituto continua lutando pelo exercício de seus direitos e de suas colegas. “Tem que rir, amiga. Eu já chorei muito.”

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